sexta-feira, 4 de junho de 2021

Maria dos Anjos

(Entre o antes e o depois)

Naquela altura, eu era bastante solitária, porque os adultos à minha volta não tinham tempo para ouvir ou falar pausadamente. Éramos cinco irmãos e a família andava sempre atarefada. Eu era a segunda filha mais velha e tinha também de olhar pelos meus irmãos mais pequenos. Não havia tempo para perguntas e respostas, para dúvidas e esclarecimentos, para afetos ou ternuras. Talvez por isso não partilhei a minha tristeza causada por esta graçola de Adélia. Não disse a ninguém nem à minha irmã do meio, com quem me entendia muito bem, porque ela estava a ajudar a minha tia. Lembrei-me de ir ter com elas, mas acabei por não ir, porque as imaginei tão ocupadas a bordar que ouviria com certeza pela voz da minha tia: - 'Deixa-nos, porque tenho prazo de entrega e gosto de cumprir'.

Foi mais um momento em que me senti um ser invisível. Como se falasse mas ninguém me visse nem ouvisse e rasguei o desenho, porque não haveria, por certo, ninguém disponível para me ajudar, a não ser para me dizer: 'Deixa lá isso, não ligues, isso passa!'

       E eu, Maria dos Anjos, fui crescendo e, vejo agora, era até uma jovem bonita. Foi quando o Manuel começou a sorrir-me e a aproximar-se de mim. Um dia, convidou-me para um baile de garagem, com muito calor e muitos slows. Quando veio o casamento, eu tinha dobrado os vinte anos há pouco. Ganhara uma companhia. O Manuel chamava-me Maria dos Anjos com todas as letras. Era amor. A minha solidão foi-se esbatendo. Tinha com quem falar. Tinha quem me ouvisse. Manuel começou então a chamar-me 'meu anjo da guarda', mas a expressão não me agradava, porque  aprisionava, lembrava-me o distante domingo da procissão em que me vesti de anjo, obrigada pela minha mãe, com receio do olhar trocista de Adélia. Aquele tempo havia ficado de tal modo inculcado na minha memória que qualquer estímulo me fazia revivê-lo. Comecei  a mostrar desagrado por ouvir tantas vezes 'meu anjo da guarda'.

 

 (Por mim, gostava de contar um pouco mais).

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Maria dos Anjos

 

(No princípio foi a procissão)

Deixei de gostar do meu nome quando comecei a dar conta de mim e, sobretudo, quando entrei na procissão da festa anual da paróquia, vestida de anjo. Quando ouvi: 'Maria dos Anjos, vais de anjo na procissão', disse logo que não queria porque as asas deviam ser muito pesadas, faziam-me calor e sentir ridícula. Desatei a chorar, mas a minha mãe retorquiu que tinha feito uma promessa e que eu iria de anjo, mesmo contra a vontade. Ora, eu tinha crescido, engordado e sabia que ia ouvir as graçolas da Adélia. Ela estaria na procissão, mas, mesmo que não estivesse, sabia tudo e tudo aproveitava para fazer troça no recreio da escola: se os  sapatos eram grandes ou pequenos, se o vestido era curto ou comprido, se o cabelo era crespo ou fininho, se éramos magrizelas, se saltávamos mal à corda...

A Adélia era um réptil que se aproxima em surdina e fica a morder de mansinho, rindo às gargalhadas com a língua de fora. E logo tinha eu de me chamar Maria dos Anjos e ir vestida de anjo na procissão. De certeza que a Adélia me perguntaria muito alto para as outras meninas ouvirem: 'Ó anjo, sabes da Maria? Ó anjo, onde estão os outros?'  Eu tinha até decidido que, mais tarde, nunca falaria com ela, nem que fôssemos vizinhas, nem que tivéssemos filhos na mesma turma.

Nesse tempo, eu pensava nisto porque ficava muitas vezes em silêncio, sem saber o que dizer ou fazer no recreio, com medo do riso e das críticas dela. Eu detestava-a mais do que as trovoadas pantanosas de inverno ou sufocantes de verão, que sempre me atormentavam.

Um dia, os pais de Adélia emigraram e levaram-na com eles. Foi uma felicidade para mim. Via-me livre dela. Meses mais tarde, no verão, chegou o meu aniversário. O tempo era de mais severidade do que de festejos, mas recebi uma carta que me surpreendeu e suspendeu a minha respiração. Vinha de França e era de Adélia. Contava que a nova escola era maravilhosa, que tinha muitas amigas e que gostava cada vez mais de desenhar. Enquanto ia lendo, eu ia pensando que lhe tinha feito bem a mudança, mas também mudei de ideias quando vi um desenho. Era de um anjo grande, gorducho e com umas asas felpudas e pesadas que o puxavam para trás. Trazia uma legenda em letras desenhadas: 'Ainda continuas um anjo rechonchudo?' 

(Por mim, a história continua). 

 

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Postais enviados pelo Clube das Histórias

 


' (...) 
Se foste criança diz-me a cor do teu país
Eu te digo que o meu era da cor do bibe
e tinha o tamanho de um pau de giz
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez
Ainda hoje trago os cheiros no nariz
Senhor que a minha vida seja permitir a infância
embora eu nunca mais saiba como ela se diz'

  Ruy Belo, in ‘Homem de Palavra[s]’

'Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade'.

Manoel de Barros


'Vejo as letras e os algarismos
nos vossos cadernos escolares,
arrumadinhos sobre a linha
ou aconchegados na quadrícula
que é uma pequena janela
aberta para as contas
poderem respirar e ver o sol.
Cada letra aprendida
cada algarismo sabido
é mais um saltinho em frente
para aprenderem a vida.
No fundo, temos a altura
daquilo que sabemos.
E ainda há tanto para aprender!'

José Jorge Letria



'No último andar é mais bonito:
do último andar se vê o mar.
É lá que eu quero morar.

O último andar é muito longe:
custa-se muito a chegar.
Mas é lá que eu quero morar.

Todo o céu fica a noite inteira
sobre o último andar
É lá que eu quero morar.

Quando faz lua no terraço
fica todo o luar.
É lá que eu quero morar.

Os passarinhos lá se escondem
para ninguém os maltratar:
no último andar.

De lá se avista o mundo inteiro:
tudo parece perto, no ar.
É lá que eu quero morar:

no último andar'.

Cecília Meireles


segunda-feira, 31 de maio de 2021

E se todas as crianças recebessem um livro e houvesse um jardim por perto?


 

O jardim da Clarinha (mas não só!)

 

Foi no quintal que a avó

Fez o jardim da Clarinha

Que não gosta de estar só

Mesmo com tanta florzinha.

 

A Clarinha vive longe,

Só lá vai de quando em vez,

Mas nunca, nunca se esquece

Do jardim que a avó lhe fez.

 

Quando chega de visita

à  família que cá tem,

Quer ver logo o seu jardim,

Dando a sua à mão da mãe.

 

No meio das florzinhas,

Vive um grande e verde sapo,

Um porquinho,  cogumelos

E, de vez em quando, um gato.

 

Mas só o gato é a sério

E vem sem ser convidado,

Brinca tanto no jardim

Que o deixa desarranjado.

 

A avó ralha com o gato,

Zangada pela invasão:

- O jardim é da Clarinha,

Não é de gato ou de cão!

 

A avó gosta de animais

Mas não os quer no jardim;

- É pra Clarinha brincar,

Faça bom tempo ou  ruim!

 

A Clarinha  fica atenta

E, meiguinha, diz à avó:

- Deixa lá, vovó, que assim

O meu jardim não fica só.

 

In Histórias da Clarinha, Editora Lugar da Palavra, 2019 


Ilustradora: Cristina Pinto

 

 Mas agora o jardinzinho

não é só da Clarinha

porque outro priminho tem.

A avó diz que é dos meninos

que são os seus dois amores,

de alegria inspiradores,

cada qual seu maior bem.


Surge-me então a pergunta,

vindo até pensativa:

E se a toda a criança

fosse oferecido um livro,

 e houvesse um jardim por perto?

Seria melhor a vida

e bem maior a esperança 

de o mundo ser mais feliz

e a todos bem mais aberto.