"Verdadeiramente, o que se
está a perguntar é se o mundo precisa de um pai. Não há dúvidas que a
figura do pai precisa de ser recuperada. A sua autoridade não tem de ser
a da severidade e intransigência da lei, mas a do exemplo e da
confiança. O pai não tem de ser a personagem punitiva que nos rege pela
culpa, mas aquele que nos inspira pela sua coragem e misericórdia. O
mundo pode amar o Papa Bergoglio por muitas razões, mas talvez a mais
decisiva, a que mais nos comove e transforma, é sentirmos ao escutá-lo
que estamos a escutar um pai. E infelizmente o mundo não tem tantos
assim
É
evidente que a modernidade lança um olhar de desconfiança em relação a
títulos do âmbito religioso que lhe soam como arcaísmos, ilegíveis à luz
da sua mundividência: vigário de Cristo, sumo pontífice, sucessor do
príncipe dos apóstolos, servo dos servos de Deus, etc.
De facto,
os títulos transportam consigo uma espessura histórica inalienável e uma
semântica que não é só passível de ser criticada do exterior, mas tem
sido, deve dizer-se, alvo também de um debate interno persistente. Aí, o
Concílio Vaticano II (1962-1965) desempenha um papel absolutamente
referencial na atualização simbólica da representação do poder
espiritual. O Papa Paulo VI foi o último a usar a tiara papal (uma coroa
particular construída por três coroas que indicavam o tríplice poder do
pontífice: Pai dos Príncipes e dos Reis, Reitor do Mundo e Vigário de
Cristo na terra). Usou-a na coroação papal, em 1963, e aboliu em seguida
o seu uso.
Paulo VI foi também o último a vestir o manto papal,
já depois de o ter tornado mais breve. O Papa João Paulo I, por sua vez,
foi o derradeiro a mostrar-se na chamada sedia gestatoria (uma espécie
de trono móvel), mas sem o esplendor que vemos nas estampas de outras
eras. Com o Papa João Paulo II entramos na época do papamóvel. Estamos a
falar de uma revisão de símbolos? Sim. Mas esta redefinição simbólica
não deixa de ter consequências a nível da compreensão do papel do Papa.
Esta compreensão tem uma dimensão ad intra, que se prende com o
ecumenismo entre as várias igrejas cristãs historicamente independentes
do Bispo de Roma, e uma dimensão ad extra, que tem a ver com o papel do
papa para o mundo.
Olhemos para a primeira dimensão. O Papa João
Paulo II (que teve sempre como teólogo de suporte Ratzinger, o futuro
Bento XVI) compreendeu bem que a questão do papado do bispo de Roma
continua a não ser completamente pacífica entre as diversas denominações
cristãs. E escreveu, em 1995, uma encíclica sobre o diálogo ecuménico,
intitulada “Ut unum sint”, onde surpreendeu muitos por ter mostrado
abertura para refletir sobre o que significa o próprio papado. Escreve
ele: “é significativo e encorajador que a questão do primado do Bispo de
Roma se tenha tornado atualmente objeto de estudo, imediato ou em
perspetiva, e igualmente significativo e encorajador é que uma tal
questão esteja presente como tema essencial não apenas nos diálogos
teológicos que a Igreja Católica mantém com as outras Igrejas e
Comunidades eclesiais, mas também de um modo mais genérico no conjunto
do movimento ecuménico” (nº 89). Quer dizer: o tema da configuração do
papado continua sobre a mesa. E é interessante, a esse nível, constatar
que, desde a primeira hora, o título que o papa Francisco reserva para
si é o mais despojado e o que coloca menos problemas em termos
ecuménicos: o de bispo de Roma. Além de estar a revalorizar imensamente a
teologia da sinodalidade.
Mundialmente, e já para passarmos à
dimensão ad extra, o bispo de Roma é conhecido como Papa, e é um dos
títulos espiritualmente mais densos e eficazes. Deriva do termo grego
pàppas, uma fórmula familiar para dizer “pai”, e que é atestada desde o
século III. Por isso, quando se pergunta “o mundo precisa de um papa?”,
verdadeiramente o que se está a perguntar é se o mundo precisa de um
pai.
Se há figura que a contemporaneidade tem demolido é a
paterna. Jacques Lacan falava da “evaporação do pai” da nossa
civilização, com a turbulenta orfandade para que tal nos remete. Não há
dúvidas que a figura do pai precisa de ser recuperada. E isso só pode
acontecer, não pela reposição dos velhos paradigmas parentais de
que saudavelmente nos libertámos, mas pela emergência de novas figuras
de paternidade, que a reinventem em chave positiva. A autoridade do pai
não tem de ser a da severidade e intransigência da lei.
Deve ser a
do exemplo e a da confiança. O pai não tem de ser a personagem punitiva
que nos rege pela culpa, mas aquele que nos inspira pela sua coragem e
misericórdia.
Concluindo: o mundo pode amar o Papa Bergoglio por
muitas razões, é verdade. Mas talvez a mais decisiva, a que mais nos
comove e transforma, é sentirmos ao escutá-lo que estamos a escutar um
pai. E infelizmente o mundo não tem tantos assim."
José Tolentino Mendonça
in EXPRESSO CURTO, 10 de maio 2017