11. Noite
e dia
À
noite, Domingos abriu a porta da varanda de par em par. Chamou o gato que se
aninhou a seus pés. O movimento de turistas havia abrandado na rua. Talvez pelo
frio. Talvez pelas névoas que se adensavam, derramando-se como orvalhada de S.
João. O tempo estava meditativo. Tal como ele. Olhando a varanda de Flor,
recordou o bem que aquela mulher lhe trouxera. Ela tinha mudado a sua vida. Dera-lhe
alento e confiança. Tornou-o menos ensimesmado, como tantas vezes se sentira.
Sabia que os vizinhos o olhavam como alguém que ficara de um mundo já passado.
Dava-lhe, agora, vontade de rir ter usado, durante tantos anos, camisa longa de
dormir.
Um
dia, Flor disse-lhe: “as tuas camisas podem ter utilidade. Por que não as
ofereces à D. Bininha? Está desempregada e começou a fazer bonecas de pano para
vender no Palácio das Artes. É uma maneira de ajudar quem tem menos”.
E
assim foi. Flor tinha um espírito aberto e prático. Em pouco tempo,
transformara-lhe o corpo e a alma. Ela dizia, meigamente, que não o queria
mudar, mas apenas desapertar certos atilhos.
Sentindo-se
amado, acarinhava cada vez mais o mundo. Comunicava com mais à vontade e o olhar
alargava-se no horizonte, sem nunca deixar de amar a sua rua com as suas
varandas.
Com
Flor, podia falar de tudo, sem ter de escolher ou esconder as palavras. Com
ela, era ele próprio, sem culpabilidades, sem necessidade de máscaras ou
momentos de representação. Sabia que deveria haver alguém assim, mas, até
conhecer Flor, não sabia da sua existência.
O
gato, bom bichano, ajudara a falar com Mira Flor, que há muito Domingos mirava
da sua varanda.
Ela
tinha-lhe incutido confiança e auto-estima.
Uma
manhã, ao espelho, deu consigo a dizer para os seus botões: “não estou nada mal
e não sou nada feio, carago”. E lembrou-se da mãe, para quem carago era o maior
palavrão utilizado.
Estava
apaixonado, como nunca estivera, se paixão era deslumbrar-se com a Vida e com
alguém. Devia-lhe muito. Teria de a presentear por tudo o que lhe tinha
proporcionado. Flor abrira-lhe portas que há muito julgava fechadas.
O
gato, a seus pés, dormia feliz.
Antes
de se deitar, Domingos marcaria o número da última chamada.
(Continua,
com Domingos a aceitar o convite de Lurdes).
12.
Viagem
Lurdes,
sempre com o telemóvel por perto, logo o agarrou quando os primeiros toques se
ouviram.
“Sim,
Domingos, vais dizer que sim?”
Domingos
reparou na forma de tratamento. Sempre se trataram por você e, de repente, é
tu-cá-tu-lá…
“Estou,
Domingos, estás a ouvir-me?”
“Sim,
Lurdes, estou a ouvir bem”.
“Fiquei
contente por teres telefonado e até te tratei por tu.”
“Sim,
reparei”.
“Também
já nos conhecemos há tanto tempo!”.
“Por
mim, não há problema”.
“E,
por mim, ainda menos. É mais fácil para conjugar os verbos.
“Em
muitos casos, é, sobretudo no conjuntivo”.
“Então,
vais a Montalegre connosco?”
“Estava
para ficar, mas decidi ir, se ainda houver lugar no autocarro”.
“Claro
que há. Já te reservei um lugar, porque a minha intuição dizia-me que ias
aceitar o convite. Vai valer a pena, verás. Teremos um encontro com o Padre
Fontes, o que é sempre motivo de interesse.”
“Sim,
imagino. Ainda não sei se vou participar de todas as atividades previstas”.
“O
mais importante é que vás e te divirtas. Cada vez me convenço mais de que a
vida são dois dias e é preciso aproveitá-los”.
E
ficaram mais algum tempo ao telefone, a combinar a hora da partida, de chegada,
o local de reunião de grupo, os preços do transporte, do hotel, do restaurante…
(Continua,
com Domingos surpreendido, ao olhar a varanda de Flor.)
13 -
Dúvidas
Domingos
não conseguia dormir. Como iria reagir Flor quando o visse? Dar-lhe-ia um
abraço, mostrando-lhe a sua felicidade? Perderia o sorriso luminoso e
apagar-se-ia a chama que sempre mostrara para com ele?
Podiam
até nem se encontrar, ocupada que andaria ela com os assuntos de família.
E o
sono que não vinha. E as indecisões a atormentá-lo. Não queria perder Flor.
Essa perda seria voltar aos dias murchos, sem viver a vida por dentro.
Quase
desesperando, veio à varanda. A luz da casa de Flor estava iluminada.
Tinha
de lhe ligar. E se era um assalto? Iria preocupá-la. Optou por ligar-lhe para o
fixo.
(Continua,
com Domingos a perder, definitivamente, o sono).
14 –
Surpresa
“Estou”.
“Sim,
Domingos”.
“Fiquei
preocupado quando vi a luz acesa em tua casa”.
“Cheguei
há pouco. Como era tarde e vi tudo apagado, julguei que estavas a dormir”.
“Vens
de vez para o Porto, ou estás de passagem?”
“Nem
uma coisa nem outra, Domingos, mas amanhã falamos com mais tempo”.
“Estava
com tantas saudades tuas, Flor”.
“Como
eu, Domingos. Nem imaginas”.
“Amanhã,
vamos tomar o pequeno-almoço ao café do Olival?”
“Preferia
que viesses cá a casa. Trouxe pão caseiro, queijo e compota de abóbora que vais
adorar”.
“Flor,
obrigado, irei bem cedo”.
“Dorme
bem, Domingos. Também trouxe alheiras para o jantar”.
Domingos
respirou fundo. Sempre fora discreto, mas apetecia-lhe gritar aos sete ventos
que era feliz. Sim, era feliz. De pleno direito, carago!
O
sono chegaria pela madrugada.
Quando
atravessou a rua, ainda deserta de turistas, e entrou em casa de Flor, logo lhe
cheirou a café.
(Continua,
com Flor a comunicar uma inesperada decisão).
15 –
Aconchego
Domingos
entrou e deparou com a mesa já posta. Sobre a toalhinha de linho, as duas
chávenas, os dois pratinhos, um frasco de doirada compota, um quejinho pequeno,
um cestinho com pão escuro às fatias e a cafeteira fervia de um vigoroso café.
Flor
logo o abraçou. Domingos sentia-lhe o corpo e prendeu-a, conservando o aconchegado
silêncio.
Saboreando
também as frescas delícias, chegadinhas de Montalegre, Flor explicou a sua
vinda assim repentina: o irmão tinha sabido, ao fim da tarde da véspera, de uma
reunião no Porto, que reclamava a sua presença. Teria de vir. Flor, se quisesse,
poderia acompanhá-lo. O pai estava bem, tinha podido, ao longo destes dias,
matar muitas saudades. E concordada que Flor regressasse ao Porto, conquanto
fosse cumprida a decisão tomada em família.
“E o
que foi combinado, Flor?”
“Depois
de termos conversado, decidimos que eu passaria um mês no Porto e outro em
Montalegre. A maior parte da minha vida passei-a no Porto, mas, de facto, as
minhas raízes estão na aldeia onde tenho o meu pai”.
“Os
invernos, lá, são muito duros”.
“Não
são mais do que na minha infância. Conheço-os bem”.
“Contigo
fora, um mês é muito tempo”.
“Domingos,
o meu pai dirá a mesma coisa, porque a solidão também lhe pesa”.
E
continuaram a falar, enquanto Domingos ia pondo mais café na chávena.
(Continua,
com Domingos a lembrar-se, de repente, da viagem combinada com Lurdes).
16 –
Novos ritmos
Domingos
disse a Flor:
“Se
assim queres, também concordo. Ninguém é dono de ninguém, mesmo que o amor seja
imenso. Contigo reaprendi o dever e o direito da liberdade”.
“Viveremos
esse mês, em que estamos juntos, com mais intensidade. Ainda vai ser melhor,
Domingos. Assim não haverá o desgaste da monotonia.”
“Contigo
não há monotonia, Flor”.
Depois
de um prolongado abraço, Domingos ainda disse que, no dia anterior, nem lhe
passaria pela cabeça que estaria ali com Flor. Para quem não gostava de
surpresas…
E
contou-lhe o que havia combinado com Lurdes e o reencontro que tivera. Flor
achou graça e sugeriu que integrassem o grupo, quando houvesse outras visitas.
Há tanta coisa a descobrir, às vezes tão perto de nós. E se o grupo é animado,
tanto melhor, Domingos. Lurdes era avassaladora?! Nada que não se pudesse
resolver. Lá terá as suas razões, disse magnânima.
De
momento, convinha era ligar-lhe para desmarcar a viagem.
Um
dia, iriam os dois a Montalegre, sugeriu Flor, com um sorriso ainda de menina,
e conversariam com as sábias mulheres que percorrem os montes à cata de plantas
que curam maleitas do corpo e da alma. Sabem os nomes das ervas como os dos
filhos.
E
continuaram abraçados, enquanto a manhã se acendia.
Olhando
a varanda de Domingos, Flor disse que, se aceitasse, ele ficaria, para sempre,
com o seu canteiro.
Feliz, Domingos mirou Flor. Olhando-se, sorriram, como só sorriem as pessoas que se olham e se amam.
(Não
continua, porque de pessoas felizes bem mal se rezam histórias.
Mas
como nada é definitivo…)