quinta-feira, 1 de maio de 2014

O primeiro 1º de Maio

MHVS


Tínhamos vivido há pouco o 25 de Abril de 74. Numa semana, o país começara a respirar novos ares. Os meios de comunicação social mostravam ex-exilados, ex-presos políticos, ex-PIDES, ex-soldados da guerra colonial; diferentes “ex” de um país que, de repente,  antevia janelas para o seu fechado e longo casulo.
Tu e eu fomos ao Porto, a um comício na Avenida dos Aliados. 
Nunca tal cenário existira diante dos nossos olhos: uma praça aberta ao sol e à multidão. E às bandeiras e aos cravos e às canções e às palavras de ordem de “Fascismo nunca mais", " O povo unido nunca mais será vencido" e muitos mais.
Saboreava-se a surpresa retemperadora de poder falar sem medo. De não ter de baixar a voz ou de olhar com desconfiança. De cantar sem medo. De participar num comício sem medo. De ouvir vozes revolucionárias sem medo. De pronunciar palavras como liberdade, democracia, direitos, luta...
E surgiam, no íntimo, muitas perguntas:
Como foi possível calar tantas vozes durante quase cinco décadas? Como foi possível silenciar os anseios dos que só podiam agora expor-se?
Alguns, porém, tinham ousado fazê-lo. Sem medo dos riscos que corriam.
Conhecer mais a fundo a política do Estado Novo cabia sobretudo a quem tinha contactos  com realidades mais livres e abertas, ou o seu meio envolvente revelava consciência e reflexão políticas.     
Dos cidadãos comuns, dos quais eu e tu fazíamos parte, tanta coisa se escondia à conta de  um triste “Orgulhosamente sós” que ia plantando profundas formas de solidão.
Não mais esquecerei esse primeiro 1ª de Maio, no Porto, festejado em Liberdade.
Não sei se voltei a algum comício. Não me recordo. Se calhar, porque não houve mais nenhum 1º de Maio como o que, sendo o primeiro, tão livremente floriu.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Cores



Páscoa branca

O cais era o mesmo de sempre. Aliás, o único na pequena estação. O vento gelado obrigou-me a envolver a cabeça no cachecol e a calçar as luvas. Apenas três passageiros desceram comigo em direção ao túnel, donde subiram pela escada do lado oeste que conduz à vila, enquanto eu me servi da do lado leste, da chamada «escada do monte».
Depois de chegar ao cimo, parei, pousei a mala e olhei em volta: o céu cinzento, o monte calado, solitário, remoto; as árvores despidas, negras, de luto. E no entanto era Domingo de Páscoa.
Quando ia de novo levantar a mala, reparei no cão. Como sempre estava ali, grande, cinzento, malhado de preto. Fitou-me com olhar caloroso, mas não se moveu do lugar. Transida de emoção, dei um passo em direção a ele: vieste? E logo os olhos se extinguiram, ficaram como os das estátuas.
Mesmo assim, estendi-lhe a mão, que eu bem sabia, ia tocar no vazio.
Subi o monte. Entrei no jardim do hotelzinho onde florescia o croco azul. A terra, ainda gelada, cumpria a data, não podia haver Páscoa sem croco.
— A primavera não veio este ano — disse a dona.
— Veio sim — retorqui. — Então o croco?
A casa estava aquecida. Desembaracei a cabeça do cachecol, tirei o casaco. O quarto dava para o pomar plantado encosta acima.
Afastei o cortinado da janela muito larga e repousei os olhos nas macieiras despidas, na terra escurecida pelo frio e, como se quisesse defender-me, pousei as mãos na superfície quente de mármore que cobria os tubos de aquecimento central. A mobília pintada de branco, animada por uma toalha cor de framboesa em cima da mesa e almofadas às pintas multicolores nas cadeiras, resultava num conforto um tanto infantil.
Estendi-me sobre a cama, voltada para a janela. Fiquei de olhos postos nas macieiras. A calma enchia-me de surpresa. O leve tique-taque do despertador acentuava-a, mas, simultaneamente, desmentia que o tempo tivesse parado ali.
Os ramos desenhavam-se negros sobre o fundo do céu cinzento. Macieiras mortas. Mas não: em breve estariam em flor e viriam então os frutos, em matizes de verdes e vermelhos, anunciando a maturidade e com ela o apogeu do ciclo; depois tudo voltaria a ser como naquele momento, despido, frio, estranhamente belo. Um mundo perdido, irrecuperável e, mesmo assim, ali e nos meus olhos...
E nisto começa a nevar. Lentamente, silenciosamente a nevar. E a terra, tão endurecida como um cadáver, cobre-se de branco, os ramos começam a desenhar-se em branco sobre o céu dum cinzento agora mais claro, numa delicadeza impressionante, confundindo-se com ele. Contenho a respiração. Toda eu sou espanto. Os flocos balançam, bailam, lá fora onde não há sopro de vento, dentro do quarto, dentro de mim, brancura suave, imaculada, tranquila, movimento feito de graça... e então, por entre os troncos negros das macieiras, mudo como aquela natureza, a cauda entre as pernas altas, flocos de neve a cobrir-lhe o pelo, o cão.
Seguiu-me portanto. Como há pouco, no cimo da escada, na gare, fico transida de emoção. Era-me dolorosamente familiar, conhecia-o desde sempre, amava-o desde sempre, ouvia-o uivar por mim nas horas de angústia. «Tu?», perguntei. E a palavra implantou-se no silêncio como uma árvore no deserto.
Do outro lado do vidro da janela olha-me com grandes olhos castanhos, de pupilas azuis, em que a luz branca faz cintilar uma estrela. Sorrio-lhe e então abana a cauda. «Seu tolo», digo na brincadeira do costume, e logo o vejo levantar a pata para arranhar na janela. «Está bem, está bem», digo, cheia de condescendência fingida, levanto-me e, atravessando o vidro, vou ter com ele. Não consegue conter-se de alegria. Como doido dança em redor de mim, encosta-se-me ao corpo, roça-me o peito para eu lhe acariciar a cabeçorra; rebola-se no chão, ergue-se de novo, salta-me à cara para a lamber num impulso de diabrura e sinto-lhe o contacto do nariz frio e húmido contra a face. Mas depois senta-se, compenetrado, sensato, inclina um pouco a cabeça, fita-me de orelhas espetadas como quem escuta, uma pergunta ansiosa nos olhos. Bem o entendo. P or isso respondo: «Pois sim, vamos».
Mais uma vez me salta à cara lambendo-me agradecido, depois corre em pulos de satisfação, deitando as orelhas para trás, encosta acima. Um vento muito leve agita as flores das macieiras e desprende-lhes os flocos de pétalas brancas que, brandamente iluminadas pelo sol primaveril, flutuam silenciosas no ar, deixando-se por fim cair, como que cansadas, sobre a terra negra donde se exala o cheiro bom do princípio do mundo.
Os cabelos soltos sobre os ombros, a correr loucamente, sigo o cão. Por um instante ele para, volta-se, verifica que me encontro perto e desata de novo aos pulos monte acima, em posição de desafio e de quem gosta de demonstrar a sua superioridade física.
«Espera, gabarola!», chamo, mas faz de conta que não ouve e só depois de chegado lá ao cimo deixa de continuar em frente para, em vez disso, vir novamente ter comigo, acompanhando-me até ao mesmo lugar.
Vasto e verde, tão verde, o planalto estende-se até à orla negra da floresta. Nunca antes o azul do céu fora tão transparente, o amarelo das dentes-de-leão tão radiante, o ar tão macio. Lado a lado, o cão e eu detemo-nos um bocado no sonho para em seguida recomeçarmos o nosso jogo de «agarra», correndo e saltando para a direita, para a esquerda e em ziguezague, até cairmos exaustos sobre a relva, eu a cara em fogo, ele ofegante, a língua de fora. «Pobre, pobre», digo e enterro a cabeça no seu pelo fofo, donde lhe tiro carinhosamente algumas pétalas de flor de macieira. E falo-lhe.
Conto-lhe coisas, muitas coisas, e ele ouve, silencioso, pacífico como o cair das pétalas na primavera e o da neve no inverno. Não há pressa, não há horas. Tínhamos abandonado o tempo para nos instalarmos na vasta planície verde onde as flores em lume são eternas. Ali não se conhece nem fim nem princípio, nada foi, nada é, nada será. Uma criança fala, e as suas palavras vão de alma a alma, em linha reta, sem curvas, sem desvios. Palavras sem fechaduras, sem chaves, sem rótulos, mas livres como pássaros, nuas como adolescentes banhando-se em fontes de floresta, abertas, imensas como o mar verde onde navegam barcos que não buscam margens nem destinos.

Sonhamos assim. E não há idade encerrada num ciclo iniciado nas trevas e terminando nas trevas. Sonhamos como se tivéssemos chegado da luz, vivêssemos na luz, regressássemos à luz...
— Posso entrar?
É a dona do hotelzinho que me traz o café. Pousando o tabuleiro sobre a toalha cor de framboesa, diz:
— Pensei que um café lhe saberia bem num dia como este.
E olhando o nevão por detrás da janela:
— Coisa tão rara, uma Páscoa branca.
— A janela, dantes, era muito estreita — digo eu — mas acho-a bonita assim larga.
E ela, surpreendida:
— Conhecia a casa?
— Conhecia. E as macieiras também.
Ilse Losa
O barco afundado
Lisboa, Editorial Novaera, 1979
 
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terça-feira, 29 de abril de 2014

«A cadeira amarela» de Van Gogh


No chão de tijoleira uma cadeira rústica,
rusticamente empalhada, e amarela sobre
a tijoleira recozida e gasta.
No assento da cadeira, um pouco de tabaco num papel
ou num lenço (tabaco ou não?) e um cachimbo.
Perto do canto, num caixote baixo,
a assinatura. A mais do que isto, a porta,
uma azulada e desbotada porta.
Vincent, como assinava, e da matéria espessa,
em que os pincéis se empastelaram suaves,
se forma o torneado, se avolumam as
travessas da cadeira como a gorda argila
das tijoleiras mal assentes, carcomidas, sujas.

Depois das deusas, dos coelhos mortos,
e das batalhas, príncipes, florestas,
flores em jarras, rios deslizantes,
sereno lusco-fusco de interiores de Holanda,
faltava esta humildade, a palha de um assento,
em que um vício modesto – o fumo – foi esquecido,
ou foi pousado expressamente como sinal de que
o pouco já contenta quem deseja tudo.

Não é no entanto uma cadeira aquilo
que era mobília pobre de um vazio quarto
onde a loucura foi piedade em excesso
por conta dos humanos que lá fora passam,
lá fora riem, mas de orelhas que ouçam
não querem mesmo numa salva rica
um lóbulo cortado, palpitante ainda,
banhado em algum sangue, o «quantum satis»
de lealdade, amor, dedicação, angústia,
inquietação, vigílias pensativas,
e sobretudo penetrante olhar
da solidão embriagadora e pura.

Não é, não foi, nem mais será cadeira:
Apenas o retrato concentrado e claro
de ter lá estado e de ter lá sido quem
a conheceu de olhá-la, como de assentar-se
no quarto exíguo que é só cor sem luz
e um caixote ao canto, onde assinou Vincent.

Um nome próprio, um cachimbo, uma fechada porta,
um chão que se esgueira debaixo dos pés
de quem fita a cadeira num exíguo espaço,
uma cadeira humilde a ser essa humildade
que lhe rói de dentro o dentro que não há
senão no nome próprio em que as crianças têm
uma fé sem limites por que vão crescendo
à beira da loucura. Há quem assine,
a um canto, num caixote, o seu nome de corvo.
E há cantos em pintura? Há nomes que resistam?
Que cadeira, mesmo não-cadeira, é humildade?
Todas, ou só esta? Ao fim de tudo,
são só cadeiras o que fica, e um modesto vício
pousado sobre o assento enquanto as cores se empastam?

Lisboa, 21/05/1959

 JORGE DE SENA, 2013: Obras Completas - Poesia 1 [Metamorfoses, 1963]. Lisboa: Guimarães, pp. 341-343.
 
Obrigada, IAzinha, pelos teus belos postais de fim de semana.
Partilhas textos, música, pintura que sabes procurar e. por isso, tão bem encontras.
Obrigada. 
Desta vez, não te pedi autorização para trazer aqui 
uma parte da mensagem que nos enviaste. 
O teu coração é grande!

Recebi e gostei muito



 


Não é raro que um bem
nos seja confiado

na hora que temos por errada.

                                                           José Tolentino de Mendonça