quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Diário de Mariana

15 de setembro

Querido diário,

Chegou o dia da receção (escrevo assim, porque a minha mãe está sempre a dizer-me: Mariana, tenta aplicar as regras do Acordo Ortográfico que vais aprendendo) aos alunos e foi fixe. Cheguei cedo à escola. Não precisei de despertador nem que a minha mãe me acordasse. Quando entrei, Vi logo alguns colegas meus que também vêm para esta escola pela primeira vez. Fui ter com eles e ficámos no polivalente na conversa. E a olhar para aquele estenderete todo. Homens de capacete lá no meio a trabalhar. Muitas tábuas, muito entulho, muita rede…

Quando faltavam uns minutos para as dez e meia, aproximámo-nos da entrada do contentor, no piso de baixo, onde íamos ter a aula. A minha turma pôs-se de um lado e de outro do corredor por onde os professores iam passar. Sempre a ver quando chegava o nosso Dê Tê. Uma professora até disse: estão a assistir a um desfile? Vimos uma setora muito alta, com ar despachado, mas não era a nossa. Outra de cabelo encaracolado também continuou. Veio outra magrinha de cabelo preto curtinho e com gel, mas andou sempre. Depois passou uma prof a rir-se e a contar a outra que em vez de dizer loja do aluno tinha dito loja do cidadão. A seguir veio um prof já um bocadito cota e com ar de quem não estava lá muito para brincadeiras. Até que apareceu, finalmente, a nossa Dê Tê: de calças brancas, uma blusa cheia de cores, uma carteira com bonequinhos e de cabelo comprido ruivo. Vinha a olhar para o número das portas e parecia divertida Trazia várias folhas com regras que temos de cumprir. Eu nesta primeira aula nunca fico a conhecer bem os setores. Eles começam a falar e eu a pensar se têm filhos, se têm passatempos, se são boas pessoas, se têm amigos… Às vezes até nem oiço bem o que dizem. Reparo também no cabelo, na roupa, no modo como falam…. mas esta Dê Tê pareceu-me fixe. Depois de sairmos da sala, mostrou-nos algumas partes da escola e parecia gostar de estar connosco. Sei lá.

E a claridade, não acham um espetáculo? Fez esta pergunta duas vezes.

Mas ainda não foi desta que tive um prof de mochila e de rabo de cavalo.

Amanhã, acho que já vai ser a doer. Se vai.

Muitos beijinhos, querido diário.

Mariana

A Mãe

Foi a primeira pessoa a chegar à sala onde ia haver a reunião de conselho de turma. Sentia uma certa curiosidade em conhecer os professores da filha. Como seriam, o que diriam, que modo de encarar a vida deixariam entrever… É que a filha pouco falava em casa e os tempos de escola dela já iam bem longe.

Quando já estavam todos os professores reunidos na sala, o director de turma apresentou-a ao conselho: D. Ana, a mãe de Marisa. Todos lhe dirigiram um sorriso. Porém, no momento, pouco acrescentaram para além de um Olá, como está.

Iam pensando como mãe e filha eram tão diferentes. Marisa sempre extravagante e imprevisível. Chegava a ser provocadora pelos adereços que usava ou pelo modo como reagia face a propostas de trabalho que lhe desagradavam.

A mãe vestia um casaco grosso e antigo de fazenda. Parecia já ser agasalho há muitos frios Invernos. O cabelo grisalho acentuava a pele branca. À primeira vista, parecia avó de Marisa. Mas, ao longo do quase monólogo, parecia uma menina a quem davam a prenda de poder falar e ser escutada.

O tempo era reservado ao diálogo com os representantes dos encarregados de educação. E ela falava. Sem pressa e sem direção definida. Como se tudo fosse natural mas urgente. Pedia aos professores (não sabia bem se era pedido ou sugestão ou lembrança contra o esquecimento…) para serem compreensivos com os alunos, para os estimularem nos diferentes momentos, para serem tolerantes na data de entrega de trabalhos, para lhes darem uma palavrinha quando vissem que tal era necessário…

E entrelaçava estes desejos com problemas que conhecia muito bem, porque se confrontava com eles todos os dias e a todas as horas dentro de casa: solidão, depressão, dificuldades de toda a ordem...

Os professores quase não a interrompiam, sobretudo porque ela punha as questões e logo dava respostas. Como se estivesse habituada a falar só para si própria, a argumentar e a contra-argumentar sem interlocutor.

Tão diferente de Marisa que não ia além do superficial. Marisa, quando falava, parecia crivar as palavras, eliminando as mais gastas, pesadas ou inúteis no momento. A mãe, pelo contrário, embalava-se no seu próprio discurso. Parecia uma fonte cansada ainda que tranquila. E também distante, quase nunca procurada, ainda que necessária. Uma fonte na qual quase ninguém reparava, a menos que secasse.

Chegada a casa, contaria a todos a reunião.

Talvez conseguisse, porque se sentia bem mais aliviada.

Vanda e Vânia

Com a Banda? Ó professora, eu não gosto da Banda. Não tenho nada a ver com ela. Mal a conheço. Como é que posso trabalhar assim? Prefiro ficar sozinha. Já lhe disse, professora, não consigo. Não é possível integrar-me num grupo de pessoas que não conheço. Ó professora, tenho outros colegas que não se importam. Pode escolher um deles. Estão sempre a saltar de grupo em grupo. Eu não. Só consigo trabalhar com pessoas com quem me entendo. Não insista, professora. Não consigo mesmo. Ano passado, fiz trabalhos com um grupo de que eu não gostava. Lembra-se? Nunca recusei, apesar de ter sido um sacrifício para mim. Este ano, professora, acho que tenho direito de escolher. Só pelo aspeto dela já não gosto da Banda. Faz-me lembrar os do passado. Recorda-se, professora, da recolha de músicas que fizemos no segundo período? Fui eu que tive de fazer tudo. O meu grupo quis lá saber! É por isso que não quero trabalhar com a Banda. Ela deve ser como eles! Para mais só agora chegou à escola. Deve estar mas é à espera que seja eu a fazer tudo. E a banda a passar.

Vanda assistia a tudo. Ouvia tudo. Como enovelando um fio silenciosamente. Fio triste de se ver rejeitada. Sem vontade de argumentar. Para a aceitarem. Para a conhecerem. Para a ouvirem. Para gostarem dela. De dizer que aquilo que estava a ser dito não correspondia à verdade. Sempre tinha sido responsável e cumpridora. Nunca se tinha aproveitado do trabalho de ninguém. O que ouvia enfraquecia-lhe a voz. Calava-a até. E achava irritante aquela troca dos vês pelo bês, embora achasse graça à pronúncia do Norte. Que também era a sua. Frequente era também dizer bezes, bamos, bestir, possíbel, fabor… Mas chamarem-lhe Banda em vez de Vanda parecia que lhe estavam a dar música. A pôr um béu no rosto, fazendo-a passar por outra pessoa. Já não gostava muito do seu nome, mas ver-lhe trocada a letra inicial era pior que mudarem a chave de um soneto.

Vanda olhou a professora. Que ia reagindo discretamente para Vanda não ficar mais embaraçada. Tentando travar a torrente de palavras da aluna que já conhecia. Fixava nesta o olhar para que, através dele, ela mudasse a atitude e aceitasse trabalhar com a colega. Queria que ela fizesse o trabalho com Vanda. Mas sem obrigar. Queria integrar Vanda na turma de forma natural e que ela se sentisse aceite e apreciada. Só Vanda compreendia o esforço da professora. Vanda: recém-chegada à Escola e à turma. Viera cheia de sonhos e sentia-se enxotada como um bando de pássaros pacíficos passando por pássaros predadores. Ainda assim, conseguiu dizer à colega: não me conheces, mas sabes, pelo menos, como me chamo. E o teu nome, qual é?

- Bânia – respondeu a colega.

A professora não conteve um sorriso que se alargou às interlocutoras.

Pode parecer coisa vã, mas Vanda e Vânia, na aula seguinte, conseguiram trabalhar em pares. Não foi em vão e o trabalho ficou bom.

Nota: Este texto foi publicado, há um par de anos, no blogue Terrear.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Diário de Mariana

14 de setembro

Querido diário,

Soube hoje que as escadas e os corredores dos contentores (o nome chique é monoblocos) onde vamos ter muitas aulas são aos furinhos. Será que faltou o dinheiro e pouparam no pavimento? Ou então, esses materiais foram pensados por homens de barba rija. Vai ser lindo: as raparigas a subir de minissaia para o segundo piso e os rapazes em baixo a fazer de conta que perderam uma moeda. Por mim não há problema porque ando sempre de calças. Até já puseram umas placas no corredor por causa dos olhares indiscretos.

Uma funcionária muito fixe que eu conheço diz que tudo se vai arranjar. Eu gostava era de saber como se arranjam tantos milhões para pagar tantas obras Em casa, é só: não pode ser, não vês que a vida está má? Isso tem de ficar para quando as coisas melhorarem. A gente não sabe o que vai ser o dia de amanhã…

Mas eu sei que amanhã, vai ser a aula de presentação. Vou dormir mal de noite, mas só te digo a ti porque não me levam muito a sério. Se dissesse, ouvia logo: Vais, vais!

Beijinhos, meu grande amigo

Mariana

PS - E se as professoras que não conhecem as escadas e os corredores dos monoblocos vêm de tacões fininhos amanhã? Meu Deus!