A minha mãe, que sempre gostou de rimas, dizia que me podia chamar apenas Nino, enquanto eu fosse pequenino, e que, quando crescesse, logo se via porque até lá canta a cotovia.
Quando me dizia isto, e poucas vezes me falava do assunto, sorria, mas eu, no sorriso dela, via frieza, desamor e ficava a odiar ainda mais o meu nome. Mesmo sem querer, o desgosto de me chamar Saturnino sempre me fez recuar no tempo e vasculhar más recordações, embora no presente encare com mais naturalidade o que acontece e que não podemos controlar.
Eu esquecia isso tudo quando a minha mulher me chamava Saturnino com doçura e alegre naturalidade. Nessas ocasiões, sentia-me, de facto, um homem com nome normal como se me chamasse António, João ou Luís, embora tivesse consciência da mais que provável efemeridade da situação.
Um dia, fomos a Londres e eu próprio me surpreendi com o que viria a passar-se. Estávamos a celebrar o nosso segundo ano de casamento.
Ela captava muito bem a pronúncia de diferentes línguas e repetia muitas palavras ou sons que ia ouvindo. Costumava até dizer que se vivesse mais do que uma semana num país estrangeiro, quase se esqueceria da língua materna. Eu achava exagerado, mas relativizava tudo quando ela me chamava com meiguice pelo nome.
Uma tarde, andávamos a passear, de mãos dadas, no Green Park, vimos muitos pássaros numa árvore frondosa e um deles tinha um cantar que se distinguia. De repente, largou a minha mão e disse apontando para o pássaro:
- Sat, look!
Foi a primeira vez que me chamou Sat e pronunciou de tal maneira que ouvi Sad. Eu estava tão habituado a que as pessoas ligassem o meu nome à tristeza que irrompeu, na minha cabeça, um turbilhão de más memórias e começámos a discutir.
Foi quando ela disse com azedume que eu não lhe dava a alegria suficiente que ela desejava para viver feliz. E esperava que, quando tivéssemos filhos, se parecessem com ela e nunca comigo, porque o mundo já tem amargura que chegue e eu aumentava-a em cada dia.
Fiquei desanimado e ainda mais vulnerável. O meu ar de derrota enfureceu-a. Disse-me então que estava farta de mim e do meu nome e que, durante algum tempo, nem queria ver-me por perto. Como estávamos junto de uma estação, correu para o metro e nem tive tempo de ver a linha que seguiu.
Muitas vezes, quando discutíamos, desaparecia por umas horas e, quando regressava, chamava-me Saturnino com voz doce e tudo passava.
Pouco tempo depois, entrei, devagar, na mesma estação de metro e dirigi-me ao hotel, ficando na sala junto ao átrio a ver as fotografias que havia na parede. Quase todas mostravam sítios conhecidos de Londres: a Tower Bridge, o Big Ben, o rio Tamisa, o palácio da rainha, etc. Tudo muito turístico, tipo postal ilustrado de todos os quiosques, sem deixar de ser bonito.
Pouco depois, quando entrei no quarto, deparei com ela a experimentar, com ar de eterna harmonia e felicidade conjugal, uma lingerie vermelha que estava a estrear e perguntou-me com voz doce:
- Saturnino, gostas?
Claro que gostava. Era maravilhosa e o corpo dela merecia-o, tornando-o ainda mais sensual. Disse-lho, olhando-a com voraz atenção.
Acabámos por ficar muito tempo no quarto e ouvi-a repetir, com voz melíflua:
- Amo-te, Saturnino.
Aquele quarto passou a ser o melhor quarto de hotel do mundo.
Saturnino continua a viver aquelas horas na cidade. Vai descobrindo o que é possível. E também em si próprio?