segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Dias de Londres - coisas de sentir e de comer

1. Antes de vir para Londres, fiz alguns exames médicos. Penso sempre que posso ficar doente e vir dar trabalho, o que não quero de modo algum, porque o tempo já lhes é pouco para os trabalhos que têm de fazer e precisam é de ajuda. Foi então que fiquei a saber que tenho o sangue um pouco mais açucarado do que devia. Às vezes, com o tempo, vou-me esquecendo das mazelas que vão aparecendo, mas, desta vez, resolvi levar a sério e logo reduzir aos hidratos de carbono, dizer adeus a croissants, chocolate, etc.

E não me está a custar, como pensei muitas vezes que custaria.

Espero até que a balança sinta menos peso, porque também tenho andado mais pé. Apesar de ter banido algumas coisinhas doces, se a balança continuar azeda, não quero mudar o rumo que há pouco encetei. Já tenho idade para não ceder a azedumes.

 

2. A mãe de uma vizinha vive em Hong Kong. De vez em quando vem passar uma temporada aqui em Londres para ajudar a filha.

Uma menina da turma da minha neta tem cá a avó por uns tempos. Veio de Goa e a outra avó vive na Austrália.

Eu venho de Portugal quando é possível e fico cá também o tempo possível. O mesmo faz a outra avó que vem da Califórnia.

Muitas mães-avós, venham elas de onde vierem, trazem mimos também para pôr na mesa. Eu trouxe, por exemplo, marmelada de marmelos do nosso quintal e trouxe bacalhau. No dia seguinte a eu ter chegado, já havia uns lombinhos de bacalhau de molho que deram bolinhos do mesmo com arroz de feijão. Pus também o feijão de molho, coisa que esta casa ainda não tinha visto. 

E devia estar bom, porque nada sobrou.

As outras mães-avós não sei o que trarão, porque não vi, mas vi alguns sorrisos nos rostos de alguns netos ao lado delas, a dar-lhes a mão.

E muitas outras mães-avós haverá nesta cidade, neste país, neste mundo que vão adoçando as vidas, muitas vezes muito mais do que a sua.

Não posso falar por quem não conheço, mas acho que às vezes as mães-avós gostariam de ser apenas filhas. Nem que fosse só por umas horas.

 

3. Um dia destes, pus à minha neta a pergunta mais que batida: o que queres ser quando fores grande?

 Pensou um bocadinho e logo respondeu:

             -  Quero ser tratadora de pandas.

-  Não sei se aqui há pandas verdadeiros, acrescentei eu.  

- Não faz mal, avó, se não houver, vou para outro país, disse ela, aconchegando a si o seu panda, muito frequente e fofa companhia.

E pensei que, apesar de as guerras atuais baralharem fronteiras, o que são essas barreiras para uma criança de seis anos? Sabê-lo-á quando crescer. Oxalá ainda haja pandas e meninos que sorriam e que sonhem.

E avós que, embora pareçam esquecer-se de si, não perderam o gosto de sonhar.

 

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Dias de Londres - a festa na igreja

Hoje fui à festa, aqui perto, no exterior de uma igreja anglicana. Logo que vi o cartaz nas árvores da rua, fiquei com interesse e curiosidade. Com ar festivo, deparei com um mercadinho de plantas, postais, velharias; mesas para tomar chá com bolo, etc, no meio de árvores e canteiros de flores variadas e bonitas. O ambiente era calmo e havia sol. 

Quem vendia os produtos e ia organizando o evento eram senhoras antigas, usando vestidos antigos que iam saudando e sorrindo para amizades, muitas delas  por certo também antigas. Comprei uns postais porque tenho um fraquinho por postais de que não se veem cópias em qualquer kiosque.


Um grupo musical de 3 pessoas tocava, à sombra. Parei um pouco. Havia umas cadeiras perto dos músicos, mas tenho sempre receio de que os lugares mais em proeminência já estejam destinados. Deve ser trauma antigo, apesar de não me lembrar de ter vivido alguma situação embaraçosa, mas, mesmo assim, nunca me sento nas primeiras filas. 
Perguntei a uma das velhas senhoras se podia tirar fotografias. Claro que sim, disse-me ela sorrindo de forma prazenteira em dia de entusiasmo e brilho, talvez na esperança de angariar mais fundos para as obras sociais da igreja.

Saí devagar, tal como tinha entrado, dizendo para mim que, mais uma vez, sentia prazer nestes dias em Londres. E pensei também que, apesar de não ser forreta, podia ter comprado mais alguma coisa para além dos postais. Era uma forma de mostrar solidariedade. E de talvez aquelas pessoas que se disponibilizaram a estar lá sentirem que o seu trabalho compensa e é reconhecido. Se houver uma segunda vez, tentarei remediar. As pessoas não devem ser as mesmas, com certeza, nem quem precisa de ajuda. O grupo das primeiras pode ficar mais reduzido, o do segundo de certeza que não.


 

Dias de Londres - momentos

 

Hoje de manhã fui fazer uma pequena caminhada. Desde que tive covid pela primeira vez há dois anos, deixei de sentir os cheiros, a menos que sejam intensos como os desta manhã. Talvez fosse o vento a arrastar os aromas das árvores e das flores, enquanto folhas secas corriam rua fora, tropeçando nalguns obstáculos do passeio mas logo continuando.

Ao pequeno almoço, inventei uma história para a minha neta, porque ela demora muito tempo a comer. Lembrei-me da galinha dos ovos de ouro e disse-lhe que uma galinha da bisavó tinha posto um ovo de oiro. Ela acreditou e logo quis saber o que tinha dentro. Eu fui inventando até terminar num pássaro também doirado, mas que, para se alimentar, comia todo o ouro que encontrava, porque, como era doirado, andava à solta e tinha mais liberdade do que todas as outras aves da capoeira.

A minha neta continuava curiosa sobre o pássaro e se ainda existia.

Eu disse-lhe que um dia ficou azul, voou e deixou de ser visto, mas que, quem sabe, pode aparecer aqui em Londres.

No final, a minha neta disse o que eu não esperava ouvir: Gostei da história, avó, mas hoje não quero os cereais.

 

Como a mudança para esta casa é relativamente recente, ainda conheço pouco do que existe à volta. Da primeira vez que cá estive, havia mais receio da covid e julgo que nunca fui fazer compras, como gosto. Ontem, com algumas indicações da minha filha, aventurei-me. Era domingo e havia pouca gente na rua. E descobri uma igreja onde no próximo domingo haverá festa e vendas diversas. Fiquei curiosa. A minha neta já me disse que não pode ir porque tem uma festa de anos. Logo lhe disse: Clarinha, mas que agenda tão preenchida e ela sorriu com o seu olhar azul.

 

Hoje vou de novo à rua onde há lojas e supermercados. De regresso, quase sempre com fruta fresca e pão, venho pelo caminho a olhar os jardins das casas, quase todas da mesma altura, uns cheiinhos de flores, outros quase desertos de cores e perfumes. Também vejo pássaros. Abundam os melros e as pegas. Ainda não vi a senhora idosa do jardim mais colorido e bonito da rua, onde todo o bocadinho de terra é aproveitado para florir. Gostava de a conhecer. Bastava-me vê-la no meio do jardim a tratar das flores. Não deixaria de lhe dizer hello e de lhe sorrir.

Pela rua fora, vejo outra vizinha a arranjar o jardim. Olhou para mim como uma forasteira. Sorri-lhe mas ela não. Deve preferir as suas flores. Conheço casos assim.

 

Dias de Londres - também com Paddington at home


Vi, como milhões de pessoas, o sketch da rainha com Paddington, reconheci o boneco, mas pouco sabia dele. No museu da cidade de Londres, comprei o livro Paddington at the palace para a minha neta, li-o também e, passados alguns dias, vi um filme e fiquei a saber que o ursinho de chapéu vermelho, onde esconde uma sandwich de marmelada (compota de laranja), é oriundo do Peru. Foi criado por Michael Bond, autor inglês que nasceu em Newbury em 1926 e que faleceu em 2017, em Londres, tendo escrito durante uns sessenta anos, nomeadamente histórias protagonizadas pelo urso Paddington.

Paddington, que é também nome de estação de metro em Londres, é um boneco de que gosto pela sua natural curiosidade, verdade e inocência com que olha o mundo.

Criar um boneco com tal identidade e pô-lo sempre em situações novas e interessantes para um público tão diversificado é de criador genial. A forma como o ursinho anda por entre a multidão atrai o olhar e apetece segui-lo porque vão, de certeza, acontecer peripécias engraçadas e diálogos que parecem cair do céu como pingos da chuva.

No Jubileu da Rainha, até a soberana mostrou que achava graça ao boneco, como com graça acedeu a abrir a sua inseparável malinha,  em rábula muito bem disposta e bem apanhada.

Talvez se as figuras que influenciam o mundo, nem que fosse de vez em quando, se se ligassem com naturalidade ao mundo da imaginação, o mundo tivesse mais graça e fosse melhor.

E as pessoas sentir-se-iam mais pessoas e menos bonecos.

 

sábado, 30 de julho de 2022

Dias de Londres - o parque com realidade e ficção dentro

 

Depois da escola, a minha neta pediu-me que fôssemos ao parque. Como o pedido foi surpresa e pensei que vínhamos para casa, não lhe levei o reforço do lanche, embora saiba que vem sempre esfomeada. Fomos e, chegada ao pequeno parque (playground), deparei com um grupo de mães, muito divertidas, umas usando o hijab, outras vestidas à ocidental, mães de meninos da turma da minha neta que partilhavam gelados bem apetitosos em dia quente. Uma delas disse-me simpaticamente que já sabia pela filha que eu chegara de Portugal. Enquanto eu ia respondendo, sentia o desconforto de não ter nada para repartir e, a partir desse dia, passei a levar o lanche e alguns frutos para partilhar. 

Como o grupo de mães era extrovertido e o grau de compreensão do meu inglês é reduzido, sentei-me num banco ao lado que estava vazio. Fi-lo não só por saber que era a única avó, mas por não as conhecer como todas se conheciam, o que me impedia de ter um diálogo assim divertido e hilariante. Se é que consigo tê-lo mesmo em língua materna!

No parque estavam duas meninas também dos primeiros anos da primária. Uma acreditava que era fada - a fada arco-íris - a outra queria ter sucesso nos estudos porque só assim conseguiria entrar na escola do Harry Potter. Eram as duas boas alunas, gostavam de ir ao parque depois das aulas, de correr, de cantar e de fazer tudo o que achavam divertido. 

Com o decorrer do tempo, iam-se transformando, mas a convicção de que uma era fada e a outra iria para a escola de Harry Potter é que não mudava.

Um dia, numa aula, a professora referiu a distinção entre realidade e ficção, dizendo que, por exemplo, o mundo de Harry Potter era imaginário. Não existia na realidade. A menina que fazia o melhor que podia para um dia poder frequentar a escola do seu ídolo não podia crer no que ouvia. Foi como se o coração lhe caísse aos pés. Ficou séria e triste e teve de conter as lágrimas para não começar a chorar.

No recreio, desabafou logo com a amiguinha que se julgava fada, convencida de que a professora se enganara. A escola de Harry Potter existia, sim. Não tinha dúvidas. Achava que os adultos, apesar de conhecerem muita coisa, desconheciam muitas mais. A outra menina - a menina fada - segurou-lhe na mão e disse baixinho porque seria o segredo de ambas:

- Deixa lá, como sou fada, se a escola do Harry Potter for imaginária como disse a professora, vou torná-la real e assim já podes ir para lá.

    Passados uns segundos, ouviu-se mais uma gargalhada de uma das mães, mas não era sobre a conversa das meninas, porque ninguém a ouviu e, nessa altura, já andavam, felizes, de baloiço com outros meninos.

 

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Dias de Londres - os arredores também podem estar no centro

 

Aqui em Londres, o tempo permite-me boas paragens. Mesmo que nós, adultos, estejamos em casa, o almoço é rápido e às vezes arranjado por cada um, consoante o trabalho no computador.

Respeito a necessária concentração e procuro não a perturbar para que o trabalho deles renda. É desse modo que leio, escrevo uma página do meu diário, vou às compras para a casa, para além das tarefas domésticas para que as coisas estejam organizadas e a vida deles mais facilitada enquanto cá estou. A meio da tarde, vou buscar a Clarinha à escola. O percurso  serve de caminhada e vou vendo os jardins floridos. Há um em que reparo sempre e às vezes até paro para me deliciar com a variedade e com as cores de flores. Quem trata dele é a dona da casa, uma senhora idosa e muito simpática. 

Há dias, num dos jardins de rosas de várias tonalidades, vi outra velha senhora sentada numa cadeira e a regar as plantas com a mangueira. Quase me chegava a água, sorri-lhe e ela desviou a mangueira, sorrindo-me também. Nesse mesmo dia, passei por um homem de muita idade que levava um jornal debaixo do braço que devia ter acabado de comprar. Imaginei-o a ler as notícias, o que será bem mais interessante do que estar a dormitar em frente à televisão com longos e impertinentes anúncios a calcitrins milagrosos.

Nessa mesma ida à escola, cruzei-me com outra mulher nada nova, muito magra, de passo muito rápido. Nem o rosto parecia querer mostrar. Mais abaixo, outro velho, de roupão,  estava com os cotovelos apoiados no portão, vendo quem passava. Olhei para ele e sorrimo-nos. Deve sorrir a todas as pessoas que olham para ele. 

Não poderei concluir que aqui só haja velhos, mas será possível dizer que a maioria dos velhos que vi pareciam gostar que olhassem para eles. Tal como em qualquer sítio.

Quando falo de Londres, logo me perguntam o que visitei no centro da cidade e às vezes tenho pouco a contar sobre isso, embora lá vá de todas as vezes que cá venho. Gosto muito do pulsar das cidades, de museus, de ruas de esplanadas e pequenas lojas, etc. Contudo, para mim, conhecer uma cidade também são os seus arredores, ver o que lá existe, cruzar-me com pessoas que lá vivem, etc. E, sobretudo, estar com as pessoas de quem fomos ao encontro.

Ou será que caminho para a fase da vida das pessoas com quem às vezes por estes dias me cruzei?