Maria dos Anjos e Adélia encontram-se por acaso, mais de quarenta anos
após a escola primária. Reconhecem-se. Num primeiro instante, tendem ambas a fingir que não se veem, mas não o fazem. Param e dizem algumas coisas que sempre ficaram por dizer. Foram mais sinceras do que quando tinham dez anos.
- Maria dos Anjos! Há tantos anos que não nos víamos.
- Sim, desde que partiste para França, Adélia.
- Mandei-te um postal, mas não me respondeste.
- Não me lembro. Ou melhor, quis esquecer para aquele anjo rechonchudo não ocupar demasiado espaço da minha memória.
- Mas agora estás bem mais magra, Maria.
- Sempre me chamaste Maria dos Anjos. Até gozavas com o meu nome.
- Já passaram muitos anos e as asas de todos nós foram voando de vários modos.
- Às vezes, voos rasantes, outros mais altos, uns mais tresloucados...
- Vamo-nos sentar naquele banco à sombra. Tens tempo?
- Sim, as nossas pernas já não têm a mesma resistência de quando íamos na procissão.
- Eu nunca fui na procissão, Maria.
- Ficavas a ver para depois criticar.
- Nem imaginas como gostava de ter ido também, de ter tido uma mãe que me obrigasse a isso.
- Não vejo porquê. Eu detestava.
- Se me obrigasse, era porque achava que eu era capaz.
- Mas parecia que dominavas tudo, que vendias confiança.
- Como uma galinha meio engalinhada. Eu era tão insegura, Maria.
- Nunca pensei, Adélia, nem que voltássemos a falar.
- Éramos crianças, Maria.
- Tu ferias mais do que muitos adultos.
- Eu sei e já o sabia na altura.
- Então, por que persistias?
- Porque havia coisas que se passavam comigo que também me feriam muito.
- Exorcizavas os teus demónios, atacando, criticando, amesquinhando?
- Havia um muro, Maria, que me punha revoltada e infeliz.
- Não entendo, Adélia. Como não entendia alguns dos teus
comportamentos. Lembro-me que, num dia frio de inverno, a minha mãe me obrigou a levar dois vestidos
para ir mais agasalhada. Deitaste-te no chão do recreio para te certificares
que eram mesmo dois vestidos e ridicularizaste-me tanto que não parei de chorar. Quanto mais eu chorava, mais tu te divertias a rastejar e a apontar para mim. Parecias um réptil.
- Maria, apesar de tudo, estamos aqui sentadas neste banco onde chegámos por acaso. Devem ter sido os anjos que nos trouxeram.
- Espero que sim, porque quero afastar cada vez mais os demónios.
- Vejo que ainda estás ressentida comigo e com razão.
- Já que os anjos nos trouxeram até aqui, diz-me: tens filhos?
-Tenho dois filhos e dois netos. Ultimamente, ando muito preocupada com um dos meninos.
- Então, está doente?
- Não é pequena doença. Tem sido vítima de bullying na escola. É o
mais pequeno da turma e agora nem quer vir ao recreio com medo do que lhe dizem e do que lhe fazem.
- ...
- Não dizes nada? Tens netos com o mesmo problema?
- O meu filho não tem filhos. Perdeu a mulher com a idade que eu tinha quando me separei. Quanto ao teu neto, compreendo muito bem a tua dor, Adélia, mas não fiques calada, nem tenhas medo, nem sintas vergonha. Ouve-o sempre com atenção.
- É o que eu tenho feito e também me tenho ouvido a mim própria, o que me tem ajudado a transpor o muro que não esqueço.
- Já falaste duas vezes de um muro, Adélia. O que queres dizer?
- Continuas com tempo para me ouvires?
- Continuo.
- É que acontece tão poucas vezes haver quem nos oiça e seja franco connosco. Sinto este peso a atormentar-me desde muito pequena. É uma doença que não tem cura.
- Sim, esse é também um muro que nos tolhe muitos dos nossos passos, mas voltemos ao muro da tua infância.
- A minha casa dava para a casa da minha avó. Eu ia pra lá quando chegava da escola e era lá que eu era feliz. Podia correr, saltar, apanhar flores, fazer os deveres no coberto, ouvir os pássaros, brincar com os animais...
- Então, mais uma razão para viveres bem contigo e com os outros.
- Um dia, quando
cheguei da escola, estavam a erguer um muro entre a nossa casa e a casa da minha
avó. Eu nem queria acreditar. Estavam a arrancar-me do meu paraíso. Nunca me explicaram a razão do
muro da separação. Eu bem perguntava, mas ninguém me
respondia. Acho que nem ouviam ou faziam de conta que não ouviam. Eu era um ser invisível mas, mesmo assim, incapaz de saltar o muro.
- Foi quando viraste fera enraivecida.
- E a minha raiva não dava para bater mas para escarnecer. Assim, eu era ouvida, eu era temida e ninguém ficava indiferente ao que eu dizia.
- Voltando ao teu neto, o problema de bullying está a ser resolvido?
- Lembraste-te do bullying, porque era bullying o que eu
fazia, sobretudo contigo. Eu sei.
- Não lhe dávamos era esse nome. Foi por causa do tal muro que os teus pais emigraram?
- Foi. Não aguentaram e as zangas entre eles dispararam. Era um inferno. Culpavam-se um ao outro a toda a hora. Quase fugimos para França. Quando regressámos, muitos anos depois, o tempo já tinha deitado abaixo uma boa parte do muro e a casa da minha avó estava em ruínas.
- Um muro e as suas ruínas.
- Continuas a gostar de palavras bonitas.
- Sim, cada vez mais. São um modo de eu ir derrubando os meus muros, porque os tenho, tal como toda a gente.
- Maria, posso pedir-te desculpa e dar-te um abraço?
- Sim, Adélia, mas não como se tivéssemos dez anos.