segunda-feira, 21 de maio de 2018
Valter Hugo Mãe - O paraíso são os outros
Acabo de ler O paraíso são os outros de Valter Hugo Mãe.
A leitura pode demorar menos de uma hora, ou mais, se houver paragens ou recuos.
A narradora é uma menina e as palavras fluem poéticas, inocentes, sábias e verdadeiras.
O amor, os casais, os filhos são temas recorrentes.
O que a mãe costuma dizer à menina parece abraçar o leitor. E o o outro. E os outros. E a humanidade.
As ilustrações são também do autor. Quem escreve e desenha assim já entrou no paraíso.
Quando comprei o livro, perguntei:
- É para crianças?
Responderam-me:
- É para todas as idades.
E tinham razão.
domingo, 20 de maio de 2018
sábado, 19 de maio de 2018
Flashes de Londres
O chapéu da senhora japonesa
A senhora
japonesa entrou no comboio. Os passageiros vinham quase todos do aeroporto e
seguravam malas. Algumas, muito grandes, quase barravam a passagem no corredor
da carruagem. Era primavera, o tempo ia frio e as roupas eram escuras.
A
senhora japonesa vestia um fato claro e trazia um chapeuzinho de palhinha
branca com um raminho de flores num dos lados. Nas mãos, segurava uma pequena
carteira e um telemóvel com rosadas
flores de cerejeira na capa.
Uma
das malas bateu-lhe ligeiramente no pé. Sorriu, desviou-o e adormeceu, deixando cair o rosto
redondinho. Que parecia dar lugar ao redondo chapeuzinho.
A
menina e o varão
A
carruagem do metro ia quase vazia. Nela entrou uma mulher jovem com uma menina
alta, na fronteira de menina pequena para menina grande. A mulher jovem, que
devia ser a mãe, ficou de pé, sempre a escrever no telemóvel. Nunca desviou o
olhar do ecrã.
A
menina, apoiando-se no varão da carruagem, começou a dançar inclinando a cabeça
para trás. Rodava e a saia rodada também parecia dançar à volta das pernas
altas e esguias.
Não
sei se era loucura ou vontade de não desperdiçar nenhum momento de liberdade.
Dá-me
a tua mão
Era
domingo. A família da menina foi almoçar fora. Escolheu um pub descontraído,
como são quase todos em Londres. O sunday roast não era muito caro, sem deixar
de ser bom.
As
mesas de madeira foram-se enchendo de famílias.
Enquanto
os adultos comiam ainda, algumas crianças já corriam entre as mesas. Foi quando
se ouviu uma menina dizer para um menino com quem brincava: "Dá-me a tua mão".
Quando
a família da menina saiu do pub, a família do menino ainda ficou. Os meninos deram uma
abracinho de despedida e as famílias trocaram sorrisos como se todos dessem as
mãos.
quarta-feira, 16 de maio de 2018
sexta-feira, 11 de maio de 2018
Maio - Irene Lisboa
Lee Krasner |
Meados de Maio
Chuvoso maio!
Som da cidade ...
Do outro via a chuva no ar.
Perpendicular, fina,
Tomava cor,
distinguia-se
contra o fundo das trepadeiras
do jardim.
No chão, quando caía,
abria círculos
nas pocinhas brilhantes,
já formadas?
Há lá coisa mais linda
que este bater de água
na outra água?
Um pingo cai
E forma uma rosa...
um movimento circular,
que se espraia.
Vem outro pingo
E nasce outra rosa...
e sempre assim!
Os nossos olhos desconsolados,
sem alegria nem tristeza,
tranquilamente
vão vendo formar-se as rosas,
brilhar
e mover-se a água...
Irene Lisboa, in 'Antologia Poética'
segunda-feira, 7 de maio de 2018
Achados improváveis?
A família da minha mãe estava ligada à agricultura e, como vivíamos todos próximos uns dos outros, fui habituada, desde pequena, a conhecer e a valorizar muito do que a terra nos dava.
Uma das plantas era o linho, que nunca vi cultivar, mas cujas alfaias me eram familiares. Ouvia também falar das técnicas utilizadas no seu cultivo até o fio ir para a tecedeira.
Ora, eu via toalhas, colchas, panos e cortinas de linho e qualquer bocadinho não se desperdiçava nunca, porque tinha sempre serventia: para usar em feridas, para aumentar e embelezar com entremeios de renda, etc.
Também as rendas e bordados eram usuais. A casa dos meus avós maternos era de matriarcado. Em muitas tardes da minha infância, via tias a bordar o linho com desvelo e bom gosto ou a tecer rosetas ou longas tiras de crochet.
Por isso não será de estranhar que achei estranho o achado junto de um contentor de lixo: um rolo com mais de dez metros de linho e um trabalho minucioso de crochet. Como mos mostraram, fotografei-os e partilho-os agora com algumas interrogações:
- mesmo que se desconheça o valor destas coisas, não seria melhor oferecê-las a alguém ou a instituições?
- ainda que a intenção fosse disponibilizar o que não se queria para ser aproveitado por quem passasse (foi sorte não ter passado antes o camião do lixo), não será um grande desprezo pelas pessoas e pelos objetos?
Tenho uma amiga que, um dia, encontrou peças de loiça da Vista Alegre, ainda embaladas, num contentor de lixo.
Custa-me imenso ver pessoas a vasculhar nos contentores de lixo em busca de comida.
Oxalá que para isso não sejam nunca procurados, mas, se calhar, de vez em quando, convirá dar uma vista de olhos. Sabe-se lá as coisas improváveis que podem ser encontradas.
domingo, 6 de maio de 2018
"Poema à mãe" - Eugénio de Andrade
Helena Almeida |
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"
sábado, 5 de maio de 2018
"Mãe" - José Almada Negreiros
Helena Almeida |
Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!
Traze tinta encarnada para escrever estas coisas!
Tinta cor de sangue, sangue verdadeiro, encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um.
Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me ao teu lado.
Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei,
tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!
Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa.
Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!
josé de almada negreiros a invenção do dia claro
sexta-feira, 4 de maio de 2018
" A minha filha perguntou-me" - Ana Luísa Amaral
Helena Almeida |
A minha filha perguntou-me
o que era para a vida inteira
e eu disse-lhe que era para sempre.
Naturalmente, menti,
mas também os conceitos de infinito
são diferentes: é que ela perguntou depois
o que era para sempre
e eu não podia falar-lhe em universos
paralelos, em conjunções e disjunções
de espaço e tempo,
nem sequer em morte.
A vida inteira é até morrer,
mas eu sabia ser inevitável a questão
seguinte: o que é morrer?
Por isso respondi que para sempre
era assim largo, abri muito os braços,
distraí-a com o jogo que ficara a meio.
(No fim do jogo todo,
disse-me que amanhã
queria estar comigo para a vida inteira)
Ana Luísa Amaral
quinta-feira, 3 de maio de 2018
"Palavras para a Minha Mãe" - José Luís Peixoto
Graça Morais |
mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.
pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.
às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.
lê isto: mãe, amo-te.
eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás de fingir que não
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes.
José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"
quarta-feira, 2 de maio de 2018
Adélia Prado - "Ensinamento"
Graça Morais |
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
“Coitado, até essa hora no serviço pesado”.
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.
Adélia Prado
"Poema Canção Amiga" - Carlos Drummond de Andrade
Helena Almeida |
Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.
Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me veem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.
Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.
Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.
Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.
Carlos Drummond de Andrade
terça-feira, 1 de maio de 2018
segunda-feira, 30 de abril de 2018
domingo, 29 de abril de 2018
"Jeito de Escrever" - Irene Lisboa
Não sei que diga
E a quem o dizer?
Não sei que pense.
Nada jamais soube.
E a quem o dizer?
Não sei que pense.
Nada jamais soube.
Nem de mim, nem dos outros.
Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas...
Seja do que for ou do que fosse.
Não sei que diga, não sei que pense.
Oiço os ralos queixosos, arrastados.
Ralos serão?
Horas da noite.
Noite começada ou adiantada, noite.
Como é bonito escrever!
Com este longo aparo, bonitas as letras e o gesto - o jeito.
Ao acaso, sem âncora, vago no tempo.
No tempo vago...
Ele vago e eu sem amparo.
Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, este sereno luto das horas. Mortas!
E por mais não ter que relatar me cerro.
Expressão antiga, epistolar: me cerro.
Tão grato é o velho, inopinado e novo.
Me cerro!
Assim: uma das mãos no papel, dedos fincados,
solta a outra, de pena expectante.
Uma que agarra, a outra que espera...
Ó ilusão!
E tudo acabou, acaba.
Para quê a busca das coisas novas, à toa e à roda?
Silêncio.
Nem pássaros já, noite morta.
Me cerro.
Ó minha derradeira composição! Do não, do nem, do nada, da ausência e
solidão.
Da indiferença.
Quero eu que o seja! da indiferença ilimitada.
Noite vasta e contínua, caminha, caminha.
Alonga-te.
A ribeira acordou.
Irene Lisboa, in 'Antologia Poética'
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