quarta-feira, 8 de julho de 2015

Um poema que Maria Barroso sabia de cor



Floriram por engano as rosas bravas
No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que um momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze — quanta flor! —, do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?
Camilo Pessanha




terça-feira, 7 de julho de 2015

Adeus a Maria Barroso

Uma mulher que leu o mundo, reescrevendo-o



segunda-feira, 6 de julho de 2015

"Brincando com os dentes de tubarão"

You are the sunshine
of my life
e conversar contigo de manhã
é tão bom
tens o poder do muesli e da
laranja
ou de qualquer fruta de época
for all that matters
Acompanhar teu percurso
natural
é muito bom
falar contigo
sobre tipos de alimentos
também
Neste começo d’hoje
tuas costas negavam
qualquer espécie de outono
Afinal
a ideia de estação
é só um tema ilusional
engendrado por humanos
que nunca puderam desenhar
tua coluna vertebral
a dedo nu
My dear bicho gente
veja lá se sua próxima visita
vem antes da edição fria
do Financial Times
Matilde Campilho


"...  Matilde Campilho, a jovem portuguesa (nascida em 1982) que entrou de rompante na poesia nacional com ‘jóquei’ (editado na Tinta da China, numa coleção dirigida pelo Pedro Mexia) e que está a arrebatar o (também seu) Brasil. Matilde fez furor na semana passada na Festival literário de Paraty, com todos os jornais a repetirem esta bonita frase: "A poesia não salva o mundo, mas salva o minuto".

In Expresso Curto, 3 julho 2015

domingo, 5 de julho de 2015

Sugestão para uma tarde de domingo


sábado, 4 de julho de 2015

O almoço de Delfininha

Delfininha chegou a casa com a broa que tinha comprado na padaria, aonde foi com algum custo. Expliquemos, então: a Delfininha, apesar de já ter assistido à passagem de muitos e muitos anos, continuava a deslocar-se bem. Muito bem, até. Continuava ágil. O arranjo quase diário do jardim também tinha ajudado a que Delfininha mantivesse laivos de juventude no andar.
Custava-lhe sair, porque se habituara ao recolhimento da casa e, desde menina, sentia-se diferente da vizinhança e o sorriso que lhes abria era mais de condescendência e tolerância religiosa. Habituaram-na assim em tempo de muita calada acomodação. Mas, no fundo, do que gostaria era de falar, de rir com a vizinhança, dizer graças, partilhar as histórias que todos contavam uns aos outros, mas que calavam logo que  Delfininha se aproximava. Ela não iria gostar nem compreender, com certeza. Ela tinha mais perfeições do que os demais.
E seria demasiado tarde para ser mais verdadeira?
Sempre foi discreta. Com o passar do tempo, pouca gente lhe visitava a casa e ela também poucas casas visitava.
Voltemos ao hoje. Partiu a broa, fazendo alguma força, porque a faca já não estava muito afiada, mas também a ela se tinha afeiçoado. Lá fora, o fogareiro estava em brasa e, em cima da grelha, Delfininha, com os dedinhos ainda fininhos, colocou as sardinhas - bem frescas, porque sardinhas congeladas não lhe sabiam bem, lembravam-lhe apenas um presente apressado e lucrativo.
Sentou-se à mesa. As sardinhas tinham de ser comidas bem quentinhas. Sentiu-lhes o gosto. Não, as sardinhas não podiam ser acompanhadas por água. Lavava-lhes algum do seu sabor.
Depois da refeição, com a cozinha arrumada e já sem cheiro das sardinhas, encostou-se no sofá e abriu a janela sem se importar que a vissem da rua. Adormeceu.
E sonhou com uma visita que tinha tido há dezenas de anos. Aconteceu ao jantar. 
Quando acordou, sorriu sem medo de sorrir de prazer. Ligou o rádio e, acreditemos ou não, o que ouviu foi "Quero é viver".

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Sophia "partiu" há 11 anos. As palavras puras permanecem!

Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento 


Sophia de Mello Breyner


Imagem e poema enviados pela livraria Poetria

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Junto ao rio Douro


A Delfininha



Apesar de viverem perto, ela raramente vê a Delfininha.
Quando ela passa a pé rente à casa de Delfininha, olha sempre para o jardim, bem protegido por um alto e claro portão. As flores, sempre viçosas; a relva, sempre cortada e as trepadeiras na constante subida aos muros, como há dezenas de anos. Ainda dizem que o tempo deixa marcas que são mazelas nos muros que vão amparando a vida; mas nem sempre assim é, como prova  o espaço habitado por Delfininha que se mantém com a verdura do passado. Esquecendo o exagero, dir-se-ia: há séculos...
Desde o tempo de menina, a Delfininha nunca deixou de ser menina e nunca perdeu o nome de Delfininha. Podia ser Delfina, Lucinda, Alda, Maria, Conceição, mas só o nome de Delfininha lhe assentava bem.
Quando Delfininha era jovem, e a graça e a beleza, assim como a riqueza pareciam eternas,  Delfininha era um modelo de educação e delicadeza. Claro que lhe era conhecida a tendência  para aquecer corações que a outrem tinham prometido amor eterno, mas, se tal acontecia, a culpa não era de Delfininha, mas da inata capacidade de sedução, assim como do tamanho alargado do seu coração - dádivas que só em Deus tinham origem.
Hoje, quando, num recolhido silêncio, Delfinnha estava a um cantinho da padaria à espera da sua vez para comprar o pão, ainda se via um restinho de sedução no olhar e no sorriso. Mas, naquele momento, o que Delfininha queria mesmo era comprar a broa para o almoço, porque sardinhas assadas sem broa era como rever o passado e não encontrar qualquer quente brasa do amor.