segunda-feira, 5 de maio de 2014
domingo, 4 de maio de 2014
Mãe e uma "redação surpreendente"
"(...) Os professores que mais me marcaram na
vida foram os que me ensinaram coisas que estavam bem para além da matéria
escolar. Não esqueço nunca um professor da escola primária que um dia leu,
comovido, um texto escrito por ele mesmo. Logo na declaração da sua intenção
nasceu o primeiro espanto: nós, os alunos, é que fazíamos redações, nós é que
as líamos em voz alta para ele nos corrigir. Como é que aquele homem grande se
sujeitava àquela inversão de papéis? Como é que aceitava fazer algo que só faz
quem ainda está a aprender?
Lembro-me como se fosse hoje: o
professor era um homem muito alto e seco e, nesse dia, ele subiu ao estrado da
sala segurando, nos dedos trémulos, um caderno escolar. E era como se ele se
transfigurasse num menino frágil, em flagrante prestação de provas. Parecia um
mastro, solitário e desprotegido. Só a sua alma o podia salvar.
Depois, quando anunciou o título da
redação, veio a surpresa do tema que
parecia quase infantil: o professor iria falar das mãos da sua mãe.
Éramos
crianças e estranhámos que um adulto (e ainda por cima com o estatuto
dele)
partilhasse
connosco esse tipo de sentimento. Mas o que a seguir escutei foi
bem
mais do que um espanto: ele falava da sua progenitora como eu podia
falar da minha própria mãe. Também eu conhecera essas mesmas mãos
marcadas pelo trabalho, enrugadas pela dureza da vida, sem nunca
conhecerem o bálsamo de nenhum cosmético. No final, o texto acabava sem
nenhum
artifício, sem nenhuma construção literária. Simplesmente, terminava assim, e
eu cito de cor: “é isto que te quero dizer, mãe, dizer-te que me orgulho
tanto das tuas mãos calejadas, dizer-te isso agora que não posso senão lembrar
o carinho do teu eterno gesto.”
Havia qualquer coisa de profundamente
verdadeiro, qualquer coisa diversa naquele texto que o demarcava dos outros
textos do manual escolar. É que não surgia ali, em destacado, uma conclusão
moral afixada como uma grande proclamação, uma espécie de bandeira hasteada.
Aquele momento não foi uma aula. Foi uma lição que sucedeu do mesmo modo como
vivemos as coisas mais profundas: aprendemos, sem saber que estamos aprendendo (...)".
Mia Couto, (Um excerto da) Aula inaugural – Escola de Comunicação e Artes-UEM. 2012
Mia Couto, (Um excerto da) Aula inaugural – Escola de Comunicação e Artes-UEM. 2012
Recordo-me de, há uns trinta anos, começar a reparar no envelhecimento da minha mãe, através das mãos que iam ficando enrugadas. A mudança era mais nítida sobretudo no momento em que, estando toda a família à mesa, ela distribuía a comida pelos pratos.
E, felizmente, ainda posso dar comigo a olhar as mãos de minha mãe, agora que tem 87 anos.
As suas mãos preparam os alimentos, ajeitam a terra para conforto das
plantas, fazem cachecóis para os netos e
colchinhas para os bisnetos, seguram nas folhinhas soltas sobre vida de santos e nos pequenos jornais de relatos de exemplos cristãos,
erguem-se para o Céu em orações, semeiam e colhem flores para pôr no cemitério porque
muitos já partiram, alisam os pacotes
vazios para serem reutilizados, preparam pratinhos de aletria ou de leite-creme para o lanche que está sempre sobre a mesa enquanto a tarde se
ilumina, escrevem versos – muitos deles ainda inspirados no labor e nos ensinamentos da professora primária de há oitenta anos!
Hoje é o Dia da Mãe. E das muitas flores macias que saem das suas Mãos.
sexta-feira, 2 de maio de 2014
Casa assombrada
O céu estava coalhado de nuvens
pardacentas. O ar gelava. A noite aproximava-se e não se via ninguém na rua
ladeada de árvores despidas e negras. No silêncio parado, irrompeu o ruído de
um carro, parando junto da porta do casarão, quase sempre fechado. O silvado
cobrira os muros altos, isolando a casa. Todos diziam que lá não morava ninguém
e contavam-se histórias sobre os habitantes que há muito tinham morrido, mas que,
por muito amarem aquela casa e por muitas paixões guardarem, não tinham
desaparecido. Porém, o único indício de vida, percebido do exterior, era o
carro que, de repente, entrava e saía pelo portão que batia de forma
assustadora.
Engolido o carro, tudo voltava ao
silêncio.
Numa noite, houve um outro sinal:
saía fumo de uma chaminé.
Aproveitando a minha invisibilidade
de autora da história, entrei porque o frio era muito e também não gosto de
ficar a espreitar aquém dos muros.
As sebes do enorme jardim estavam
desgrenhadas e ressequidas; as árvores erguiam-se nos seus troncos retorcidos,
sustentados por raízes irregulares e salientes; algumas rosas vermelhas haviam
murchado em botão, as heras trepavam, cobrindo grossas paredes em ruínas.
Porém, no centro do jardim, erguia-se
uma pequeníssima estufa envidraçada. As suas paredes de vidro deixavam ver
aveludadas e viçosas rosas amarelas. Era o único sinal de cuidado naquele
espaço sem mimo de mão humana. Ao cimo das escadas de pedra, ouviam-se vozes
quase murmuradas. De repente, uma porta rangeu, saindo uma bela mulher de rosto
palidamente entristecido. Desceu as escadas e dirigiu-se à estufa. Colheu um
ramo de rosas e voltou a entrar em casa. O murmúrio estalou de novo.
De repente, as nuvens ganharam
movimento e houve um pouco de luar. Sem se ouvir qualquer ruído, a mulher
desceu as escadas de granito, trazendo um ramo de rosas secas na mão. A noite
foi devolvida às trevas. Sem estrondo da pesada porta exterior, a mulher saiu
num ápice, tal como tinha entrado. Nenhuma luz se via. Apenas o fumo da chaminé
continuava voando.
De madrugada, a luz da lua iluminou
as flores murchas. A seu lado, podiam ver-se, jazendo no chão, umas pesadas
correntes.
Jan. 2012
quinta-feira, 1 de maio de 2014
O primeiro 1º de Maio
Tínhamos vivido há pouco o 25 de Abril de 74. Numa semana, o país começara a respirar novos ares. Os meios de comunicação social mostravam ex-exilados, ex-presos políticos, ex-PIDES, ex-soldados da guerra colonial; diferentes “ex” de um país que, de repente, antevia janelas para o seu fechado e longo casulo.
Tu e eu fomos ao Porto, a um comício na Avenida dos Aliados.
Nunca tal cenário existira diante dos nossos olhos: uma praça aberta ao sol e à multidão. E às bandeiras e aos cravos e às canções e às palavras de ordem de “Fascismo nunca mais", " O povo unido nunca mais será vencido" e muitos mais.
Nunca tal cenário existira diante dos nossos olhos: uma praça aberta ao sol e à multidão. E às bandeiras e aos cravos e às canções e às palavras de ordem de “Fascismo nunca mais", " O povo unido nunca mais será vencido" e muitos mais.
Saboreava-se
a surpresa retemperadora de poder falar sem medo. De não ter de baixar a voz ou de olhar com desconfiança. De cantar sem medo. De participar
num comício sem medo. De ouvir vozes revolucionárias sem medo. De pronunciar palavras como liberdade, democracia, direitos, luta...
E surgiam, no
íntimo, muitas perguntas:
Como foi
possível calar tantas vozes durante quase cinco décadas? Como foi possível
silenciar os anseios dos que só podiam agora expor-se?
Alguns, porém, tinham ousado fazê-lo. Sem medo dos riscos que corriam.
Conhecer mais a fundo a política do Estado Novo cabia sobretudo a quem tinha contactos com realidades mais livres e abertas, ou o seu meio envolvente revelava consciência e reflexão políticas.
Dos cidadãos comuns, dos quais eu e tu fazíamos parte, tanta coisa se escondia à conta de um triste “Orgulhosamente sós” que ia plantando profundas formas de solidão.
Conhecer mais a fundo a política do Estado Novo cabia sobretudo a quem tinha contactos com realidades mais livres e abertas, ou o seu meio envolvente revelava consciência e reflexão políticas.
Dos cidadãos comuns, dos quais eu e tu fazíamos parte, tanta coisa se escondia à conta de um triste “Orgulhosamente sós” que ia plantando profundas formas de solidão.
Não mais
esquecerei esse primeiro 1ª de Maio, no Porto, festejado em Liberdade.
Não sei se
voltei a algum comício. Não me recordo. Se calhar, porque não houve mais nenhum
1º de Maio como o que, sendo o primeiro, tão livremente floriu.
quarta-feira, 30 de abril de 2014
Páscoa branca
O
cais era o mesmo de sempre. Aliás, o único na pequena estação. O vento
gelado obrigou-me a envolver a cabeça no cachecol e a calçar as luvas.
Apenas três passageiros desceram comigo em direção ao túnel, donde
subiram pela escada do lado oeste que conduz à vila, enquanto eu me
servi da do lado leste, da chamada «escada do monte».
Depois
de chegar ao cimo, parei, pousei a mala e olhei em volta: o céu
cinzento, o monte calado, solitário, remoto; as árvores despidas,
negras, de luto. E no entanto era Domingo de Páscoa.
Quando
ia de novo levantar a mala, reparei no cão. Como sempre estava ali,
grande, cinzento, malhado de preto. Fitou-me com olhar caloroso, mas não
se moveu do lugar. Transida de emoção, dei um passo em direção a ele:
vieste? E logo os olhos se extinguiram, ficaram como os das
estátuas.
Mesmo assim, estendi-lhe a mão, que eu bem sabia, ia tocar no vazio.
Subi
o monte. Entrei no jardim do hotelzinho onde florescia o croco azul. A
terra, ainda gelada, cumpria a data, não podia haver Páscoa sem croco.
— A primavera não veio este ano — disse a dona.
— Veio sim — retorqui. — Então o croco?
A casa estava aquecida. Desembaracei a cabeça do cachecol, tirei o casaco. O quarto dava para o pomar plantado encosta acima.
Afastei
o cortinado da janela muito larga e repousei os olhos nas macieiras
despidas, na terra escurecida pelo frio e, como se quisesse defender-me,
pousei as mãos na superfície quente de mármore que cobria os tubos de
aquecimento central. A mobília pintada de branco, animada por uma
toalha cor de framboesa em cima da mesa e almofadas às pintas
multicolores nas cadeiras, resultava num conforto um tanto infantil.
Estendi-me
sobre a cama, voltada para a janela. Fiquei de olhos postos nas
macieiras. A calma enchia-me de surpresa. O leve tique-taque do
despertador acentuava-a, mas, simultaneamente, desmentia que o tempo
tivesse parado ali.
Os
ramos desenhavam-se negros sobre o fundo do céu cinzento. Macieiras
mortas. Mas não: em breve estariam em flor e viriam então os frutos, em
matizes de verdes e vermelhos, anunciando a maturidade e com ela o
apogeu do ciclo; depois tudo voltaria a ser como naquele momento,
despido, frio, estranhamente belo. Um mundo perdido, irrecuperável e,
mesmo assim, ali e nos meus olhos...
E
nisto começa a nevar. Lentamente, silenciosamente a nevar. E a terra,
tão endurecida como um cadáver, cobre-se de branco, os ramos começam a
desenhar-se em branco sobre o céu dum cinzento agora mais claro, numa
delicadeza impressionante, confundindo-se com ele. Contenho a
respiração. Toda eu sou espanto. Os flocos balançam, bailam, lá fora
onde não há sopro de vento, dentro do quarto, dentro de mim, brancura
suave, imaculada, tranquila, movimento feito de graça... e então, por
entre os troncos negros das macieiras, mudo como aquela natureza, a
cauda entre as pernas altas, flocos de neve a cobrir-lhe o pelo, o cão.
Seguiu-me
portanto. Como há pouco, no cimo da escada, na gare, fico transida de
emoção. Era-me dolorosamente familiar, conhecia-o desde sempre, amava-o
desde sempre, ouvia-o uivar por mim nas horas de angústia. «Tu?»,
perguntei. E a palavra implantou-se no silêncio como uma árvore no
deserto.
Do
outro lado do vidro da janela olha-me com grandes olhos castanhos, de
pupilas azuis, em que a luz branca faz cintilar uma estrela. Sorrio-lhe
e então abana a cauda. «Seu tolo», digo na brincadeira do costume, e
logo o vejo levantar a pata para arranhar na janela. «Está bem, está
bem», digo, cheia de condescendência fingida, levanto-me e,
atravessando o vidro, vou ter com ele. Não consegue conter-se de
alegria. Como doido dança em redor de mim, encosta-se-me ao corpo,
roça-me o peito para eu lhe acariciar a cabeçorra; rebola-se no chão,
ergue-se de novo, salta-me à cara para a lamber num impulso de diabrura
e sinto-lhe o contacto do nariz frio e húmido contra a face. Mas
depois senta-se, compenetrado, sensato, inclina um pouco a cabeça,
fita-me de orelhas espetadas como quem escuta, uma pergunta ansiosa nos
olhos. Bem o entendo. P
or isso respondo: «Pois sim, vamos».
Mais
uma vez me salta à cara lambendo-me agradecido, depois corre em pulos
de satisfação, deitando as orelhas para trás, encosta acima. Um vento
muito leve agita as flores das macieiras e desprende-lhes os flocos de
pétalas brancas que, brandamente iluminadas pelo sol primaveril, flutuam
silenciosas no ar, deixando-se por fim cair, como que cansadas, sobre a
terra negra donde se exala o cheiro bom do princípio do mundo.
Os
cabelos soltos sobre os ombros, a correr loucamente, sigo o cão. Por
um instante ele para, volta-se, verifica que me encontro perto e desata
de novo aos pulos monte acima, em posição de desafio e de quem gosta
de demonstrar a sua superioridade física.
«Espera,
gabarola!», chamo, mas faz de conta que não ouve e só depois de
chegado lá ao cimo deixa de continuar em frente para, em vez disso, vir
novamente ter comigo, acompanhando-me até ao mesmo lugar.
Vasto
e verde, tão verde, o planalto estende-se até à orla negra da
floresta. Nunca antes o azul do céu fora tão transparente, o amarelo
das dentes-de-leão tão radiante, o ar tão macio. Lado a lado, o cão e
eu detemo-nos um bocado no sonho para em seguida recomeçarmos o nosso
jogo de «agarra», correndo e saltando para a direita, para a esquerda e
em ziguezague, até cairmos exaustos sobre a relva, eu a cara em fogo,
ele ofegante, a língua de fora. «Pobre, pobre», digo e enterro a cabeça
no seu pelo fofo, donde lhe tiro carinhosamente algumas pétalas de
flor de macieira. E falo-lhe.
Conto-lhe
coisas, muitas coisas, e ele ouve, silencioso, pacífico como o cair
das pétalas na primavera e o da neve no inverno. Não há pressa, não há
horas. Tínhamos abandonado o tempo para nos instalarmos na vasta
planície verde onde as flores em lume são eternas. Ali não se conhece
nem fim nem princípio, nada foi, nada é, nada será. Uma criança fala, e
as suas palavras vão de alma a alma, em linha reta, sem curvas, sem
desvios. Palavras sem fechaduras, sem chaves, sem rótulos, mas livres
como pássaros, nuas como adolescentes banhando-se em fontes de floresta,
abertas, imensas como o mar verde onde navegam barcos que não buscam
margens nem destinos.
Sonhamos
assim. E não há idade encerrada num ciclo iniciado nas trevas e
terminando nas trevas. Sonhamos como se tivéssemos chegado da luz,
vivêssemos na luz, regressássemos à luz...
— Posso entrar?
É a dona do hotelzinho que me traz o café. Pousando o tabuleiro sobre a toalha cor de framboesa, diz:
— Pensei que um café lhe saberia bem num dia como este.
E olhando o nevão por detrás da janela:
— Coisa tão rara, uma Páscoa branca.
— A janela, dantes, era muito estreita — digo eu — mas acho-a bonita assim larga.
E ela, surpreendida:
— Conhecia a casa?
— Conhecia. E as macieiras também.
Ilse Losa
O barco afundado
Lisboa, Editorial Novaera, 1979
História enviada por:
terça-feira, 29 de abril de 2014
«A cadeira amarela» de Van Gogh
No chão de tijoleira uma cadeira
rústica,
rusticamente empalhada, e amarela sobre
a tijoleira recozida e gasta.
No assento da cadeira, um pouco de tabaco num papel
ou num lenço (tabaco ou não?) e um cachimbo.
Perto do canto, num caixote baixo,
a assinatura. A mais do que isto, a porta,
uma azulada e desbotada porta.
Vincent, como assinava, e da matéria espessa,
em que os pincéis se empastelaram suaves,
se forma o torneado, se avolumam as
travessas da cadeira como a gorda argila
das tijoleiras mal assentes, carcomidas, sujas.
Depois das deusas, dos coelhos mortos,
e das batalhas, príncipes, florestas,
flores em jarras, rios deslizantes,
sereno lusco-fusco de interiores de Holanda,
faltava esta humildade, a palha de um assento,
em que um vício modesto – o fumo – foi esquecido,
ou foi pousado expressamente como sinal de que
o pouco já contenta quem deseja tudo.
Não é no entanto uma cadeira aquilo
que era mobília pobre de um vazio quarto
onde a loucura foi piedade em excesso
por conta dos humanos que lá fora passam,
lá fora riem, mas de orelhas que ouçam
não querem mesmo numa salva rica
um lóbulo cortado, palpitante ainda,
banhado em algum sangue, o «quantum satis»
de lealdade, amor, dedicação, angústia,
inquietação, vigílias pensativas,
e sobretudo penetrante olhar
da solidão embriagadora e pura.
Não é, não foi, nem mais será cadeira:
Apenas o retrato concentrado e claro
de ter lá estado e de ter lá sido quem
a conheceu de olhá-la, como de assentar-se
no quarto exíguo que é só cor sem luz
e um caixote ao canto, onde assinou Vincent.
Um nome próprio, um cachimbo, uma fechada porta,
um chão que se esgueira debaixo dos pés
de quem fita a cadeira num exíguo espaço,
uma cadeira humilde a ser essa humildade
que lhe rói de dentro o dentro que não há
senão no nome próprio em que as crianças têm
uma fé sem limites por que vão crescendo
à beira da loucura. Há quem assine,
a um canto, num caixote, o seu nome de corvo.
E há cantos em pintura? Há nomes que resistam?
Que cadeira, mesmo não-cadeira, é humildade?
Todas, ou só esta? Ao fim de tudo,
são só cadeiras o que fica, e um modesto vício
pousado sobre o assento enquanto as cores se empastam?
rusticamente empalhada, e amarela sobre
a tijoleira recozida e gasta.
No assento da cadeira, um pouco de tabaco num papel
ou num lenço (tabaco ou não?) e um cachimbo.
Perto do canto, num caixote baixo,
a assinatura. A mais do que isto, a porta,
uma azulada e desbotada porta.
Vincent, como assinava, e da matéria espessa,
em que os pincéis se empastelaram suaves,
se forma o torneado, se avolumam as
travessas da cadeira como a gorda argila
das tijoleiras mal assentes, carcomidas, sujas.
Depois das deusas, dos coelhos mortos,
e das batalhas, príncipes, florestas,
flores em jarras, rios deslizantes,
sereno lusco-fusco de interiores de Holanda,
faltava esta humildade, a palha de um assento,
em que um vício modesto – o fumo – foi esquecido,
ou foi pousado expressamente como sinal de que
o pouco já contenta quem deseja tudo.
Não é no entanto uma cadeira aquilo
que era mobília pobre de um vazio quarto
onde a loucura foi piedade em excesso
por conta dos humanos que lá fora passam,
lá fora riem, mas de orelhas que ouçam
não querem mesmo numa salva rica
um lóbulo cortado, palpitante ainda,
banhado em algum sangue, o «quantum satis»
de lealdade, amor, dedicação, angústia,
inquietação, vigílias pensativas,
e sobretudo penetrante olhar
da solidão embriagadora e pura.
Não é, não foi, nem mais será cadeira:
Apenas o retrato concentrado e claro
de ter lá estado e de ter lá sido quem
a conheceu de olhá-la, como de assentar-se
no quarto exíguo que é só cor sem luz
e um caixote ao canto, onde assinou Vincent.
Um nome próprio, um cachimbo, uma fechada porta,
um chão que se esgueira debaixo dos pés
de quem fita a cadeira num exíguo espaço,
uma cadeira humilde a ser essa humildade
que lhe rói de dentro o dentro que não há
senão no nome próprio em que as crianças têm
uma fé sem limites por que vão crescendo
à beira da loucura. Há quem assine,
a um canto, num caixote, o seu nome de corvo.
E há cantos em pintura? Há nomes que resistam?
Que cadeira, mesmo não-cadeira, é humildade?
Todas, ou só esta? Ao fim de tudo,
são só cadeiras o que fica, e um modesto vício
pousado sobre o assento enquanto as cores se empastam?
Lisboa, 21/05/1959
JORGE DE SENA, 2013: Obras Completas - Poesia 1 [Metamorfoses, 1963]. Lisboa: Guimarães, pp. 341-343.
Obrigada, IAzinha, pelos teus belos postais de fim de semana.
Partilhas textos, música, pintura que sabes procurar e. por isso, tão bem encontras.
Obrigada.
Desta vez, não te pedi autorização para trazer aqui
uma parte da mensagem que nos enviaste.
O teu coração é grande!
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