sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O livro, o guarda-chuva e o chocolate



Imagem da net

Para os meus alunos do 10º ano 
e para a DVB 


Durante duas semanas, quase não vi a luz do dia, apenas a espreitava quando  Helena abria a carteira.
Ela anda sempre com um livro e, desta vez, coube-me a mim acompanhá-la. Só que entrei na vida dela em má altura. Quero dizer: quando entrei na sua carteira. Como passo a vida às escuras, fechado, sem quase nada para dar nem receber, oiço conversas de Helena.
- Ando a ler um livro de José Rodrigues Miguéis. Tem um conto fabuloso.
E, precisamente no momento em que ia mostrar o livro, a campainha tocou e Helena foi para a aula, porque é professora e não gosta de se atrasar. Nem que seja por uma boa causa, como é falar de um livro. E, neste caso, um bom livro. Pareço vaidoso, mas estou só a elogiar quem me pensou, quem me escreveu, quem me deu vida, podendo, assim, embelezar a vida dos outros.
O tempo em que tenho mais luz é quando Helena está a dar as aulas. Ela chega à sala, pousa a carteira e deixa-a ficar aberta. Como a mesa é junto à janela, eu olho para cima e vejo as nuvens, a palmeira do jardim, as árvores com as folhas pintadas do vermelho de outono… Uma vez até vi um arco-íris, numa aula em que os alunos estavam a fazer teste e mal se ouviam.
Uns dias depois, ouvi Helena dizer:
- Com tantos testes para corrigir nem há tempo para ler.
E eu logo pensei: pronto, já sei, mais uns dias nesta escuridão. É como se viajasse no porão de um avião, no meio de malas e outras mercadorias, sem ver os passageiros. O que vejo à minha volta é uma agenda, uma fatura da água, um chocolate que já vai a meio, um porta-moedas…
Um dia, Helena entrou na Escola à pressa, porque já tinha tocado para dentro, e pôs o guarda-chuva molhado dentro da carteira, indo encostar-se mesmo ao meu rosto, isto é, à minha capa. Enregelei, senti alguma raiva e apetecia-me gritar:
- Helena, atiras o guarda-chuva para dentro da carteira e esqueces-te de quem está aqui! Eu podia dizer “do que” está aqui, mas acho que posso dizer “quem”, porque sinto-me humano, falo da vida mais profunda das pessoas, ajudo-as a pensar, a sentirem-se valorizadas… Mas a minha fala é diferente. Eu comunico em silêncio e só para quem me lê ou escuta através da voz de alguém.
Nesse dia de inverno, mas de muito calor na sala de aula, Helena pousou a carteira, sem a abrir. O guarda-chuva humedecia o meu corpo, isto é, as minhas páginas e o chocolate, que já estava a meio, começou a derreter e sujou-me todo.
A aula parecia interminável. Eu queria que Helena me tirasse daquele mundo de cheiros húmidos e viscosos. Ouvia perguntas, respostas, Helena a recordar que se diz “folhear” e não “desfolhar” um livro. E eu a pensar: estou feito, vou ser desfolhado sem haver tempo para ser folheado!
Nisto, tocou para fora. Que alívio, pensei, Helena poderia libertar-me. Porém, permaneci fechado até à noite. Quando me viu naquele estado, parecia, docemente, pedir-me desculpa. Se eu pudesse falar, diria:
- Não te preocupes, Helena, eu sei que, apesar de tudo, como livro que sou, para ti sou melhor do que chocolate.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Outono em Boston


sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Diário de Mariana



Querido diário,
Como é sexta-feira e vou estudar no fim de semana, quero contar-te, querido diário, uma aula muito fixe de hoje.
Um professor da turma teve de faltar e outra setora veio ubstituí-lo.  Era tão bom quando o dia 1 de novembro era feriado e podíamos ficar em casa, ir ao cemitério com a família ou fazer outras coisas.
Também não compreendo por que é que não podemos ficar sozinhos quando não temos aula. E isso acontece tão raramente. Os professores não faltam, pelo menos os meus. São daquelas coisas a que não acho piada nenhuma:  os adultos pedem (quando pedem, é claro!) a nossa opinião, mas depois fazem como melhor entendem. E parece que não confiam em nós; temos de estar sempre acompanhados como se fôssemos criancinhas.
Na última aula, já tínhamos combinado fazer uma ficha de revisão e depois podia-se tocar viola. Eu ainda pensei: se calhar, a professora diz isto, mas vamos é estar sempre a dar matéria. Gostei que tivesse cumprido.
A viola era da Ana, mas quem começou a tocar foi o Álvaro. Ficámos todos caladinhos, como a professora gosta, e ele tocou mesmo bem.
Depois, o Carlos leu duas pequenas histórias muito engraçadas, com o seu vozeirão, acompanhado também à viola.
Alguns de nós ainda se conhecem um bocadinho mal e reparei que na turma há muita gente que gosta de música. A Ana não queria tocar, porque dizia que tinha vergonha, mas depois cantou e todos batemos palmas. O Hugo até disse: curto totil desta música. A setora pediu-lhe para ele repetir e até tomou nota. O Hugo disse logo: Já sei que vai aproveitar esta frase para um exercício. Ele não sabia era que eu tenho um diário e quem ia falar disso era eu.
Eu acho que devia haver mais aulas como esta  para todos mostrarem que sabem fazer muita coisa e que, mesmo assim, podem ser bons alunos.
Pareceu-me que a setora ‘tava contente e até acompanhou algumas músicas, apesar de ter pouco jeito para cantar. Pelo menos não estava rouca, felizmente, porque isso deve ser uma grande seca para quem dá aulas. Eu vi que ela escreveu, no caderninho, uma das músicas que cantámos: Forever young. Não sei explicar muito bem, mas este título deve ser muito importante para os professores.
Agora vou estudar para o teste. Tem de ser. A minha mãe já me mandou desligar o telemóvel, mas se me lembrar de alguma música da aula de hoje, até me pode ajudar.
Um abracinho
Mariana


Uma história com um livro dentro



                                                Imagem da net


A tangerineira
    Era verão. Os dias amanheciam já quentes e as tardes tornavam-se abrasadoras. A Ana estava de férias e adorava passar as tardes a ler debaixo da sua árvore preferida: uma tangerineira enorme e de copa frondosa, que, no inverno, se enchia de frutos doces e sumarentos e, no verão, amaciava com a sua sombra as tarde escaldantes na aldeia. 
    Depois do almoço, depois da cozinha arrumada, enquanto a mãe dormia a sesta, a Ana sentava-se à sombra da tangerineira a ler. As leituras sucediam-se, e nas páginas do livro sentia-se a frescura das folhas verdes da tangerineira. E as personagens da história sentiam-se também protegidas pela sua sombra.
    Mas um dia a árvore secou. Era já muito antiga e muito velhinha. Foi preciso cortá-la, ficou só o tronco grosso e abandonado. A Ana teve de procurar outras sombras no quintal para poder continuar a ler naquelas tardes quentes de verão, mas não havia nenhuma que se assemelhasse aos braços protetores da sua tangerineira. A ameixoeira tinha folhas finas e pequenas; a figueira, largas e recortadas. O sol lançava com facilidade os seus raios sobre as páginas dos livros. As personagens queixavam-se, encolhiam-se, franziam o sobrolho àquela luz que as inundava. A Ana não tinha como as proteger.
  Os anos foram passando, a menina cresceu, morou noutras casas sem tangerineiras que abrigassem as personagens das histórias que continuou a ler. No lugar onde existia a sua árvore preferida, nem o tronco sobreviveu; foi arrancado pelos braços fortes do cunhado, que agora habita a casa. Nesse espaço florescem rosas de todas as cores, que cheiram a livros e têm a frescura das folhas verdes da tangerineira.    

Maria da Glória Poças