sábado, 1 de junho de 2013

É preciso


A criança ali estava, sentada na sua ilha.
Olhava para o mundo e pensava.
A criança viu as guerras.
E disse para consigo: é preciso pintar as fardas dos soldados.
É preciso, dos canos das espingardas,
 fazer poleiros para os pássaros e flautas de pastor.
A criança viu a fome.
E disse para consigo: é preciso prender as nuvens com um laço
e fazê-las lançar chuva sobre os desertos.
É preciso abrir ribeiros de água e de leite.
A criança viu a miséria.
E disse para consigo: é preciso aprender a somar,
 a subtrair, a multiplicar e depois a dividir.
É preciso aprender a partilhar o dinheiro, o pão, o ar e a terra.
A criança viu os poderosos a dar ordens, a clamar, a decretar.
E disse para consigo: é preciso abrir-lhes os olhos
ou então pô-los dali para fora.
A criança viu o oceano.
E disse para consigo: é preciso lavá-lo
e depois olhá-lo e… sonhar.
A criança viu as florestas.
E disse para consigo: é preciso aventurar-se e nelas escrever histórias,
deitar-se no chão coberto de musgo…a ouvi-las.
A criança viu as lágrimas.
E disse para consigo: é preciso aprender a abraçar-se,
 a não ter medo dos beijos.
É preciso aprender a dizer “gosto de ti.”
A criança ergueu a cabeça.
Viu a lua com uma bandeira espetada na testa.
 Que ultraje!
E disse para consigo: é preciso tirá-la de lá e pedir-lhe perdão.
Por fim, da sua ilha, a criança olhou para o mundo pela última vez.
E depois decidiu…
… NASCER.
Thierry Lenain ; Olivier Tallec
Il faudra
Paris, Éd. Sarbacane, 2004
(Tradução e adaptação)

A luavezinha

                                                              
Imagem da net
  (primeira estória para a Rita)

Minha filha tem um adormecer custoso. Ninguém sabe os medos que o sono acorda nela. Cada noite sou chamado a pai e invento-lhe um embalo. Desse encargo me saio sempre mal. Já vou pontuando fim na história quando ela me pede mais:
—E depois?
O que Rita quer é que o mundo inteiro seja adormecido. E ela sempre argumenta um sonho de encontro ao sono: quer ser lua. A menina quer luarejar e, os dois, faz contarmo-nos assim, eu terra, ela lua. As tradições moçambicanas ainda lhe aumentam o namoro lunar. A menina ouve, em plena verdade da rua: «olha os cornos da lua estão para baixo: vai cair a chuva que a lua guarda na barriga». Me deu, um destes dias, a ideia de lhe contar uma estorinha para fazer pousar o sonho dela. E desencorajar seus infindáveis «e depois». Lhe inventei a estória que agora vos conto.
Era uma avezita que sonhava em seu poleirinho. Olhava o luar e fazia subir fantasias pelo céu. Seu sonho se imensidava:
—Hei-de pousar lá, na lua.
Os outros lhe chamavam à térrea realidade. Mas o passarinho devaneava, insistonto: vou subir lá, mais acima que os firmamentos. Seus colegas de galho se riram: aquilo não passava de menineira. Todos sabiam: não havia voo que bastasse para vencer aquela
distância. Mas o passarinho sonhador não se compadecia. Ele queria luarar-se. Pelo que o tudo ficava nada.
Certa noite, de lua inteira, ele se lançou nos céus, cheio de sonho. E voou, voou, voou. Perdeu conta do tempo. Em certo momento ele não sabia se subia, se tombava. Seus sentidos se enrolaram uns nos outros. Desmaiou? Ou sonhou que sonhava? Certo é que seu corpo foi sacudido pelo embate de um outro corpo.
E pousou naquela terra da lua, imensa savana pétrea. A ave contemplou aquela extensão de luz e ficou esperando a noite para adormecer. Mas noite nenhuma chegou. Na lua não faz dia nem noite. É sempre luz. E o pássaro cansado de sua vigília quis voltar à terra. Bateu as asas mas não viu seu corpo se suspender. As asas se tinham convertido em luar. Com o bico desalisou as penas. Mas penas já nem eram: agora, simples reflexos, rebrilhes de um sol coado. O pássaro lançou seu grito, esses que deflagrava antes de se erguer nos céus. Mas sua voz ficou na intenção. A ave estava emudecida. Porque na lua o céu é quase pouco. E sem céu não existe canto.
Triste, ela chorou. Mas as lágrimas não escorreram. Ficaram pedrinhas na berma da pálpebra, cristais de prata. A avezita estava cativa da lua, aprisionada em seu próprio sonho. Foi então que ela escutou uma voz feita de ecos. Era a própria carne da lua falando:
—Eu sonhei que tu vinhas cantar-me.
—E porquê me sonhaste?
—Porque aqui não há voz vivente.
—Eu também sonhei que haveria de pousar em ti.
—Eu sei. Agora vais cantar em luar. Eu sonhei assim e nenhum sonho é mais forte que o meu.
É assim que ainda hoje se vê, lá na prata da lua, a pupila estrelinhada do passarinho sonhador. E nenhuma criatura, a não ser a noite, escuta o canto da avezinha enluarada. Sobre as primeiras folhas da madrugada, tombam gotas de cacimbo. São lagriminhas do pássaro que sonhou pousar na lua.
—E depois, pai?


Mia Couto
Contos do Nascer da Terra
Lisboa, Editorial Caminho, 1997

Nota - estória enviada por uma amiga.

A menina sem palavra

                                     
                 Imagem da net          
                                                              (segunda estória para a Rita)

A menina não palavreava. Nenhuma vogal lhe saía, seus lábios se ocupavam só em sons que não somavam dois nem quatro. Era uma língua só dela, um dialecto pessoal e intransmixível? Por muito que se aplicassem, os pais não conseguiam percepção da menina, quando lembrava as palavras ela esquecia o pensamento. Quando construía o raciocínio perdia o idioma. Não é que fosse muda. Falava em língua que nem há nesta actual humanidade. Havia quem pensasse que ela cantasse. Que se diga, sua voz era bela de encantar. Mesmo sem entender nada as pessoas ficavam presas na entonação. E era tão tocante que havia sempre quem chorasse.
Seu pai muito lhe dedicava afeição e aflição. Uma noite lhe apertou as mãozinhas e implorou, certo que falava sozinho:
—Fala comigo, filha!
Os olhos dele deslizaram. A menina beijou a lágrima, Gostoseou aquela água salgada e disse:
—Mar...
O pai espantou-se de boca e orelha. Ela falara? Deu um pulo e sacudiu os ombros da filha. Vês, tu falas, ela fala, ela fala! Gritava para que se ouvisse. Disse mar, ela disse mar, repetia o pai pelos aposentos. Acorreram os familiares e se debruçaram sobre ela. Mas mais nenhum som entendível se anunciou.
O pai não se conformou. Pensou e repensou e elabolou um plano. Levou a filha para onde havia mar e mar depois do mar. Se havia sido a única palavra que ela articulara em toda a sua vida seria, então, no mar que se descortinaria a razão da inabilidade.
A menina chegou àquela azulação e seu peito se definhou. Sentou-se na areia, joelhos interferindo na paisagem. E lágrimas interferindo nos joelhos. O mundo que ela pretendera infinito era, afinal, pequeno? Ali ficou simulando pedra, sem som nem tom. O pai pedia que ela voltasse, era preciso regressarem, o mar subia em ameaça.
—Venha, minha filha!
Mas a miúda estava tão imóvel que nem se dizia parada. Parecia a águia que nem sobe nem desce: simplesmente, se perde do chão. Toda a terra entra no olho da águia. E a retina da ave se converte no mais vasto céu. O pai se admirava, feito tonto: por que razão minha filha me faz recordar a águia?
—Vamos filha! Caso senão as ondas nos vão engolir.
O pai rodopiava em seu redor, se culpando do estado da menina. Dançou, cantou, pulou. Tudo para a distrair. Depois, decidiu as vias do facto: meteu mãos nas axilas dela e puxou-a. Mas peso tão toneloso jamais se viu. A miúda ganhara raiz, afloração de rocha?
Desistido e cansado, se sentou ao lado dela. Quem sabe cala, quem não sabe fica calado? O mar enchia a noite de silêncios, as ondas pareciam já se enrolar no peito assustado do homem. Foi quando lhe ocorreu: sua filha só podia ser salva por uma história! E logo ali lhe inventou uma, assim:
Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como um baloa.
Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamundo.
A lua se cintilhaçou em mil estrelinha coes.
O mar se encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo.
A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal.
A menina se pôs a andar ao contrário de todas as direcções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares.
Olhou o horizonte e chamou:
—Pai!
Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim. Essa foi uma vez.
Chegado a este ponto, o pai perdeu voz e se calou. A história tinha perdido fio e meada dentro da sua cabeça. Ou seria o frio da água já cobrindo os pés dele, as pernas de sua filha? E ele, em desespero:
—Agora, é que nunca.
A menina, nesse repente, se ergueu e avançou por dentro das ondas. O pai a seguiu, temedroso. Viu a filha apontar o mar. Então ele vislumbrou, em toda extensão do oceano, uma fenda profunda. O pai se espantou com aquela inesperada fractura, espelho fantástico da história que ele acabara de inventar. Um medo fundo lhe estranhou as entranhas. Seria naquele abismo que eles ambos se escoariam?
—Filha, venha para trás. Se atrase, filha, por favor,..
Ao invés de recuar a menina se adentrou mais no mar. Depois, parou e passou a mão pela água. A ferida líquida se fechou, instantânea. E o mar se refez, um. A menina voltou atrás, pegou na mão do pai e o conduziu de rumo a casa. No cimo, a lua se recompunha.
—Viu, pai? Eu acabei a sua história!
E os dois, iluaminados, se extinguiram no quarto de onde nunca haviam saído.

Mia Couto
Contos do Nascer da Terra
Lisboa, Editorial Caminho, 1997