quarta-feira, 27 de março de 2013

Primavera, Montanha, Mar



 

Quando Rod Eldred regressou a casa, em 1954, com a sua noiva ultramarina, já era inverno. Seguiram em direção a norte, atravessando a primeira tempestade violenta da estação, e a neve pesada parecia cair sem se ver no capot do carro novo. Rob conduzia devagar e sem parar, combatendo uma desilusão agitada. A paisagem com que sonhara com tanta ansiedade, os seus dias na Marinha, tudo desaparecera. Em alguns lugares, as estradas haviam sido reduzidas pela tempestade a ruelas estreitas, e para onde quer que ele olhasse os campos brancos desvaneciam-se no horizonte pálido, o mar de branco era interrompido apenas ocasionalmente por uma árvore despida, uma casa isolada, uma extensão de uma cerca de metal.
Mesmo para Rob, que sabia que a neve iria dar lugar a uma primavera de campos verdes reluzentes e a lagos azul-escuros, o lugar tinha um aspeto desolado e solitário. Deitava olhadelas a Jade Moon, que aconchegara o colarinho do seu casaco de lã vermelho em volta do pescoço, e cujos olhos escuros observavam a paisagem, como se procurassem um refúgio.
Aquele inverno na parte alta do estado de Nova Iorque foi especialmente rigoroso, e Rob Eldred recordá-lo-ia sempre como a estação mais difícil da sua vida. Apesar de Jade Moon ter crescido numa aldeia onde a neve formava bancos muito mais altos do que os telhados de colmo e fechava as estradas por meses a fio, ela nunca conseguira aquecer-se desse primeiro inverno no seu novo país. A casa deles era pequena e ficava numa colina, protegida do pior dos ventos; no entanto, mesmo assim, Rob estava sempre a ligar o aquecimento central ao máximo. Chegava a casa do trabalho com serradura no cabelo, ainda quente do esforço da construção, para encontrar Jade Moon no sofá, aconchegada sob várias camisolas e uma coberta acolchoada. Por vezes, o telefone estava fora do descanso, emitindo um zumbido baixo na sala. Ele voltava sempre a colocá-lo no lugar, discretamente, sem comentários, consciente do pavor que ela tinha às vozes incorpóreas, à linguagem estranha e não suavizada por um gesto ou um sorriso.
Ele não era um homem paciente, mas durante aquele longo inverno foi gentil com ela. Todas as noites lhe massajava as mãos e fazia chocolate quente, que ela bebia como uma criança, vorazmente, segurando a caneca nas duas mãos, para as aquecer. Trazia--lhe óleos perfumados para o banho, da loja económica que existia na cidade, e fazia correr a água do banho a uma temperatura tão elevada que o vapor, a cheirar a rosas, lilases ou a lírios dos vales, redemoinhava em volta dela quando ela deixava o roupão de lã escorregar. Nesse momento, ele sentava-se sobre os calcanhares, admirando o seu corpo magro, arredondado pelo bebé que trazia no ventre.
— Como as fontes quentes — murmurava ela, entrando cuidadosamente na banheira de porcelana, como se esta estivesse coberta de rochas escondidas.
Uma vez, antes de a conhecer, vira-a deslizar para dentro da água quente de uma dessas fontes, a sua pele tão suave e branca como a neve que se acumulava atrás dela. Escondido atrás de uma árvore, tinha-a observado, as suas pernas longas descontraindo--se com o vapor, o seu cabelo, como um lençol de água negra, até à cintura.
Agora, num país estranho, ela fechava os olhos diante do prazer que lhe era familiar. As suas pestanas eram espessas, e as maçãs do rosto bem altas na sua face de ossos delicados, em forma de amêndoa. Ele levantou-lhe o cabelo, para lhe lavar as costas, deixando a água ensaboada escorrer pelos mamilos dos seios dela, que estavam agora a tornar-se mais escuros, em contraste com a sua pele pálida, antecipando a chegada do bebé. Mais tarde, na cama, abraçou-a e falou-lhe docemente na sua própria língua, descrevendo os acontecimentos daquele dia, comparando as pessoas e os lugares com os da aldeia dela, tão insuportavelmente distante. Era da língua que ela sentia mais falta, da passagem estável das sílabas familiares pelos seus ouvidos. E, assim, Rob Eldred continuava a falar, inventando histórias, cantando partes de canções. Aos poucos, sentiu a tensão escoar do corpo dela, até que, por fim, ela adormeceu nos braços dele, aquecida pela voz e pelas palavras dele.
As manhãs daquele inverno nasceram claras e frias, ou suavizadas pela luz cinzenta de outra tempestade iminente. Era sempre um choque para ele, a forma como as noites mornas e escuras davam lugar à luz branca da manhã, e ele movia-se pelas pequenas divisões com cuidado, em silêncio, tentando não acordar Jade Moon. Ainda assim, invariavelmente, ela aparecia na porta da entrada da cozinha enquanto ele calçava as botas. O seu rosto não tinha expressão enquanto o observava a vestir o casaco, mas ele sabia que a calma era uma máscara contra o dia longo e silencioso que a aguardava. Em todos os seus sonhos felizes, na costa alta e rochosa de onde ela viera, nunca previra a solidão dela, nem compreendera que, para ela, seria tão difícil aprender a sua língua. Nessas manhãs frias de inverno, ele não atravessava o chão para a beijar, porque já tinha as botas calçadas, e eles seguiam os costumes do país dela, que não permitia a utilização de sapatos dentro de casa. Assim, em alternativa, ele sorria-lhe do outro lado, e saía para a luz branca, para o seu próprio isolamento inesperado.
Rob Eldred alistara-se na Marinha, assim que terminara o ensino secundário, entusiasmado pelas histórias da Segunda Guerra Mundial, sonhando com um combate glorioso e sem derramamento de sangue, as grandes armas explodindo como fogo-de--artifício sobre a água escura. Ficou desapontado quando a Marinha descobriu nele uma aptidão para as línguas e o enviou para a escola, em vez de o enviar para a frente de batalha. Quando, por fim, foi reembarcado, não foi por causa da batalha, mas para ficar sentado à secretária, num navio rádio, intercetando e traduzindo mensagens. A sua guerra tinha que ver com a linguagem, com as nuances da tradução. Sabia que era um trabalho importante, apesar de nem sempre parecer. Eventualmente, era-lhe ordenado que fosse a terra em trabalho, à aldeia onde conheceu Jade Moon, e foi só nessa altura, andando à boleia pela costa, por entre aldeias bombardeadas e em cinzas, virando as costas a pedintes que haviam perdido membros e que exibiam cicatrizes terríveis, que compreendeu a extensão daquilo a que fora poupado.
Os outros carpinteiros conheciam a história dele, e era algo que nunca lhe conseguiram perdoar. A transgressão que representava a sua guerra fácil fora agravada pelo facto de ter trazido para casa uma mulher asiática. As últimas duas guerras ainda se faziam sentir vivamente na pequena cidade que cedera meia dúzia dos seus jovens. Muitos dos carpinteiros com quem Rob trabalhava eram homens mais velhos, e com memórias longas. Stanley Dobbs e Earl Kelly tinham ambos perdido um sobrinho na Coreia. O único filho de Euart Simpson morrera durante a Segunda Guerra Mundial, num campo de prisioneiros, nas Filipinas. Um dia, Euart realçou este facto atirando a Rob uma fotografia do filho que perdera. O retrato apresentava um rapaz sorridente com um uniforme de homem, o seu rosto era a imagem do seu pai, antes de este adquirir tantas rugas de sofrimento.
— Lamento — disse Rob, devolvendo a fotografia. Euart sentou-se, o rancor e o desafio subitamente desaparecendo dos seus olhos.
— O facto de o lamentares — afirmou Euart — não se coaduna com o trazeres para casa uma mulher japonesa.
— Ela não é japonesa — respondeu Rob, debatendo-se entre a raiva e a compaixão.
— Isso não faz diferença nenhuma — respondeu Euart. Cuspiu para a pilha de serrim em volta da plaina. — Mas não é, de certeza absoluta, uma das nossas.
O bebé chegou no final de abril, assim que os lírios dos vales abriram no lado mais sombreado da casa. Segundo os costumes daquela época, Rob levou Jade Moon por estradas secundárias serpenteantes até ao hospital, e sentou-se entre pilhas de documentos, enquanto a mulher sustinha a respiração e mordia os lábios para controlar os gemidos. Depois foi levada, e doze horas mais tarde ele foi autorizado a entrar para a ver, sentada na cama com o cabelo amarrado atrás, com a filha bebé de ambos ao colo. Jade Moon estava maravilhada e também muito zangada.
— Eu estava a dormir — repreendeu ela, mas ele ficou aliviado por a ver novamente consciente, como se o medicamento que a mantivera enregelada e silenciosa durante o longo inverno tivesse atravessado o seu organismo e sido expelido.
— Puseram-me a dormir todo aquele tempo, e depois acordei e já tinha terminado. O bebé já tinha nascido. Não tenho nenhuma lembrança desse momento!
Ele relembrou as práticas do país dela, onde as mulheres se enclausuravam com outras mulheres para um parto, e bebiam determinadas ervas, deixando a natureza seguir o seu curso. Jade Moon continuou, queixando-se doce mas firmemente, e Rob começou a ganhar consciência dos olhares curiosos das outras duas novas mães, nas outras camas. Tornavam-se mais prolongados e espantados à medida que Jade Moon foi abrindo a camisa e deixou a sua filha começar a mamar.
— Há qualquer coisa de errado nelas — confessou ela a Rob, inclinando a cabeça na direção das duas mulheres. — Aquelas pobres senhoras têm bebés, mas não têm leite. Todos os dias a enfermeira lhes traz leite de vaca, morno, num biberão. Imagina!
Rob voltou-se para ver a mulher que estava mais perto, que era pálida e magra, com o cabelo ruivo puxado para trás e torcido num rolo. Estava a olhar para ele com uma piedade severa, por cima da cabeça escura do seu bebé, que se balanceava. Quando os seus olhos se cruzaram, ela falou.
— Realmente, não é da minha conta — disse — mas alguém devia chamar a atenção da sua mulher em relação à... àquilo — acenou enfaticamente para a curva branca do seio de Jade Moon, depois para o biberão que segurava inclinado para o bebé. — Isto é um hospital moderno. Civilizado. Estamos sempre a tentar explicar-lho, chegámos mesmo a utilizar linguagem gestual, mas ela limita-se a sorrir e a ficar com um ar embaraçado.
Rob, surpreendido, não soube como responder.
Jade Moon estava a ser modesta, ele sabia-o, e educada, em relação aos seus seios cheios, quando aquelas mulheres pareciam não ter qualquer leite. Voltou-se para Jade Moon, que afagava a cabecinha da sua filha enquanto a amamentava, e depois esqueceu--se da mulher ruiva.
Sentou-se na cama, cheio de alegria e maravilhado.
— Estavam a falar de quê? — perguntou Jade Moon.
— Sobre ti — disse ele, pegando-lhe na mão. — Sobre a nossa bebé bonita.
Jade Moon olhou para baixo e comoveu-se.
— Sim — disse ela. — Não é linda? — depois ergueu os olhos, sorrindo, e disse que queria chamar Primavera à bebé.
Rob ficou espantado. Sabia que Primavera era um nome comum para as meninas no país dela, mas também sabia que a sua filha iria crescer na América, e tentou convencê-la a pôr outro nome à criança. Lírio, sugeriu, pensando nas campainhas brancas delicadas que ladeavam a casa. Ou porque não Rosa?
— Não — disse ela, levantando o pequeno volume e aconchegando a sua cabeça na mão. — As flores são demasiado delicadas, não duram. Quero que a minha filha tenha um nome que a possa ajudar na vida, dar-lhe força. Nasceu na primavera, e a primavera é algo que surge todos os anos, renovando-nos.
— E se for Abril, então? — perguntou ele. A sua filha dava pontapés e contorcia-se nos braços da mãe, os movimentos aquáticos incansáveis do útero. Já tinha os olhos e o cabelo da mãe, e ele já receava por ela, pelo que ela podia vir a sofrer devido às diferenças.
— E Maio, ou até Junho?
— Não — repetiu ela, levantando a criança com facilidade até ao ombro, massajando as suas pequenas costas com a palma da mão. — Primavera.
Por fim, concordou, mas durante os dois dias que Jade Moon permaneceu no hospital, o nome preocupava-o. No trabalho, estava numa casa recentemente montada e distribuía charutos a homens que praticamente não tinham falado com ele nos últimos meses. Pensou na mulher ruiva, no hospital, e nos dias solitários de Jade Moon, na casa deles, na colina. Quando chegou a altura de preencher o nome do bebé na certidão de nascimento, descobriu que não podia satisfazer o desejo de Jade Moon. Escreveu Abril Celeste, e assinou. Jade Moon também assinou, em escrita romana, sorrindo enquanto concluía as letras trémulas. Ela não conseguia ler o suficiente em inglês para reparar na alteração que ele tinha feito.
— Abril — disse a enfermeira fazendo cócegas à bebé. — É um nome bonito.
Rob assentiu e afastou rapidamente a sua nova família da enfermeira faladora, dominado pela culpa. Seria um momento que recordaria para sempre, porque, apesar de se tratar de um pequeno detalhe, tão pequeno como um novo rebento na casca de uma árvore, era a sua primeira traição.
Para grande surpresa de Rob, o nascimento da sua primeira filha facilitou-lhe a vida no trabalho. Muitos dos jovens carpinteiros eram pais recentes e esta experiência partilhada tornou-se uma ponte estreita sobre o curso das antigas animosidades.
Começou a almoçar com eles na padaria local — pão caseiro espesso envolvendo salada de atum ou fatias de presunto — e em breve o convidaram para se juntar à liga de bowling local.
Pela primeira vez, desde que regressara da guerra, parecia-lhe que as duas metades da sua vida se haviam reconciliado. Começou a praticar bowling, e depois passou a fazer parte da Loja Maçónica. Ainda que isso implicasse deixar Jade Moon sozinha em casa, duas noites por semana, ela estava absorvida com o bebé e parecia não se importar com as suas ausências, como acontecia antes. Por outro lado, as senhoras da igreja tinham começado a visitá-la, levando-lhe tartes e guisados, e tinham visto com os seus próprios olhos que a casa dos Eldred tinha os mesmos sofás e mesas de café, os mesmos panos de crochet e rosas em flor, que esperariam encontrar nas suas próprias casas.
Partiram reconfortadas, com promessas de voltarem. Miss Ellie Jackson, uma solteirona com alguma idade, uma voz áspera e um comportamento sensato, voltou duas vezes. A primeira, com um bolo de massa folhada e, a segunda, com um Manual de Leitura da Primeira Classe que trouxera emprestado da escola primária, determinada a ensinar inglês a Jade Moon, de uma vez por todas. Assim, Rob sentia as peças da sua vida encaixarem-se num padrão complicado, mas compreensível. O isolamento de ambos, e o facto de os aspetos da sua vida parecerem desalinhados, fora uma fonte de sofrimento para ele. Ainda que tivesse algumas reservas em encontrar Ellie Jackson na sua casa com mais frequência do que gostaria, estava satisfeito, porque, pelo menos, os maus momentos pareciam ter chegado ao fim.
Numa outra vida, Ellie Jackson poderia ter sido missionária, tão grande era o seu zelo, tão pura a sua determinação. Era alta e esguia, de cabelo curto e grisalho e olhos pequenos, mas azuis e vívidos. Entrou impetuosamente na minúscula casa deles, na colina, como uma mudança no tempo, e assumiu a educação de Jade Moon com a mesma energia focalizada que aplicava às limpezas de Primavera ou à organização de quermesses da igreja. Aparecia todas as tardes, das duas às quatro horas, trazendo consigo livros de culinária e copos medidores, e rapidamente Rob voltava a casa, não para encontrar arroz e vegetais fritos no wok ou peixe picante, mas macarrão e queijo, hambúrgueres e cachorros-quentes com feijões, salada de batata e até cordeiro assado.
Muitas vezes, Ellie ainda lá estava quando Rob chegava, apontando para um utensílio ou outro, compensando o desconhecimento da língua inglesa de Jade Moon com o aumento do volume, nível a nível, até a sua voz alta, por vezes, acordar o bebé. Isto fazia com que Rob se irritasse, porque não servia de nada gritar, e porque ele próprio fazia o mesmo. Jade Moon não tinha a facilidade dele para as línguas, e ele não tinha a paciência de um professor de línguas. Para sua vergonha, ouvira-se repetir palavras, uma e outra vez, num volume cada vez mais elevado e com uma exasperação cada vez maior, como se, pela simples repetição, pudesse fazer com que ela compreendesse.
Deste modo, ficava satisfeito por ver que apareciam cada vez mais livros de textos ingleses, e por descobrir, um dia, que a maior parte dos objetos da casa tinha sido rotulado com os respetivos nomes em inglês, na caligrafia ordenada e lenta de Ellie. As janelas estavam abertas para deixar entrar a brisa do final da primavera, e as etiquetas de papel esvoaçavam ligeiramente. ARMÁRIO, dizia uma, FOGÃO, FRIGORIFICO, MESA, CHÁVENA, SOFÁ, RÁDIO, PRATELEIRA. Jade Moon lia-as, em voz alta, com orgulho. Apesar de Ellie ser espalhafatosa e agressiva, alguém que Jade Moon teria desdenhado no seu próprio país, na América, Miss Ellie era a sua única amiga.
Por vezes, Rob incomodava-se com o facto de os conselhos de Ellie se tornarem leis naquela casa. “Utilize leite para remover manchas de tinta de escrever”, diria Jade Moon, esfregando os bolsos da camisa, nos pontos em que as canetas dele haviam perdido tinta. “Vinagre e jornais fazem com que os vidros das janelas fiquem a cintilar.” Preocupava-o que Ellie tratasse Jade Moon de um modo, de certa forma, paternalista, como se o que ambas partilhavam não fosse uma amizade, mas uma grande dádiva que Ellie estava a fazer à sua aluna diligente e afortunada. Era por isso que Ellie o fazia pensar nas missionárias que vira, mas, porque Jade Moon parecia feliz, e porque o seu inglês estava a melhorar, não dizia nada.
Um dia chegou a casa do trabalho e encontrou Jade Moon andando entusiasmada pelas pequenas divisões. Tinha sido convidada para um jantar de mães e filhas na igreja. Iria ser um jantar com o que cada uma trouxesse, e Ellie pedira-lhe que levasse o prato que tinham aprendido a cozinhar naquela semana: um guisado de macarronete e atum com uma camada de batatas fritas. Jade Moon concordara em ir, mas tinha uma ideia secreta em relação ao que preparar. Não lhe iria dizer exatamente o que era, mas, rindo--se, disse que queria ir à cidade para procurar tecido para um vestido novo, e depois, queria que ele fosse ao lago e lhe pescasse uma truta arco-íris fresca.
Na noite do jantar, Jade Moon entrou na sala de estar com um vestido justo cor-de--rosa-escuro. Tinha uma cintura estreita e uma saia que alargava a partir da anca, como uma tulipa invertida. Levava a bebé, cujo vestido pregueado era de cor creme, decorado com renda e fitas que combinavam com o dela. Na cozinha, o prato misterioso estava coberto com folha de alumínio. Rob passara a maior parte do fim de semana anterior flutuando no lago ainda gelado, procurando o peixe, e, na viagem que haviam feito à cidade, Jade Moon desaparecera no interior de várias lojas de mercearias e num minúsculo mercado asiático, saindo com os braços cheios de embrulhos e um sorriso secreto no rosto. Trabalhara toda a semana nos novos vestidos, copiando o seu de uma revista que comprara. Agora, virava-se timidamente no quarto, esperando a aprovação dele. Rob ficou assombrado ao ver os seus braços brancos e o cabelo escuro contrastando com o material cor-de-rosa-escuro. Pensou que nunca vira nenhuma mulher tão bonita, e disse-lho.
Antes de Ellie chegar, enquanto Jade Moon estava a fazer uns arranjos de última hora na bainha, Rob dirigiu-se, em silêncio, à cozinha e levantou a folha de alumínio do prato que ela cozinhara para levar para o jantar. Viu logo que era, ao mesmo tempo, esplêndido e totalmente inadequado. Jade Moon tinha preparado um peixe especial. Virada de lado, a truta, cozinhada a vapor, estava rodeada de legumes cortados em formatos graciosos. O seu único olho visível olhava fixamente, e o rabo estava ligeiramente arqueado, como se, a qualquer momento, o peixe pudesse atirar-se para fora da travessa, em direção ao mar verde da toalha de mesa. Rob olhava para o peixe e perguntava-se o que devia fazer. Ellie já estava a bater à porta. Talvez, afinal, as mulheres compreendessem a importância deste gesto e fossem gentis. Assim, acenou a Ellie, que soltava exclamações diante do vestido de Abril, e não disse nada, quando Jade passou a porta transportando orgulhosamente o tabuleiro.
Era raro Rob estar sozinho naquela casa, e deu por si inquieto, passando de um objeto para outro, olhando constantemente para o relógio. Arranjou uma porta de um armário, depois montou prateleiras novas na casa de banho. As tarefas familiares acalmaram-no, e imaginou as senhoras da igreja a provarem o peixe por educação, descobrindo que estava bom. Imaginava-as a pedirem a receita, e Jade Moon a dá-la acanhadamente, num inglês lento, mas perfeito. O jantar durou mais de três horas, e quanto mais tempo passava, mais convencido ficava de que estava tudo a correr bem.
Por fim, no momento em que arrumava as suas ferramentas, ouviu bater a porta de um carro. Foi ter com Jade Moon ao alpendre. Os faróis traseiros do automóvel de Ellie já estavam a desaparecer no alto da colina. Jade Moon trazia a travessa em equilíbrio num dos braços, e segurava o bebé, que estava a dormir profundamente, no outro. Detivera--se no último degrau e voltara-se para olhar para a Lua, que subira tão redonda e fria como o olho do peixe, no céu límpido de verão.
— Onde está a Ellie? — perguntou Rob, pegando no bebé. — Porque é que ela não te ajudou?
Jade Moon não respondeu, mas voltou-se, no seu vestido cor-de-rosa, e caminhou em direção à casa. Na altura em que ele a seguiu até à cozinha, o peixe, totalmente intacto, ficou exposto no meio da mesa. O rosto de Jade Moon estava sem expressão, mas quase cinzento de embaraço. Ele pousou a bebé na pequena cadeira reclinável, em cima da mesa. Ela estava acordada, e a mexer-se alegremente, alheia à desilusão da mãe, mesmo quando Jade Moon deixou cair a face nas mãos e começou a chorar.
Aos poucos, ele persuadiu-a a contar-lhe a história. É evidente que conseguia imaginar as mulheres, os seus pequenos arquejos, os seus olhares de choque e, depois, de consternação, enquanto Jade Moon destapava o seu peixe. Uma mulher levara a mão à boca e abandonara a sala. Até Ellie ficara desorientada. Após um instante, o bonito peixe tinha sido movido para a outra extremidade da mesa. O resto da noite havia sido igualmente humilhante. Sempre que Jade Moon falava em inglês, as outras haviam-se rido, ou ficado com um ar baralhado e saído da sala. Mesmo quando ela repetia as palavras duas, três vezes, elas não tinham compreendido, e ela passara a maior parte da noite a ouvir conversas que não percebia, enquanto as mulheres terminavam todos os pratos e deixavam o seu peixe intacto.
— São apenas ignorantes — disse Rob. Levantou-se e pegou num prato. O peixe era macio, branco, suculento, e ele tirou um pedaço grande. — Ignorantes e tontas. Se o tivessem provado, perceberiam o que estavam a perder — comeu uma grande porção, devagar, e, em seguida, outra. — Está delicioso.
Quando ela não lhe respondeu, ele pousou o garfo e pegou-lhe na mão.
— Jade Moon — disse. — Lembras-te daquela vez em que tentei elogiar a casa da tua mãe, e, em vez disso, disse-lhe que a casa de banho era fantástica? — esperava que ela sorrisse ao ouvir aquela piada antiga entre os dois, mas ela não se riu. — Não te lembras? Toda a gente ficou chocada e eu terrivelmente envergonhado, mas não desisti. Temos de cometer erros para aprendermos.
O rosto de Jade Moon estava impassível.
— O inglês é uma língua feia — disse, falando com o rosto escondido nas mãos. — Soa como cães a ladrarem. Não quero conhecer esta língua.
Ele olhou para o perfil dela, o seu rosto estreito e os lábios generosos, e recordou o quanto ela odiava fazer coisas nas quais não fosse excelente. Uma vez, tinha rasgado um bordado inteiro por causa de uma falha minúscula que descobrira no primeiro ponto. Pousou os talheres e falou com ela severamente.
— Jade Moon — disse —, tens de aprender. Agora, este é o teu país. E se houver uma emergência e precisares de usar o telefone? E se me acontecer alguma coisa?
— Não sei — respondeu ela, olhando para cima, e ele viu a preocupação mover-se como nuvens pelo rosto dela. Depois, ela recompôs-se e tornou-se ainda mais obstinada. — Vou aprender as frases a utilizar em caso de emergência — disse. — Mas só isso.
Ele sentiu a paciência esgotar-se. Se ela não queria aprender, então iria ser dependente dele a vida inteira.
— Não passas de uma mulher preguiçosa — disse-lhe. — Preguiçosa, preguiçosa, preguiçosa — pronunciou enfaticamente a última palavra, consciente do grande insulto que significaria para ela, espantado, mesmo enquanto falava, pela espessura da sua própria crueldade. A face dela mudou e tornou-se silenciosa, fechada para ele. Na mesa, a bebé dava pontapés e arrulhava. Jade Moon pegou nela, limpou as lágrimas com as costas da mão, e voltou-se, deixando o peixe estragado no meio da mesa.
Nessa noite, Rob não dormiu bem, e, de manhã, Jade Moon evitou-o até ele sair para trabalhar. Quando ia a sair pela porta, deteve-se, perturbado pelo silêncio e por uma qualquer outra mudança subtil que ele não conseguia designar. Depois, apercebeu--se. Olhou mais uma vez em seu redor, do armário para o fogão, e da mesa para a cadeira. Todos os pequenos cartões brancos tinham desaparecido.
Primavera tinha dois anos quando o irmão nasceu, e nessa altura a discussão sobre a língua, os nomes, tornara-se um nó sensível, deformado, na carne viva do casamento. Quando Jade Moon apoiou o bebé no ombro e disse que lhe iria chamar Montanha, o ar tornou-se denso, devido aos anos de discussões acumuladas. Jade Moon, teimosa, continuou a falar. Ela própria viajara muito na sua vida, como o seu nome anunciava. Queria que o filho ficasse num lugar, tão sólido e firme como um rochedo no meio do mar. Dar-lhe-ia esse nome para garantir que ele seria forte. Proferia todas estas afirmações em tom de desafio. Rob suspirava, olhando para o pequeno filho de ambos. Quando a enfermeira o levou para preencher os documentos, ele bateu com o lápis na secretária de madeira, olhando pela janela do gabinete para o parque de estacionamento. Escreveu o nome do seu pai, Michael James.
Três semanas antes de o último filho de ambos nascer, apenas um ano depois, Jade Moon anunciou que, se fosse uma menina, lhe chamaria Mar.
— Porquê Mar? — perguntou Rob, erguendo os olhos do jornal.
As duas crianças mais velhas estavam a dormir, e Jade Moon estava sentada à secretária, leve, mesmo naquele último mês de gravidez, a escrever uma carta para os pais. O papel translúcido sussurrava docemente sob a sua caneta. Ainda que falasse com relativa fluência, Rob nunca lera bem na língua dela, e os caracteres pareciam ameaçadores e cheios de mistério. Era essa a sensação de Jade Moon, perguntava-se, quando andava pela cidade ou ia comprar mercearias? Por vezes tentava imaginar como soaria a sua própria língua, divorciada do significado. Seria melodiosa, como o Francês ou o Espanhol? Era como o cantar áspero do Chinês? Parecer-se-ia realmente com o som de cães a ladrarem? Às vezes, tentava ouvir apenas os sons do Inglês, mas, para ele, o som era o significado, era impossível separá-los.
— Mar — dissera ela — por dois motivos. Primeiro, porque é um mar que me separa e liga à minha família. E em segundo lugar, porque eu sou Jade Moon, e a Lua controla os movimentos do mar. Não quero que a minha filha viaje para tão longe como eu, nesta vida. Além disso — acrescentou — é um nome bonito, tanto na tua língua como na minha.
— Quando forem para a escola — argumentou ele — terão de ter nomes americanos. Porque não lhe chamas Maria? Vem do Latim. É um nome comum, mas significa mar.
— Maria — ela pronunciou as palavras, apagando o r de um modo que lhe recordava um dia, muito tempo antes, quando ele tentara ensinar-lhe o som (“framboesa”, “ruibarbo”) no campo que ficava atrás da casa. Agora, como nessa altura, soava estranho na boca dela, e alguma da raiva antiga começou a inflamar-se dentro dele. Era um som difícil, era verdade, mas ela estava na América há quase quatro anos.
— Está bem — disse ele. — Maria, Ma-rii-a. Vai ser esse o nome dela.
— Então, põe-lhe o nome de Maria — disse ela, voltando-se novamente para a sua carta. O seu cabelo comprido estava apertado com um elástico e compunha uma linha escura pelas suas costas abaixo. Mas eu vou chamar-lhe Mar.
— Porque és tão teimosa em relação a este assunto? — perguntou ele, atirando o jornal para cima da mesa.
Mas ela não lhe respondeu. Manteve os olhos fixos na carta, os seus dedos desenhando os caracteres complexos, misteriosos, de uma língua que ele não conseguia compreender na totalidade.
Depois de as crianças terem nascido, os anos passaram depressa, um a seguir ao outro, numa sucessão tranquila, ainda que Rob nunca tenha perdido a sensação de que estava a viver uma vida dupla. Tal como os ramos de uma árvore jovem, parecia que as partes da sua vida cresciam cada vez menos, e cada vez menos ligadas à passagem do tempo. Os seus dias decorriam numa comunidade onde contava piadas, trocava histórias, discutia e trabalhava na sua própria língua.
Ao estacionar no caminho da entrada, à noite, tinha de fazer um esforço consciente para mudar de um mundo, de uma língua, para outro. Era como entrar no passado, pensava ele, por vezes, ou passar, com um único passo, de um país para o outro. Guardava a caixa de ferramentas no abrigo e entrava pela porta com os bolsos cheios de serrim. Aí, encontrava a família reunida em volta da mesa, dobrando animais de papel, ou cantando canções, enquanto Jade Moon cortava anéis de cebola, ou trabalhava diligentemente os complexos caracteres do seu alfabeto. As crianças eram suas desde que nasciam até começarem a frequentar a escola, e, se o mundo delas era um mundo isolado, Jade Moon procurava que fosse repleto de aprendizagem, pleno de alegria.
— Eles deviam aprender a falar inglês — disse ele, uma noite, quando as crianças estavam deitadas. — Mesmo que tu não queiras aprender, as crianças têm de fazê-lo.
Ela pousou o bordado e levantou os olhos para ele.
— Deixa-me contar-te uma história — respondeu. — Quando eu era pequena, os meus pais tinham um amigo que foi para Hong Kong, para trabalhar. Enquanto lá estavam tiveram uma menina, e, visto serem ricos, contrataram uma rapariga local para tomar conta dessa bebé durante o dia. Passaram dois anos, depois três, e, apesar de a bebé ser feliz e saudável, continuava a não falar. Eles começaram a ficar preocupados, e até consultaram um médico. Depois, um dia, estavam a dar um passeio, e pararam numa loja para comprar comida. A bebé estava a tagarelar. Pensaram que se tratava apenas dos balbucios de bebé até que, de repente, a dona da loja, uma chinesa idosa que também falava um pouco da língua deles, ergueu os olhos, a sorrir. “Que engraçado”, disse. “A bebé fala chinês!”
Rob começou a rir-se, mas percebeu logo que essa era a reação errada.
— Não — disse Jade Moon. — Como achas que aquela mãe se sentiu por não perceber as primeiras palavras da filha? Como pensas que se sentiu, por não ser capaz de falar com a sua própria filha? Eles também são meus filhos — disse. — Não são só teus nem da América. Quero poder contar-lhes tudo sobre a minha vida.
Foram filhos dela até começarem a frequentar a escola, mas, no fim, Jade Moon perdeu cada um deles para a América. Rob passou a temer os primeiros dias de escola, a forma como os seus filhos voltavam para casa, um atrás do outro, primeiro lavados em lágrimas e, mais tarde, reservados, isolados e baralhados com a língua estranha. No entanto, Rob também ficava espantado com a rapidez com que aprendiam, com uma aptidão que ultrapassava mesmo a sua. Passadas algumas semanas, conversavam, não na perfeição, mas fluentemente, com as outras crianças. Tentou ajudar, falando inglês com eles no carro, ou enquanto Jade Moon estava lá fora, a estender a roupa, ou ocupada com a jardinagem.
Quando cresceram, ele supervisionava os seus trabalhos de casa, verificando se cometiam erros. Eram todos inteligentes, e a sua inteligência ajudava-os a ultrapassar a crueldade irrefletida das outras crianças. No final, todos conseguiram alcançar e até ultrapassar os colegas. Abril era editora do jornal, no seu último ano de escola. Michael tocava clarinete e fazia desenhos complexos que foram premiados. Maria candidatou-se a tesoureira da sua turma, e ganhou. Sobreviveram aos anos difíceis; cresceram. Tal como ele, tinham as suas vidas secretas fora de casa, as suas vidas ao telefone, de bailes de finalistas e discotecas.
Via-os rodarem os olhos, nas costas de Jade Moon, quando ela se recusava a falar inglês, e não dizia nada. Sentia que aquela cumplicidade era o mínimo que podia oferecer, porque sabia que, muitas vezes, eles ainda se sentiam magoados. Adivinhava-o pelos silêncios tensos, reservados, de que se rodeavam de vez em quando. Não se propunham a partilhar a origem desse sofrimento, e, por isso, ele sentia-se, inicialmente, grato. Dizia a si mesmo que eles saíam a ele, que preferiam resolver as coisas por si mesmos, em privado e em silêncio. Foi só mais tarde quando, um a um, os seus filhos
saíram de casa em busca de cidades maiores e vidas contidas, controladas, anónimas, vidas distantes, que ele começou a imaginar a profundidade da dor que eles deveriam ter sentido e desejou voltar atrás, para tocar os ombros tensos, para compreender.
Cinco anos depois de Maria se ter formado, Rob caiu de uma escada, no trabalho, e feriu as costas. Deitado no chão, sem conseguir respirar, sentindo uma dor como se lhe estivessem a cravar pregos na coluna, percebeu que os seus dias na construção tinham terminado. Quando acabou a fisioterapia, a empresa deu-lhe um trabalho de secretária. Ficava sentado no escritório sem janelas, a tratar de papéis e a atender telefonemas, e a pensar no tempo, quarenta anos antes, em que trabalhara no navio rádio, com o futuro aberto à sua frente, como o mar. No fim, propuseram-lhe uma reforma antecipada, e ele aceitou-a. Embalou as poucas ferramentas que lhe restavam e afastou-se de uma das metades da sua vida. Enquanto estacionava a cartinha, nesse último dia, e levava a caixa de ferramentas, pela última vez, para o abrigo, levantou os olhos e viu Jade Moon, de pé, na janela da cozinha, preparando o jantar, cantarolando baixinho. Deteve-se, por instantes, no caminho da entrada. A canção era ao mesmo tempo alegre e perturbadora, uma velha canção do país dela.
A voz de Jade Moon tremia, e a luz de agosto tremeluzia em volta da casa. Nesse momento, sentiu uma urgência, um pânico repentino, como se a casa e a sua vida no interior da mesma fossem parte de uma miragem. Parecia que, dessa vez, a tentativa de saltar de uma vida para a outra o faria cair de uma altitude terrível. O seu medo foi tão repentino, e tão grande, que se voltou para regressar à cidade. A seguir, uma pontada de dor nas costas fê-lo parar. Alguns momentos depois foi ficando mais calmo e conseguiu andar para a frente, percorrendo a distância com alguns passos; afinal, os seus pés estavam em terra firme.
A princípio, os dias eram difíceis, longos e desassossegados, e ele descontraía-se concentrando-se em projetos na casa, trabalhando até tarde, nas longas noites de verão. Depois, as suas costas cederam e viu-se obrigado a permanecer imóvel, na cama, enquanto Jade Moon se deslocava silenciosamente pela casa. Observava-a enquanto ela passava de uma divisão para a outra, surpreendido com a sua energia, a sua graciosidade tranquila, os traços da juventude que ela mantivera na meia-idade.
Houvera momentos, mesmo quando era jovem recém-casado, em que Rob olhava para Jade Moon e via como ela seria com mais idade. Ela podia estar a fazer qualquer coisa — a esticar-se para chegar a uma prateleira mais alta, para tirar uma lata, a regar um vaso, a mexer a sopa. Por um instante, ele conseguia vê-la — a idade, nas suas barrigas das pernas estreitas, ossudas, como as de uma mulher idosa, a idade, na graciosidade cuidadosa dos seus gestos, a idade, na curva rígida dos seus dedos
segurando uma colher. Num instante, tudo desaparecia, perdido no desempenho das suas ações, no ressurgimento do seu eu jovem.
Agora, novamente sozinho na solidão da casa de ambos, descobria um fenómeno oposto: sob a superfície das rugas e dos movimentos lentos, Jade Moon retivera elementos da sua juventude, o cabelo mantinha-se escuro e os seus ombros ainda eram macios e firmes. Por vezes, quando ela saía do banho envolta numa toalha, os seus ombros brancos interrompidos pela água negra do seu cabelo, ele era invadido por uma sensação de tempo a desmoronar-se. Ela rir-se-ia, se se aproximasse dela, nesse momento.
— Mas eu estou tão velha — diria. — O que é que ainda vês em mim?
Ele não respondia, e ela soltava o riso de uma mulher jovem, enquanto a toalha escorregava para o chão.
— Temos tanta sorte — disse-lhe ela uma vez. — Podemos voltar a viver os momentos mais felizes das nossas vidas.
Jade Moon permaneceu elegante e ágil, mesmo quando Rob, confortável, então, na sua reforma, ganhou alguma barriga e sentiu a rigidez tomar conta das suas articulações. Esperava que ela vivesse mais tempo do que ele, e tomava precauções cuidadosas, secretas, para se certificar de que não lhe faltaria dinheiro. Havia a sua apólice do seguro de vida, adquirida muitos anos antes, e que agora rendia prémios avultados. Havia ações e títulos de primeira categoria, guardados na caixa-forte de um banco. Por vezes, levantava-se cedo, de manhã, e conduzia a velha camioneta até à cidade. Tomava café e donuts na padaria, com os outros homens reformados, conversas simples que eram como sair de debaixo de água, e depois dirigia--se ao banco para contar os seus modestos investimentos.
Apreciava o odor forte do metal e do couro na sala do cofre-forte. Gostava de se trancar numa cabina minúscula e de escrever os números. Acima de tudo, gostava da sensação que tinha, quando voltava a colocar a caixa e a chave, e saía do banco. Era a mesma sensação que o invadia quando acabava uma casa e sabia que era sólida, que iria durar. Acontecesse o que acontecesse, Jade Moon nunca passaria necessidades. E conduzia ao longo das estradas rurais, sentindo-se triste pela ideia da sua própria morte, mas, ainda assim, profundamente satisfeito com as suas disposições.
Nunca pensou em como seria a sua vida se fosse ela quem morresse primeiro e, assim, quando surgiram os primeiros sinais de que isso iria acontecer, conseguiu ignorá--los. Se Jade Moon estava pálida, bem, sempre tinha tido a pele clara. Quando a viu parar e levar a mão ao coração, como se sentisse dores, pensou: “Bem, afinal, ela está a envelhecer, e eu também.”
Por fim, chegou o dia em que Jade Moon desmaiou. Estava a trabalhar na horta, mas o dia estava enevoado e ela estava apenas a regar com uma mangueira. Correu para junto dela, do local onde estava a reparar a vedação, e a expressão no rosto dela — algo próximo da dor que ele testemunhara durante os três partos dela — convenceu-o a levá--la, finalmente, a um médico. Seguiram até ao mesmo hospital em que os seus filhos tinham nascido, a trinta quilómetros de distância. Já existia uma nova autoestrada, mas Rob enveredou pela estrada antiga, sentindo-se mais confortado pelas curvas e colinas que lhe eram familiares.
Ao todo, fizeram aquela viagem mais três vezes, durante os três meses seguintes, para fazerem exames. Ele esperava algo simples e curável: pressão arterial elevada, um sopro no coração, pedras nos rins. Na consulta anterior, o médico levou-os até ao consultório para lhes dizer, tranquila e gravemente, que Jade Moon sofria de cancro, em estado avançado e inoperável. Rob ficou tão chocado que não conseguia falar. Mesmo depois de terem saído do hospital e de estarem a circular pelos campos brancos de neve, na estrada rural, não era capaz de falar. Conduzia devagar, olhando, de vez em quando, para Jade Moon, pelo canto do olho.
— Então, estou a morrer — disse ela por fim. — Pensei que estava doente, e agora sei.
— Vais melhorar — insistiu ele, ainda que o médico não lhes tivesse dado esperanças. Depois, ele voltou-se completamente para ela, surpreendido, por um momento, por puro medo. No hospital, ficara demasiado aturdido para traduzir, e ainda assim, Jade Moon compreendera a afirmação terrível que fora feita. Do lado oposto da camioneta, ela estava a olhar para fora, para os campos brancos e ondulantes, e ele detetou o rasto de um sorriso a surgir nos cantos da boca dela.
— Lembras-te — disse ela — do primeiro inverno em que apareceste na nossa aldeia? Também estava a nevar, nesse momento, tal como agora, e todos ficámos chocados com aquele chapéu de pele que tu trazias. Tão alto, parecia algo saído de um quadro russo. Foi o que pensei. Eras tão estranho, e bonito, como um homem saído de um quadro. Pensei mesmo que fosses russo.
Ele tentou lembrar-se do seu primeiro dia na aldeia dela, mas tudo o que conseguia recordar era uma confusão de rostos que o olhavam fixamente e que surgiam, aqui e ali, no meio da neve.
— Lembro-me de algumas meninas da escola — disse ele. — Lembro-me de um grupo inteiro de raparigas que me observavam, quando eu entrava. Quando me aproximei, todas começaram a rir-se e fugiram a correr. Usavam botas e corriam pela neve.
— Nem todas corriam — disse ela. — Eu estava no meio delas e fiquei e observei--te. Sabias que decidi, nesse momento, que iria casar contigo? Precisamente no momento em que entraste na cidade, estava a planear aprender russo, para poder falar contigo.
Riu-se. Rob percebeu que ela lhe estava a dizer que não estava arrependida de nada. Fizera a sua escolha, naquele dia de neve; desejara-o, e tudo o que se seguira ficara justificado por aquele momento. Ele sentiu um aperto no peito e saiu da estrada, para uma área debaixo de um conjunto de pinheiros. Inclinou-se na direção dela e pôs-lhe o braço em volta dos ombros. A velha camioneta cheirava a anos de cigarros e, muito ligeiramente, a querosene. Jade Moon parecia pequena e frágil, sob os casacos e cachecóis volumosos. A bochecha dela estava seca e encostada à dele. Após um momento, afastou-se cuidadosamente. Pousou a sua mão esquerda na bochecha dele.
— Rob — disse ela, sobressaltando-o com o seu inglês perfeito e melodioso. — Por favor. Queria ir para casa.
A doença, que se dera a conhecer tão devagar, progredia agora a uma rapidez espantosa. Para Rob, ignorar as suas costas doentes e cortar acha após acha de madeira, para libertar a energia selvagem que o dominava com a ideia da morte dela, era como aprender uma palavra nova. Durante anos, tinha tentado ignorá-la, mas, assim que se tornou conhecida, parecia surgir por todo o lado.
Os sintomas de Jade Moon eram agora tão claros, tão óbvios, que ele se questionava pelo tempo que passara sem os ver. Ela perdeu peso, cansava-se facilmente. E, depois, os medicamentos tornaram-se menos eficazes, à medida que as dores aumentavam. Dois meses mais tarde, ela passava os dias na cama, a ver televisão e a tricotar. Ele escrevera imediatamente aos filhos a contar as terríveis notícias, e eles telefonavam para casa, então, a intervalos regulares, incentivados, de cada vez, pelo tom conversador e inteligente de Jade Moon. Abril estava na Califórnia, trabalhando como editora de uma empresa de testes. Michael era advogado, em Seattle, Maria estava casada com um arquiteto paisagista, e vivia em Chicago. Diziam que viriam quando a doença se agravasse, e não acreditaram nele, quando lhes tentou dizer que já era bastante grave. Eram todos bons a negar o que preferiam não ver; era assim que tinham sobrevivido, afinal. Era apenas Rob quem via a forma como ela desligava o telefone e se deixava cair nas almofadas, de olhos fechados para combater as ondas de exaustão e de dor que a atacavam.
— Têm de vir — disse a cada um deles e por fim conseguiu convencê-los. Encontrar-se-iam em Chicago, em casa de Maria, e apanhariam um avião juntos para regressarem a casa. Rob assentiu ao telefone, e disse a cada um deles que se apresasse.
— Estou tão preocupada — disse Jade Moon, na manhã em que os filhos deveriam chegar. Ele dissera-lhe que eles vinham e, agora, os dedos dela moviam-se num padrão
inquieto ao longo dos lençóis. A medicação deixara-a sonolenta e esquecida. — Estou preocupada, e não consigo lembrar-me dos nomes deles.
Ele alisou-lhe o cabelo para trás.
— Temos três filhos — disse-lhe. Nessa altura ela já sabia que ele lhes havia dado outros nomes, nomes legais, mas, nesse dia, ele falava devagar e usava os nomes deles da infância, os que ela escolhera. — “Primavera. Montanha. Mar.”
— Ah! — disse ela — Sim.
Ele ficou aliviado por ver como ela se descontraiu nessa altura, como se cada nome se tivesse espalhado por ela como uma droga.
— Primavera — repetia ela, e fechava os olhos. — Montanha. Mar — a sua respiração tornou-se mais profunda, e ele percebeu que ela estava a dormir.
Ele levantou-se e aproximou-se da janela. Alguns anos antes, a câmara alargara a estrada e aprovara uma pedreira na colina em frente. O trânsito aumentou; as máquinas tinham cortado um grande rasgão na parte lateral, e agora os enormes blocos de pedra repousavam, ao acaso, nas colinas, brancos e inertes, como elefantes adormecidos. O ruído, o rasgar da terra, haviam perturbado Jade Moon, e ela mantivera as cortinas fechadas, dia e noite, para não ter aquela vista.
Agora ele afastava-as e, apesar do calor espesso dentro de casa e do frio lá fora, abriu a janela. O ar fresco e iluminado pelo sol precipitou-se em volta do seu rosto. Em casa dos pais de Jade Moon, ele permanecera exatamente assim, numa tarde de Inverno, trocando o calor sufocante do fogo pelo ar cortante, refrescante, das divisões que não estavam aquecidas. E foi na primavera, quando o ar era tão fresco e puro como água de um poço, que ele saiu para passear com Jade Moon nas colinas atrás da casa dos pais dela.
Havia um lugar onde costumavam ir com frequência, mesmo por baixo do cume da montanha, onde uma saliência de rocha se projetava sobre o mar. Costumavam sentar-se aí, na rocha aquecida pelo sol, temperada pela frialdade do ar, Jade Moon colhendo as delicadas flores silvestres e olhando, de vez em quando, à distância, para a extensão de mar, para os lugares para onde ele a levaria, dali a um ano. Fora há tanto tempo. Tinham partido como haviam planeado, e em todos os anos do seu casamento, nunca tinham voltado.
Jade Moon mexeu-se atrás dele; ele desejava que os filhos se apressassem. “Primavera, Montanha, Mar”, murmurava ele, como um feitiço, como se as palavras que tinham o poder de acalmar a sua mulher pudessem também fazer com que os filhos abandonassem mais depressa as suas vidas.
A imagem que lhe chegava era incompleta, da mesma forma que uma armação apenas sugere a casa acabada. Voltou a pronunciar os nomes deles, para que adquirissem forma. “Primavera, Montanha, Mar.” As sílabas tornaram-se subitamente tão poderosas como um poema. Quantas vezes a ouvira dizê-las? No entanto, para ele, até àquele momento, elas sempre tinham evocado apenas os rostos individuais dos seus filhos e o peso da sua vida dupla. Nunca tinha pensado nelas desta forma, como Jade Moon deve ter pensado, três pequenas cadências de língua que reconstruíam o seu passado partilhado. Primavera, montanha, mar: ele estava sentado num rochedo, olhando para um oceano tão vasto e pleno de promessas quanto o seu futuro, e Jade Moon, jovem e encantadora, estava a apanhar flores, ao seu lado.
Ela agora estava a dormir. O seu cabelo, ainda escuro, caíra-lhe para o rosto. A beleza obstinada da sua face prendia-o, e levou-o a pensar nas suas inúmeras traições, ao longo dos anos. Fechou a janela. Ao atravessar o quarto, teve novamente a sensação fugaz da juventude dela, mas, quando lhe afastou o cabelo da cara, apercebeu-se da firmeza com que a pele estava agora presa ao crânio.
Deitou-se ao lado dela, como costumava fazer nas noites antes de Primavera nascer, quando ela sentia tanto frio e ele falava com ela, até Jade adormecer nos seus braços. Não sabia se ela o conseguia ouvir, ou se já se encontrava para além do poder das palavras que a pudessem acalmar, construir ou reconfortar. Ainda assim, falou-lhe com doçura e firmeza, tanto na sua língua como na dela, contando-lhe o que acabara de compreender.
Quando os filhos chegaram, foi assim que o encontraram, murmurando os seus antigos nomes, que haviam sido abandonados, uma e outra vez — como se, pelo simples facto de os repetir, pudesse fazer com que ela compreendesse.


Kim Edwards
Um brilho no escuro
Porto, Civilização Editora, 2008
(Excertos adaptados


segunda-feira, 25 de março de 2013

Il faudra

 Monet

L’enfant était assis là sur son île.
Il regardait le monde et réfléchissait.

L’enfant vit les guerres.
Il se dit il faudra peindre les uniformes des soldats.

II faudra, des canons de leurs fusils,
faire des perchoirs d’oiseaux et des flûtes de bergers.

L’enfant vit les famines.
Il se dit il faudra attraper les nuages au lasso et les faire pleuvoir sur les déserts.
Il faudra creuser des rivières d’eau et de lait.

L’enfant vit la misère.
Il se dit il faudra apprendre à additionner, soustraire et multiplier, et puis à diviser.

Il faudra apprendre à partager l’argent, le pain, l’air et la terre.

L’enfant vit les puissants se goinfrer, ordonner, clamer et décréter.
Il se dit il faudra leur ouvrir les yeux ou les chasser.

L’enfant vit l’océan.
Il se dit il faudra le laver.
Et puis s’asseoir devant, juste rêver.

L’enfant vit les forêts.
Il se dit il fera bon s’y promener, s’y aventurer, y écrire des histoires pour s’y perdre, puis se coucher sur la mousse pour les écouter.

L’enfant vit les larmes.
Il se dit il faudra apprendre à s’enlacer, à ne pas avoir peur des baisers.

Il faudra apprendre à dire je t’aime même sans l’avoir jamais entendu.

L’enfant leva la tête.
Il vit la lune un drapeau planté au front, stupide affront.

Il se dit il faudra l’enlever et lui demander pardon.

Enfin l’enfant regarda le monde une dernière fois de son île.

Puis il décida…

… de naître.

Thierry Lenain ; Olivier Tallec
Il faudra
Paris, Éd. Sarbacane, 2004

sábado, 23 de março de 2013

Diálogos de prima Vera


- Olá! Estás bem?
- Olá.Ando com a tensão muito alta. Nunca tal me aconteceu.
- Não tomas nada?
- Nunca tomei nem nunca tive a tensão assim.
- E vês razão para isso?
- Não sei, mas a turma de percursos alternativos dá-me que fazer.
- E os pais colaboram?
- Se colaborassem, talvez os problemas fossem menores.
- Mas sabem do que se passa, com certeza!
- Sabem os que sabem, porque aqueles com quem é preciso dialogar mais às vezes não vêm à escola e se vêm é para dizer que os miúdos são assim e temos de compreender. Parece que são eles que mandam.
- Não está fácil para ninguém e para muitos pais a coisa é complicada. Depois, onde falta o pão...
- Mas, desculpa lá, quero desligar um pouco a ver se a tensão baixa esta semana em que posso gerir os meus horários sem pressões.
- É verdade, tens razão e cada um tem de ter as suas defesas senão está tramado.
- O que vais fazer hoje?
- Não quero ter programa. Talvez reparar melhor nas árvores que começam a florir.


sexta-feira, 22 de março de 2013

Catálogos


A última peça de teatro que vi foi "Os desastres do amor", a partir de textos de Marivaux, com encenação de Luís Miguel Cintra. A representação foi no Teatro Nacional de S. João, no Porto. Trouxe, como quase sempre, o catálogo que costuma ser distribuído gratuitamente.

Sendo o catálogo um trabalho aparentemente acessório, é muito importante para se compreender a peça, o autor e tudo o que está à volta do espetáculo.


No caso presente, Luís Miguel Cintra assina o texto "Este espetáculo". Na peça, o ator tem o papel de um grotesco "Dom Cupidom, um hóspede permanente que se crê Cupido; Redondinho, trabalhador do eventual do Fortuna Palace".


Para além de muitos assuntos que aborda nesse texto do catálogo, este grande homem do Teatro escreve:
"Preciso do teatro como do pão para a boca. Para pensar. E sobretudo estar com os outros. Um espaço pelo qual neste momento já é preciso lutar. É no teatro que tenho tentado aprender a viver e, com tanta peça de todas as épocas que estudei, tenho vivido em permanente estado de reflexão sobre os seres humanos e sobre a evolução das sociedades" (p. 5).

E muito mais se pode encontrar neste(s) texto(s) que ajuda(m) a compreender melhor as obras, os cenários, os figurinos, os desenhos de luz, a música, a interpretação...

O encenador e ator reitera, em cada palavra, o seu amor pelo Teatro e pela Vida, terminando o seu texto, dirigindo-se a Rita Blanco, Felícia: "Foi de amor que falámos, sim, Rita. Com a nossa arte, que nenhum money can buy".


Os textos explicativos ajudam a compreender uma imensidão de trabalhos realizados e que convergem numa peça de teatro. Só aparentemente são voláteis como parece ser qualquer catálogo.

Vou continuar a lê-los e a guardá-los na caixa habitual. A propósito, vou ver se arranjo um tempinho para arrumar essa caixa. Porei um separador com o título: "catálogos"; o subtítulo poderia ser: "Também obras de arte".