quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O rebanho perdeu as asas



Van Gogh

O sino da igreja, que ficava em frente da escola, já tinha repetido quatro sonantes badaladas. Apressados, metemos nas pastas livros, cadernos, lápis, marcadores, borrachas, lapiseiras. E, quando a porta da sala foi aberta, saímos cheios de pressa.

Era nessa tarde, tinha de ser!

De resto, tudo estava combinado desde manhãzinha. Triunfante, o Aires todo o dia mostrou a caixa de fósforos que trazia no bolso das calças encardidas, e o Artur segredara que o molhinho de colmo estava escondido entre dois penedos.

Com as pastas a bater nas costas, corremos por caminhos pedregosos e quelhos enfeitados com silvas e urtigas. Corados e com o coração aos pulos, num instante estávamos ao fundo da aldeia, junto da Casa Velha. Era uma casa desfeita, sem telhado; as pedras, que outrora formaram as paredes, estavam amontoadas no chão. Tinha uma trave grossa e negra que ameaçava ruir a qualquer momento.

Era aí que eles moravam. O Jaime, que se achava muito importante por ter sido o primeiro a descobri-los, jurava que eram mais de um milhão. O Artur arrancou uma giesta fininha, torceu-a várias vezes, fez dela um vincelho seguro que atou numa mão cheia de colmo. Estava tudo pronto para iniciarmos o ataque, mas a barulheira que vinha do fundo da casa dava-nos vontade de desistir.

Calados e quietos assim estivemos bastante tempo. Irrequieto, não suportei mais tanta hesitação:
Então? Vamos ficar pasmados o resto da tarde? Quem vai na frente?
Silêncio.
Quem vai lá?
Respondeu um melro em cima de uma oliveira.
Ih, tanto medo! Vou eu na frente!

Disse aquilo só para não estar calado, para animar os colegas; a verdade é que não me apetecia nada tomar a dianteira. Artur correu a pôr-me na mão o molhinho de colmo, e o Aires riscava o primeiro fósforo, que se apagou bruscamente. Ao décimo f< span style="COLOR: #57201f;">ósforo o colmo começou a fumegar. Ninguém falava, os gaios encarregavam-se da barulheira. O ataque tinha riscos, oh se tinha!

O Artur emprestou-me o chapéu de palha. Pu-lo na cabeça e avancei com cautelas exageradas. Quando fiquei mais perto da trave, pareceu-me que o barulho aumentou. Fiz de conta que não era nada comigo e dei mais alguns passos em frente. Assustei-me junto do ninheiro de cães vadios e parei. Por cima da minha cabeça lá estavam eles!

O molho de colmo desfazia-se em fumo e labaredas. Pus-me em bicos de pés e levantei a chama na direção da trave. Mas não consegui tocar-lhe. Pedi:
Tragam uma vara comprida!

Num instante os moços estavam à minha beira. Ainda hoje não descobri como conseguiram desencantar vinte varas em tão curto espaço de tempo.
Vamos embora! Deixem-nos em paz! Eles não nos fizeram mal!... disse a medo o Luís Pequeno.

Nem lhe respondemos. O Aires levantou a vara e tocou levemente naquele favo comprido, acastanhado, tão bonito e tão perfeito. Foi o que bastou. De imediato formou-se uma nuvem por cima das nossas cabeças. Alarmados com o zumbido ensurdecedor, começámos a fugir em grande correria.

Endiabrados, os besouros defendiam a sua casa. Senti ferroadas no pescoço, nas mãos, na cara. Deixei para trás o Aires a rebolar-se no chão, atirei com o resto do colmo a arder para cima das pedras amontoadas, tirei o chapéu da cabeça e comecei a defender-me com ele, tropecei num tojeiro e continuei a corrida, logo atrás o Luís Pequeno que só sabia dizer:
Eu avisei, eu avisei, eu avisei...

Os besouros não desistiam. Atravessámos um campo de centeio e o dono, o Tio Zé Galo, que andava a regar o batatal, quando nos viu a fazer estradas na pequenina seara madura, começou a barafustar, com a sachola ameaçadora. Depois juntou-se a nós, correndo e barafustando:
Olha a minha vida! Olha a minha vida! Ah, mariolas!

E eu sempre a correr atrás do Luís Pequeno não sabia se os mariolas éramos nós ou os besouros. Acabámos as correrias quando mergulhámos numa poça cheia de água, que nos esperava, límpida e transbordante, ao fundo de uma leira de milho.
Mariolas! repetia o Tio Galo no meio da poça, com a comprida madeixa de cabelo que lhe servia para esconder a careca, muito esticada, a pingar gotas de água sobre as costas.

A nuvem desapareceu e nós começámos a rir, cheios de dores. Eu tinha os lábios inchados, umas bochechas mais esticadas que balões, e o Tio Zé, com um olho fechado e a testa papuda e roxa, com os braços levantados, fartava-se de gritar no meio da poça:
Ah, moçarada! Mariolas! Então vão fazer guerra aos besouros, seus palermas! E agora quem vai pagar o centeio que estragaram?
Não fomos só nós!... O Tio Galo também ia na frente do Acácio a bater com a enxada para um lado e para o outro... disse o Aires, enquanto coçava freneticamente a perna esquerda carimbada com três ferroadas.

Depois começámos a rir. É que o Tio Zé não conseguia sair da poça porque as botas estavam enterradas na lama. Chegámos-lhe a ponta de uma estaca, ele agarrou-a e nós, muito certos, começámos a puxar:
Ou-pa! Ou-pa!

Mais tarde esprememos bagos de uvas verdes sobre as picadelas, depois de arrancarmos os ferrões. Mas antes tivemos de voltar a correr por entre o milharal, porque o Tio Galo, dorido, furioso e encharcado, não largou a estaca e batia em tudo o que encontrava pela frente. Quando cheguei a casa, a minha mãe alarmou-se. Num dia só a minha cara dormente tinha duplicado, triplicado, quintuplicado de tamanho… A partir desta data comecei a detestar besouros, e, por acréscimo, os restantes familiares donos de ferrão.
E tinha-lhes muito respeitinho. 

o podia imaginar que meses depois havia de andar com milhares de abelhas às costas.

Meu pai tinha uma grande paixão pelos enxames. Perdi a conta às vezes que ficou parado em frente de uma colmeia a ver entrar e sair as abelhas, numa azáfama contínua. Esquecia o tempo e os afazeres. Se não fosse minha mãe chamá-lo, ficava lá o dia inteiro.
Meu pai seguia caminho e olhava para trás sem nada dizer.

 Sabíamos que ficava triste por não possuir uma única colónia de abelhas. Às vezes, a meio do ano, passavam enxames unidos em nuvem compacta e zumbidora pelos campos e leiras que trabalhávamos. Meu pai largava as rábicas do arado, o podão, a enxada ou a foicinha para correr como um atleta atrás do enxame desnorteado. Pegava em punhados de terra e areia e atirava-os de encontro à nuvem acastanhada, e gritava até ficar rouco:
Pousa, abelha-mestra! Pousa, rainha!

Mas a rainha não ouvia e não poisava. E o enxame seguia viagem até o perdermos de vista. Meu pai ficava descoroçoado. Não tinha grande vontade de trabalhar e maldizia a sorte que teimava em não o favorecer.
Bichas malucas! Comigo não querem sociedade!… E não sabem o que perdem... dizia contristado, olhando em volta, de ouvido atento, à espera que o milagre acontecesse: que o enxame arrepiasse caminho e viesse poisar numa giesta, ou numa videira, junto dos cachos de uvas ainda com bagos do tamanho de ovos de rã.

Entusiasmado por meu pai, um dia acordei a suspirar por um enxame. É que não era nada fácil ter uma colónia de abelhas. As pessoas da aldeia eram ciosas dos seus enxames, não os davam nem vendiam. Um dia, quando o Outono despia as árvores com sopros de vento, e as vides choravam atadas nos bardos, meu pai entrou em casa, alegre como um cuco:
Até que enfim! Até que enfim!
Parece uma criancinha!... disse a minha mãe, que não se entusiasmava com «essas maluquices».

Meu pai não respondeu. Pegou em dois sacos de serapilheira, enrolou-os, pô-los por baixo do braço e disse para eu o acompanhar.
 A encosta era muito a pique. Quando chegámos ao cimo, estávamos alagados em suor. Vimos a casinha coberta com telhas de lousa e heras entrelaçadas nas paredes. Era a única, naquele descampado semeado de penedos gigantes. Nessa casa que transpirava fumo pelas frinchas do telhado, morava um homem. O velho Paulino. E um cão. Um grande cão preto, peludo e magro, sentou-se em frente da porta decorada com uma ferradura velha, e começou a rosnar.
Quieto, Tejo!

O velho Paulino abriu a porta e eu fiquei admirado quando vi que trazia um lenço preto na cabeça e um xaile pelos ombros. O cão, desconfiado, mostrava a dentuça cor de neve. E eu, calado como os penedos, não tirava os olhos do velho. Reparei que tinha a barba branca e rala a encobrir-lhe as rugas do rosto tisnado e seco.
Não reparem na minha figura. Aqui em cima está frio e eu aproveito as roupas quentes da minha mulher que já partiu, coitada.

Apeteceu-me rir e talvez o fizesse se, entretanto, meu pai não me desse uma suave cotovelada, enquanto dizia.
Vamos ver as bichinhas, tio Paulino?
Vamos lá. Antes, quero que provem da minha colheita. Tenho ali dentro mel de truz!

Entrámos na casa do velho, que era de uma só divisão. Havia um pote de barro na lareira acesa, por trás um preguiceiro e uma cama com as mantas e cobertores em desordem. A um canto estavam batatas enrimadas e algumas caixas de castanho, enegrecidas pelo fumo. De uma caixa pequena o velho tirou um frasco de mel. Sacou-lhe a rolha de cortiça, pegou num copo e encheu-o:
Provem!

Eu olhei para o copo e lembrei-me do sol. Pensei: «Este velho de lenço na cabeça e xaile sobre os ombros tem dentro das caixas negras pedaços de sol!».

Provámos o sol. Era muito doce, pastoso, e cheirava a serra.
Em minha casa não entra açúcar. A minha doçura é o mel! gabou-se o Tio Paulino, contente por me ver lamber os lábios.

Meu pai estava impaciente, queria ver as «bichinhas». Devagarinho, porque o velho andava apoiado num pau de carvalho a servir de bengala, fomos atravessando a serra, com o Tejo mais tranquilo depois que o deixei lamber-me as mãos. Descemos a uma pequena leira, abrigada dos ventos, e o zumbido começou. Alinhados junto a um socalco, lá estavam os cortiços, com as abelhas a entrar e a sair. Depois, rep arando melhor, admirei-me. Os cortiços, redondos e altos, eram troncos de árvores. A maior parte tinha pedacinhos de madeira a remendar os buracos que o tempo e os pica-paus se encarregaram de fazer.
Sou sempre eu a fazer as colmeias para os meus enxames explicou o Tio Paulino. Pego numa serra e ando por aí a descobrir troncos carcomidos, sem vida. Corto-os e depois, nas longas noites que passo sozinho em frente da lareira, só com o Tejo a fazer-me companhia, pego na enxó, no martelo e no formão e começo a retirar a madeira pelo lado de dentro. As lascas vão saindo e vão-me aquecendo. Passado algum tempo o tronco está todo aberto por dentro, pronto a receber um enxame.
Deve apanhar tanta ferroada!... disse eu, todo encolhido, a lembrar o mau bocado que passara com os besouros.
Não! o velho riu. As abelhas são bichinhos meigos, só espetam o ferrão quando se sentem ameaçadas. Mas, coitaditas, se espetam o ferrão acabam por morrer... Elas poisam nas minhas mãos, na cara, no pescoço, nas orelhas... e eu faço de conta que não é nada comigo, não lhes toco. E elas acabam por levantar voo.

Meu pai delirava com tantos enxames. E sonhava alto:
Se tudo correr bem, daqui a pouco temos tantos ou mais do que estes!
E eu acreditei. Sonhava com frascos e frascos cheios de sol, alinhados numa prateleira.
Estou tolhido das pernas, cada vez me custa mais andar... já não posso correr atrás dos enxames novos... Resolvi dar alguns cortiços aos amigos que têm amor a estes bichos. Pode levar dois enxames! O velho Paulino falava devagarinho, e eu sentia que tinha lágrimas escondidas na sua voz.

Pegámos nos sacos de serapilheira e com cuidado, para não alarmarmos as abelhas, enfiámo-los nos cortiços. Quando ficaram dentro dos sacos, bem atados nas pontas, começámos a descer a encosta, carregados com os enxames e os cortiços. Meu pai segurava também um frasco de mel que o velho Paulino teimou em oferecer-nos.

E, por estranho que vos pareça, era bom ouvir o zumbido das abelhas alvoroçadas com a estranha viagem.
Escondia-se o sol quando chegámos a casa. Minha mãe ficou admirada quando nos viu com os sacos às costas, e alarmou-se quando lhe dissemos, muito contentes, o que vinha dentro deles. Corremos para o quintal. Arranjámos uma laje comprida e experimentámos todos os cantos, à procura de um sítio abrigado do vento, onde o sol bate sse logo de manhãzinha. Com cutelos afiados desbastámos todos os arbustos que ficavam em frente dos cortiços.
Assim não batem em nada! disse meu pai, cheio de sabedorias.

A lua fazia-nos companhia quando retirámos os sacos. Por momentos as abelhas ficaram endiabradas, riscaram o céu, zumbiram com mais força. Depois acalmaram.
Não têm razão de queixa! disse meu pai A casa é a mesma, a terra é que mudou!

Na manhã seguinte acordei muito cedo e minha mãe avisou-me que o pai já tinha saído de casa. Não perguntei para onde tinha ido, sabia muito bem onde o encontrar. Saí de casa a correr. 

O orvalho fazia finíssimas teias de aranha nas pontas das giestas, nos picos dos tojeiros, e brilhava nas heras que teciam as bordas. No ar já havia abelhas. Meu pai estava ajoelhado atrás de um cortiço, a vê-las entrar e sair pelas ranhuras, rente à laje. Ajoelhei junto de meu pai e ali ficámos em silêncio a ouvir o zumbido que vinha de dentro da tosca colmeia. De repente meu pai levantou-se. Disse:
Que dizes, rapaz?!... E se lhes déssemos o mel que trouxemos da casa do tio Paulino?

Encolhi os ombros nada contente com a ideia.
Coitadinhas, devem estar esfomeadas... E se a gente as deixa morrer? Já viste, rapaz?!... Como é que elas vão arranjar comida, se agora não há flores! Rapaz, ouve o que te digo: se elas ficarem fortes, bem alimentadas, quando arribar a Primavera vão fazer mel em barda! Anda rapaz, vai num instantinho a casa buscar o frasco! E eu fui.

Minha mãe começou a barafustar: «se já se viu um disparate tamanho, nós estávamos a ficar doidos, o mel era tão preciso em casa, que ideia mais idiota!...» 

Pusemos o frasco deitado e sem rolha em frente dos cortiços. Gerou-se logo grande alvoroço nos enxames, as abelhas deviam ter ficado contentes com a surpresa. Fomos tratar do gado e da terra depois de a mãe nos ter chamado muitas vezes. À noite fui espreitar o frasco. Do mel só tinha o cheiro. Admirado, levei o frasco vazio para casa.

Passaram-se muitos dias e muitas noites. Vieram ventos, vendavais, trovoadas, enxurradas. O chão cobriu-se de neve e de gelo. As abelhas tiveram direito a maçãs cozidas no Natal e nos dias em que o frio tomava conta da terra. Nas noites longas do Inverno, sentados em frente da lareira acesa, meu pai e eu fizemos um par de cortiços com o tronco de uma macieira velha que o vento derrubara.
Em Março a chuva encharcou as terras, e os arados revolveram-nas.

Quando o cuco cantou pela primeira vez e os gamões das vides acordaram em pequenas folhas, as abelhas corriam em todos os sítios, desde manhãzinha ao sol-posto. E entravam carregadas de pólen, exaustas com a carga. Depois voltavam a sair e voavam para muito longe. E meu pai todo contente a vê-las trabalhar:
É muito bonito ter um rebanho com asas!

Num dia de Junho, minha mãe começou a chamar por mim e por meu pai, que andávamos ao fundo de uma leira a regar milho. Aflita, esganiçava a voz:
Saiu o enxame! Saiu o enxame! 

Largámos as enxadas, deixámos a água a correr e atravessámos o milharal mais lestos que coelhos do monte a fugir dos caçadores. Meu pai não se calava:
Pousa abelha-mestra! Pousa rainha! Corre rapaz! Ajuda! Pousa! Grita rapaz! Pousa rainha! É o terceiro enxame! Pousai, minhas lindas!

Eu não gritava porque sabia que as abelhas não ouviam. Quando chegámos à beira de minha mãe, esbaforidos com a correria, começámos a rir. Num ramo de um pequeno carvalho havia um cacho. Um cacho muito apertado de abelhas. Corri a casa buscar um cortiço. Meu pai poisou-o sob o ramo, sacudiu-o. Minha mãe fugiu, e as abelhas caíram dentro do tronco de macieira.

À noitinha quando colocámos o enxame novo junto dos outros, meu pai rejubilava:
Rapaz, já temos três, TRÊS enxames! Temos de fazer mais cortiços!
Em Agosto, numa manhã de domingo, retirámos com cuidado as tampas de lousa, que serviam de telhado aos cortiços, depois de meu pai ter feito uma comprida morraça com um pedaço dum saco de serapilheira, onde ateou o fogo. O fumo baralhava as abelhas que fugiam, pouco contentes com o assalto. Com uma faca recurvada em forma de lua em quarto crescente, meu pai tirou alguns favos do cortiço e p< span style="COLOR: #57201f;">ô-los dentro de uma bacia.

Tapámos os cortiços, contentes com a primeira colheita: uma pequena bacia cheia de favos doirados carregados de mel! Entrámos na cozinha e esprememos os favos com as mãos. E era bom sentir o sol a escorrer por entre os dedos, amarelo e cremoso, pingando em longos e grossos fios para dentro dos frascos de vidro transparente.

Dois anos passaram e os enxames triplicaram. Meu pai andava sempre a dizer que um dia havia de ir à cidade comprar colmeias modernas e todos os utensílios dum apicultor. Mas nunca se decidia, inventava desculpas àúltima hora, afazeres inadiáveis, feiras a que não podia faltar. E não ia, porque a cidade metia-lhe medo, confundia-o muito.

E ainda bem que não foi.
Um ano resolvemos encher de batatas todo o quintal, onde, todos alinhados, ficavam os cortiços. Pouco tempo depois as batateiras tingiram de verde toda a terra e algumas floriram. E meu pai, satisfeito:
Rapaz, este ano vamos ter mel como nunca! O tempo vai quentinho, corre tudo de feição. Os meus rebanhos de asas estão a trabalhar como nunca vi!

Bem estrumado, sachado e regado, o batatal parecia um jardim. «Sem dúvida o melhor das redondezas», gabava-se meu pai. Um dia, quando começámos a regar o batatal, ficámos furiosos: os escaravelhos tinham invadido o quintal e comiam as folhas todas. Lá se ia embora o batatal, depois de tanto trabalho!
Estais muito enganados! disse meu pai, furioso, aos escaravelhos.

Nesse mesmo dia corremos o quintal de ponta a ponta. Um jato de nevoeiro, lançado pelo pulverizador, cheio de água e pesticida, caía na terra. E os escaravelhos, gordos e vermelhuscos, mexiam-se, estonteados. 

Quando acabámos o trabalho, corremos o quintal de lés-a-lés, vimos batateira por batateira. Perfeito! Os escaravelhos estavam como carvões.
Encantados!
Uma semana depois foi o desencanto.

Em volta dos cortiços havia centenas de abelhas mortas. O zumbido tinha desaparecido. Incrédulos, batemos ao de leve em todos os troncos. Ninguém respondeu. Levantámos os cortiços e vimos grandes pirâmides de insectos mortos. Meu pai ficou com os braços caídos, a olhar para mim e para o batatal, para as abelhas. Depois virou-me as costas e começou a andar devagarinho. Eu não disse nada. 

Nessa noite não tivemos apetite para jantar.
António Mota
O rebanho perdeu as asas
Porto, Ambar, 1999

Beleza em todos os sentidos





segunda-feira, 30 de julho de 2012

A rua da minha aldeia

Maria Keil

Hoje passei a pé na rua comprida da minha aldeia, que leva às minhas raízes.

A rua da minha aldeia, na minha infância, era movimentada. As luzes, à noite, estavam acesas e ouviam-se sempre vozes na rua e nas casas.

Durante o dia, as mães vinham à janela e chamavam pelos filhos: ó Toninho, ó Albaninho... que andavam sempre a brincar na rua. 
Maria Keil
As mães da rua da minha aldeia tinham expressão de sacrificadas, ralhavam muito com os filhos, queriam tudo limpo e que eles não atirassem pedras nem dissessem asneiras.

Essas mulheres também se zangavam muito umas com as outras. Havia fortes discussões em plena rua e as crianças paravam as brincadeiras para assistir à dança dos braços e ouvir os insultos e palavrões.

Maria Keil
Agora, na rua da minha aldeia, muitas casas estão vazias. As portas e janelas estão fechadas e os vidros partidos. Muitas pessoas já morreram e as casas foram morrendo também. De algumas só ficaram pedras.

Uma das casas era de azulejo azul e a cor avistava-se ao longe. Foi restaurada mas perdeu o azul.
Maria Keil
A rua da minha aldeia já não parece a rua da minha aldeia mas, apesar disso, será sempre a rua da minha aldeia.


"Olha a banda do coreto..."




Na Casa da Música, no Porto, houve, este fim de semana, um Encontro de Bandas Filarmónicas.

As imagens e os sons fizeram-me recordar tempos antigos em que ouvia o meu avô e o meu pai a falarem com entusiasmo das bandas de música que abrilhantavam as festas e romarias.

Recordo a sorridente doçura da expressão "Vou ouvir uma pecinha".

Banda de Vila Flor

Banda Cabeceirense
Notas (mas não musicais):

Estas duas bandas eram constituídas, na sua maioria, por jovens.
Todos pareciam revelar um grande amor pela música e sentido de grupo.

O maestro da Banda de Vila Flor disse que o trabalho mostrava muito do que se faz no interior do país.

E, de certeza, que tudo é feito com grande entrega e dedicação, com pouquíssimas verbas, com atenção aos talentos de muitos...

Estes músicos nunca serão, por certo, capa de revista ou nunca ganharão um prémio Nobel, mas, sem essas bandas, muitas regiões seriam ainda mais desertas e distantes. E muito menos felizes.

domingo, 29 de julho de 2012

O solitário da rua

Wanderley Santana

Em manhã de domingo, queria ter saído logo pela manhã, mas foi ficando em casa. Apetecia-lhe ler jornais. E arrumar uns papéis que há muito estavam amontoados num canto da sala. Os semanários também ficavam, muitas vezes, de uns dias para os outros.

Num dos jornais que ficaram por ler, havia um artigo sobre Fernando Pessoa.

Não seria por acaso que o texto lhe vinha ter às mãos. Considerava este poeta um ser em que viviam (quase) todas as íntimas dimensões que povoam a vida humana: a solidão, o sonho, o amor, o sofrimento, o prazer, a saudade...

Como pôde um homem tão introvertido ter captado o pulsar tão diverso da alma humana? Se calhar, por isso mesmo.

Raio de talento que tantas vezes sobra e outras tantas tanta falta faz! E, em ambos os casos, tanta felicidade e infelicidade transporta!

Queria separar os jornais para os pôr no contentor da reciclagem, mas alguns ainda ficaram.

Mas por quê sentir necessidade de parar diante de páginas de um jornal atrasado?! E logo em manhã clara de domingo.

Era a sua forma de alcançar "um pouco mais de azul"?


O mar - cá dentro (de nós)

José Malhoa (1855/1933)

sábado, 28 de julho de 2012

Gosto de sábados assim

Aurélia de Sousa (1866-1922)

Com
 Sol mas não demasiado calor
 Tempo para fazer ou não fazer o que se quer
 Imagens (para mim, bonitas) para captar e partilhar
 Um filme que possa ver do princípio ao fim
 Um livro apetecível para ler ou até mesmo fechar
 Saúde e apaziguamento
 Boas notícias das pessoas que mais amo
 Carinho amigável dos que me estão próximos
 Um sítio onde possa caminhar
 A escrita de um pequeno post e outras coisas que me venham às mãos e à memória
 A possibilidade de ter mais tempo disponível 
...


Sem
Programa pré-definido
Problemas difíceis de resolver
Obrigação de fazer ou não fazer o que quer que seja
Culpabilidades que se vão instalando desde a infância
 ...

Nota - Apesar de as palavras terem ficado com esta disposição, não se querem assemelhar a um poema.
Talvez se pareçam mais com a lista das compras para o supermercado (por falar nisso, tenho mesmo de pôr no cesto apenas o que tinha escrito na lista). 
 Também é um bom propósito para um sábado com momentos calmos e, por que não, felizes.

Simples delicadeza


Londres - hoje

Tower Bridge

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Quando as férias começam


 
 Picasso

No início das férias, o tempo parece durar mais. Com menos horários a cumprir,  menos olhadelas para o relógio...

No tempo em que tudo parecia ser duradouro, havia regressos de férias com desejo de descanso...  para férias!

A crise trouxe coisas muito más, como reduções de salário, a supressão dos subsídios de Natal e de férias para muitos funcionários públicos... o fantasma do desemprego, a deslocação (quase) forçada de muitas pessoas em busca de trabalho...

Atualmente, os gastos são quase sempre mais ponderados. Porém, ainda há quem fique com dívidas para passar férias em locais turísticos distantes.

Como, no geral, os gastos têm de ser mais contidos, haverá a tendência a valorizar o que está mais perto de nós. E, muitas vezes, o que está próximo merece bem o nosso olhar e o nosso apreço.

Aqui, às portas do Porto, do rio e do mar, neste final de julho não muito quente, sento-me e escrevo estas palavras sobre as férias, pensando nas maravilhas que estão ao nosso alcance.

Em férias, as palavras parecem mais leves, calmas e claras  (sobretudo para quem as escreve). Tal como a maresia. Ou será uma maré de necessária esperança?

quarta-feira, 25 de julho de 2012

O solitário da rua

 Mário Eloy
 
Depois de sair da repartição, passou pelo supermercado. Logo à entrada, viu umas jovens com um bloco e caneta na mão. Uma delas aproximou-se dele com um sorriso forçosamente amável (era incrível, por mais que se desviasse, nunca escapava a estas entrevistas).
- Boa tarde. Posso fazer-lhe umas perguntas sobre o consumo de água?
- Tenho pouco tempo.
- Só o ocupo uns dois minutos. Primeiro e último nome...
- José Martins.
- Contacto...
- Só para os amigos.
- E e-mail tem?
- Sim, tenho.
- Pode fornecê-lo?
- Sim
- Idade
- 55
- Não parece.  Estado civil...
- É pessoal.
- Desculpe, não percebi.
- É pessoal.
- Estado civil. Se é solteiro, casado, viúvo...
- Eu sei o que é o estado civil, mas é pessoal.
- Eu aqui, então, não posso pôr nada.
- Como quiser.
- Número de pessoas com quem vive.
- Depende.
- Depende?
- Sim, depende.
- Mais ou menos.
- É difícil dizer.
- Assim também é difícil continuar a entrevista para lhe oferecermos uma garrafa de água.
- Não faz mal. Bom trabalho.

No regresso a casa, pensou o que aconteceria àquela jovem se fosse  mal sucedida em todas as entrevistas. Seria mais um número para o desemprego. 

Quando abriu o portão, logo ouviu os cães. Quando lhes deu água, pensou que tinham sorte.

Um lugar chamado verão


Paula Rego
 
A minha filha está sossegada, ao meu lado, no banco da frente, até que, por fim, suspira e diz com a lógica poética de uma criança: “Isto recorda-me aquele lugar em que eu gosto sempre de pensar.”
Barbara Kingsolver
Enquanto relia um romance, eis-me chegado ao ponto em que a personagem principal do livro, de doze anos de idade, acorda “ao som de algo que era bem mais importante do que os pássaros ou o restolhar das folhas novas… o som que indicava que o verão tinha oficialmente começado…” Era o som primeiro dos corta-relvas.
Pus de lado o livro e deixei a minha mente vaguear através dos meus verões pré-adolescentes há muito, muito tempo…
Quando eu era miúdo, dias de verão queriam dizer beisebol. Levantava-me cedo, deixava cair umas gotas de óleo no bolso macio e preto da minha luva, colocava o taco num tubo cilíndrico e oco de metal que eu tinha provisoriamente ajustado ao quadro da minha bicicleta e, depois, pedalava até algum monte de erva recentemente cortada e banhada pelo sol para então fazer umas rebatidas simples, roubar umas bases e correr atrás das bolas ainda no ar, até que o céu ficasse cor de índigo.
Nas manhãs mais quentes podiam encontrar-me no cais da baixa da cidade, com o meu isco de minhoca a tentar provocar algum lúcio ou salmão, com os pés baloiçando ao dependuro, a ler o Tarzan e alguns livros de aventuras.
Mas a melhor parte dos verões da minha infância eram aquelas duas semanas de agosto que eu passava nas montanhas com a minha irmã, a minha mãe e o meu novo padrasto, numa cabana que ele próprio tinha construído. Neste mundo de verão, o sol nascia atrás de uma ravina, passava languidamente por cima da cabana abrigada da luz e deslizava por detrás de uma cordilheira arborizada, deixando às estrelas o comando absoluto daquele céu azul tinta das montanhas.
Por detrás da cabana havia um riacho a que eu nunca tinha descoberto o fim. Calçando as minhas botas, eu andava na água saltitando por cima de pedras parcialmente submersas. O meu lugar favorito era um pequeno ramal ribeiro acima, a cerca de 1 Km de distância, onde a água se ramificava em três charcos profundos, escuros e bordejados por seixos. Era aí que as rãs viviam algumas, verdes como folhas, outras quase pretas e todas elas escorregadias e lustrosas. Eu apanhava-as e dava risadinhas quando elas se contorciam, coaxavam e arregalavam os olhos quando ficavam presas a algo. Às vezes, fazia-lhes caretas e arrastava-as através da água fazendo sons como um barco a motor. Por fim, arremessava-as de novo ao charco e logo tornava a tirá-las, na minha odisseia ribeiro acima, tentando apagar da mente a ideia da inevitável chegada de setembro.
O verão era, então, especial. Mais que uma estação, era um lugar.
Era um lugar onde se podiam fazer mergulhos infindáveis, tipo canhão ou parafuso, da prancha mais alta ou chapinhar sem qualquer propósito na grande “piscina” sem a obsessão do fator de proteção solar. Um lugar onde os olhos podiam seguir os movimentos daquela miúda que se sentara ao nosso lado, nas aulas, durante todo o ano – e que agora parecia tão diferente de fato de banho deslizando entre opalas e turquesas no grande charco, o longo cabelo ondulando atrás dela. Um lugar onde se podia sorrir à mãe de modo trocista através de um bigode de melancia, dormir no quintal das traseiras (antes dos dias em que o ar condicionado tornou as estações todas iguais) e lançar estrelinhas de fogo-de-artifício.
Nos verões do passado, quase tudo o que era bom passava-se no exterior.
Uma noite, quando estava fora de casa, ao frio da montanha, olhando as estrelas cadentes que, todas as noites, riscavam de fogo o céu, a minha mãe disse-me: “Pede um desejo, querido.”
Eu tentava, claro, mas era difícil pensar num. Tudo aquilo que eu poderia pedir estava ali bem à minha volta.


Doug Rennie
Jack Canfield; Mark Victor Hansen; Steve Zikman
Chicken soup for the nature lover’s soul
Florida, HCI, 2004
(Tradução e adaptação)

segunda-feira, 23 de julho de 2012

O solitário da rua



Uma noite, depois dos trabalhos habituais no quintal (a harmonia das plantas ajudava-o a construir a sua própria harmonia), sentou-se na sala, como de costume. 

No copo, o vinho tinto exalava um colorido e calmo aroma. Abriu o livro O tempo envelhece depressa, de Antonio Tabucchi, mas logo o fechou. 

Dirigiu-se à estante e pegou numa coletânea de poesia de Fernando Pessoa. Mais uma vez, veio até ele o poema Tabacaria do heterónimo Álvaro de Campos:

“Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo
…”

Não conseguiu prosseguir. Apeteceu-lhe chorar. Dentro de si, ouvia vozes antigas: um homem não chora!

Chora sim, por que não? E fala, e sente, e sofre, e ri, e ama, e desespera, e espera, e acredita, e desconfia…

De dia, a repartição acolhia o funcionário público exemplar; ao fim da tarde, a casa recebia o homem completo. Com as incompletudes que se lhe incrustaram à pele e à alma desde a infância.

E releu:

“Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo
…”

Encostou a cabeça no sofá e recordou as peripécias do dia. E viu-se com uma infinidade de pessoas a quem se aplicavam, também, aqueles versos.

Só os versos?