sábado, 8 de outubro de 2011

A menina que não gostava das suas mãos



Há muitos muitos anos, havia uma menina que não gostava das suas mãos. Assim foi desde pequena. Para além de serem grandes, as mãos eram grossas e ficavam, muitas vezes, vermelhas. Sobretudo quando estava muito frio ou então muito calor. Por tudo isto, a menina escondia as mãos sempre que podia. Às vezes, usava luvas, mas estas aqueciam-lhe demasiado as mãos e faziam-nas parecer inchadas.

As mãos das amigas da menina eram fininhas, pequeninas e macias. Pelo menos era o que os seus olhos lhe mostravam. Nos passeios de domingo ou nas festas e romarias, as meninas passeavam muitas vezes de mão dada. Nesses momentos, a menina sentia bem a diferença e, por isso, sempre que podia, evitava dar a mão a alguém.

Às vezes só não fugia a dar a mão para não se sentir de fora – porque, para além de não gostar das suas mãos, tinha medo de que não gostassem dela. Sobretudo as amigas que se tinham habituado a receber muitos mimos desde pequeninas. A ouvirem e a saberem que certas tarefas não eram para elas, mas para mãos mais rijas e calejadas.

A menina foi crescendo. No inverno, vinham as frieiras. Cor de sangue pisado. Com elas, as mãos empolavam ainda mais. E a menina coçava os dedos para aliviar a comichão, mas esta mais aumentava. Até trazia dor. A menina evitava olhar para as suas mãos. Chegou mesmo a sofrer com o desgosto. Um dia, tomou uma resolução: não posso mudar as minhas mãos. Vou gostar delas como são porque se não as tivesse é que era um grande problema. E pensando deste modo, algumas palavras rimaram-lhe na cabeça:

Deixar de pensar no assunto

É uma prioridade

Pois para se fazer alguma coisa

Não é preciso mãos de princesa

Cor-de-rosa e cheiinhas de saúde e beleza

Mas o melhor é acreditar

Que com as nossas mãos ao dispor

Pode-se muita coisa mudar

E dar sinais de muito amor.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Casa comigo, Lina!



- Ó Lina, ainda bem que te vejo. Queria tanto falar contigo. Nem imaginas há quanto tempo ! E ninguém me pode criticar, porque este desejo só veio quando a minha mulher foi a enterrar. Não sei se sabes, mas fui sempre fiel. Até nas palavras e no olhar.

Mas agora, Lina, ando muito triste a pensar no inverno que aí vem. E não imaginas como sou friorento. No ano passado, quase ia morrendo porque a minha mulher tinha de dormir sozinha por causa da doença. Ninguém lhe podia tocar. As dores atacavam-na de tal modo que lhe tiravam a respiração. Chorei muitas vezes, Lina, ao vê-la assim. Lembro-me dela mas o frio que passei também não me sai da memória. Não posso dormir sozinho. Acho que outro inverno gelado pode ser-me fatal. Chego a ter medo.

Casa comigo, Lina. Assim, podes aquecer-me os pés. Não me faltam meias de lã, mas não é a mesma coisa. Nunca experimentei o teu calor, mas deve ser de calar toda a fadiga e toda a dor. As meias só aquecem os pés e o teu calor também me pode aquecer a alma. Contigo, posso dormir melhor, porque a noite é negra e eu, muitas vezes, passo-a em branco. Chego até a abrir a janela para contar as estrelas e vê-las a brilhar. Mas logo tenho de a fechar, porque fico tolhido de frio e de solidão. Preciso da tua luz, Lina. Também deves querer ter alguém porque há muito andas sozinha. Olha que a solidão é assassina. Não te deixes morrer, Lina, nem me deixes morrer a mim.

Para além de me aqueceres, fazias-me a comida. Nunca tive jeito para cozinhar e ando desconsolado. Como sempre sopa requentada. Eu sei que tu és habilidosa e tens umas boas mãos. Se casares comigo, também poderás fazer-me massagens, porque tenho as costas presas. Tu, Lina, podias libertar-me. Deve ser a tristeza em que vivo que me endureceu os músculos. De não ter ninguém que se vire para mim e me faça mudar de posição. Só de pensar nos teus carinhos, fico mais leve e sem dores.

Desculpa, Lina, não me calar mas sinto-me mal sozinho na minha casa. Deve ser por estar tudo desarrumado. Sei que a tua casa está sempre um brinquinho e quem lá vai fica sem pressa de se ir embora. Não é que eu ande a saber da tua vida, mas não sou ceguinho nem surdo e, aqui onde moramos, sabes bem que toda a gente se conhece. A minha casa, Lina, precisa de mão de mulher.

Diz qualquer coisa, Lina. Peço-te perdão por não parar de falar, mas andava quase entalado com isto tudo que tinha para te dizer. Não penses que sou um rejeitado. Eu reparei nalguns olhares até no funeral da minha mulher, mas é a ti que eu quero, Lina, porque és de confiança, tens saúde e boas qualidades. Faz-me feliz, Lina, aceita o meu pedido e verás que não te arrependes.

Não vês que tenho o jardim abandonado, Lina?! As ervas daninhas crescem tanto como os meus desgostos. E o teu está sempre tão bonito. Vejo-te sempre a tratar dele pela fresca. Se casasses comigo eras a minha flor preferida. Podias entrar no meu jardim à tua vontade. Tomavas conta de todos os meus perfumes.

Ao domingo, podíamos fazer um piquenique, porque sei que fazes muito bem bolinhos de bacalhau. E comíamos das tuas maçãs, porque as minhas caíram todas podres ou cheias de bicho. Este ano ajudavas-me a podar as árvores de fruto, porque sei que até enxertos sabes fazer muito bem. Não me deixes cair como uma árvore seca.

Aceita o meu pedido, Lina, porque me sinto muito só e só penso no frio do Inverno que sei que me vai atacar. Até de pensar nisso fico enregelado. Dás-me uma alegria, Lina? E quando os meus filhos nos vierem visitar, podes fazer assado para todos e todos poderão ver a minha alegria e satisfação, ficando mais descansados. É que os meus filhos, Lina, andam preocupados comigo. Sabem que passo mal com o inverno e há muito que já passei o outono da vida. Tinham até onde deixar os miúdos quando estivessem doentes, porque agora não está fácil para a mocidade e nem podem dizer que ficam em casa a tratar das crianças, porque logo a seguir são despedidos. E eu sei que tratas bem toda a gente. Eles são lindos, os meus netos. É pena serem teimosos, mas não saem a mim.

Faz-me a vontade, Lina. Desfaz este nó que eu sinto no peito. Diz-me que casas comigo e que ainda me podes aquecer neste inverno.

Diz alguma coisa, Lina. Fala-me ao coração. Diz, diz, então:

- Ó Godofredo, só de te ouvir assim, até do frio tenho medo!

Segue, segue o teu caminho

Mesmo falando sozinho.

Olha que vai arrefecer

E podes enregelar.

Como só queres receber

E nada aprendeste a dar,

Vai o raio que te parta contratar.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Diário de Mariana

7 de Outubro

Querido diário,

Hoje tive uma crítica de uma das minhas irmãs. Mostrei-lhe uma página do meu diário e ela disse assim: Mariana, é tão pediátrico!

Fogo. Eu a pensar que a minha irmã ia dizer que era altamente e outras coisas do tipo: Vês, Mariana, consegues ter os trabalhos em dia e escrever o teu diário… e vem-me com aquela que é muito pediátrico. Isto ainda veio aumentar as minhas confusões. Ainda que as confusões sejam outras, não é. Quando eu contar à Bea, ela vai dizer logo: ó Mariana, deixa lá isso. Ao Gi não vou contar, porque não tenho muita confiança com ele e ia logo pensar que sou uma queixinhas. Por outro lado, a minha mãe diz-me muitas vezes que a gente não pode contar tudo.

No oitavo ano, tive uma colega que disse ao namorado a password. Depois, zangaram-se e ele mostrou a palavra-passe a uns amigos e eles enviaram mails mesmo feios como se fosse ela. Às vezes, penso nisso, porque achei super-indecente. A minha mãe diz-me muitas vezes: Mariana, tem cuidado; não se pode confiar em toda a gente.

E tudo isto por causa de a minha irmã dizer que o meu diário é pediátrico.

- Se calhar é mas não é por isso que vem o mal ao mundo, disse-lhe logo eu.

Eu sou sincera: não gosto nada de ouvir críticas, mas, embora não diga nada, às vezes até dão jeito, porque a gente pode melhorar. É mais chato falar com aquelas pessoas que nem dizem se concordam ou se não concordam. Dá mais pica quando as pessoas dizem o que pensam. Não à bruta, é claro, porque acho isso horrível.

Do que gosto mesmo é de te escrever, querido diário. Posso não te dizer coisas importantes, mas é importante para mim dizer estas coisas. Até parece que vejo e ouço melhor as outras pessoas. É mesmo fixe ter gozo naquilo que fazemos. Uma prof até me disse. Mariana, acho-te mais atenta. E eu pensei logo: será que o Gi ouviu o elogio?

Até à próxima, meu “amiguinho pediátrico”.

Mariana

Breve sobre uma vida breve


A morte também leva os ricos e talentosos. Steve Jobs criou produtos que modificaram a comunicação entre os seres. Termos como iphone, iPod, iPad... tornaram-se quase comuns, sobretudo para as novas gerações.
Não sou utilizadora destas novas tecnologias, mas acho fascinante ver tantas pessoas a desfrutar delas como uma coisa boa e natural. São a prova de que a mente humana é inesgotável. E a criatividade e a vontade do homem também.
Não foi (aparentemente) a Universidade que motivou e ensinou o criador da Apple a produzir estes bens que estão disponíveis no mundo. O mérito dever-se-á a ele próprio, às pessoas de quem se soube rodear, ao estímulo de quem lhe reconhecia valor e capacidades.
Sou mais velha do que Steve Jobs e será difícil adquirir e usar um dos seus produtos, mas posso, felizmente, usufruir da evolução que este homem provocou no mundo.
Só é pena a morte levar, mais cedo do que devia, seres de eleição. Felizmente fica a sua obra.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

COMPOTA DE AMEIXAS COM CHÁ E CHEIROS



Ingredientes:

500 g de ameixas frescas e maduras

Um bule de chá com açúcar

Quatro colheres, das de sopa, de rum

Algum tempo, muito afeto

Acessórios essenciais: uma cesta, ervas aromáticas, um bloco, uma caneta, luz do Sol

Se tiver quintal, percorra-o pela manhã. Lá pelo meio de uma manhã de Ssl. Esqueça as ervas daninhas e tudo o que houver de mais rasteiro. Os olhos devem ser levantados para além da sua cabeça, junto das ameixoeiras. Use as duas mãos que ajudarão na procura de ameixas rijas e maduras. Não importa a tonalidade. Podem ser brancas, rosadas ou vermelhas. Tenha consigo uma cesta. No fundo, pode pôr hortelã-pimenta, alecrim, manjericão, lúcia-lima, erva cidreira… Colha os frutos ainda com algumas folhas. Utilize uma tesoura pequena de poda. Usada mas não enferrujada.

Se não tiver árvores de fruto, ou se não for a época procure as ameixas num mercado tradicional. Se a vendedeira quiser aldrabar no preço, é por uma boa causa. Porém, não deixe de regatear. E de escolher os frutos bem frescos, perfumados, coloridos.

Chegando à cozinha, ponha a cesta – mesmo que vá ao mercado, prefira-a ao saco de plástico – sobre a mesa. Retenha as cores e os aromas. Pode até fotografar e registar, por escrito, as suas impressões, porque a memória muitas vezes é curta; as imagens amontoam-se, esbatem-se, apagam-se.

Utilize um bloco que tenha comprado numa viagem ou pequeno passeio com momentos de luz e descoberta. Ponha-o sobre a mesa e vá escrevendo frases soltas. Poderá reutilizá-las, recortando-as e colando-as no frasco. Evite tapar os frutos.

Não desligue o telefone nem o ponha em silêncio. Se alguém telefonar, partilhe o momento.

Lave depois as ameixas, já sem pé nem folhas. Faça-o numa vasilha grande, sem pressa, mexendo os frutos delicada e amorosamente.

Ao lado, tenha outra vasilha. Antiga de preferência. Que lhe traga boas recordações de alguém que gostava de si, que se preocupava consigo, que lhe mostrava sempre um sorriso e que também contava histórias doces.

Misture e ajeite bem as ameixas nessa vasilha. Sobre elas, deite devagar o chá. Use um bule que viu sobre a mesa em dias de festa ou em momentos felizes. Cubra todas as ameixas, independentemente da forma ou do conteúdo. Ponha a tigela num sítio fresco e tranquilo da cozinha. Dê-lhe espaço e visibilidade. Vá à arca e procure uma toalha de estopa ou de linho. Pode ser grossa e enrugada. Aconchegue-a sob a malga. Deixe repousar durante a tarde e noite. Aproveite o silêncio aromatizado para escrever mais longamente.

No dia seguinte, levante-se cedo. Abra a janela. Espreguice-se, esquecendo que a vizinha é madrugadora e curiosa.

Já na cozinha, escorra as ameixas e passe-as para uma compoteira transparente. O rum irá para o lume com um pouco de açúcar e a calda que ficou. Logo que tome ponto, deite-a sobre as ameixas, deixando macerar duas horas. Coloque a compoteira num sítio onde dê o Sol. Vá rodando o frasco para iluminar todos os frutos e poder observá-los melhor na sua unidade e diferença. Saboreie o momento. Guarde a cesta.

Por fim, ofereça as ervas aromáticas à vizinha. Ela disse um dia que não gostava de ameixas.

Tema sugerido em Ateliê de escrita, em Serralves, com o escritor Mário Cláudio

Diário de Mariana

5 de outubro

Querido diário,

Nunca escrevi uma carta de amor. Também acho que nunca escrevi nenhuma carta a não ser na escola. Quando era pequena, ia para o Algarve com os meus pais e as minhas irmãs e a minha mãe comprava-me postais para eu escrever aos meus avós, tios, primos, amigas. Alguns deles, quando iam para fora, também mandavam postais com paisagens bonitas dos sítios onde estavam.

lembro-me de uma vez ter recebido um postal que dizia assim em letra grande: espero que estejas bem. Isto aqui é muito giro. Como não tenho mais espaço no postal, não posso escrever mais nada. Beijinhos para ti e para as tuas irmãs

Quando a minha mãe viu, disse logo: que engraçado, o espaço que gastou a dizer que não tinha espaço. É como a gente passar o tempo a dizer que não tem tempo.

Mas cartas de amor é que nunca escrevi. Um dia, uma prof disse que as cartas de amor têm de ser sentidas e nunca as mandava escrever. Por isso, nunca aprendi a escrever cartas de amor e acho que nunca vou aprender nem escrever. Por exemplo, até gostava de escrever ao Gi e dizer que ele tem uns olhos lindos, mas sei lá se daqui a nada me parecem uns faróis que nem me deixam ver. Fogo, que confusão.

A minha mãe conta que escreveu cartas de amor e também as recebeu. Ainda não tive coragem de lhe perguntar se as guardou ou se as deitou fora. Se ao menos as tivesse reciclado, mas naquele tempo não havia contentores.

Nem sei se hei de contar o que sinto à minha mãe. Vamos indo e vamos vendo, como ela diz.

Até amanhã, querido diário.

Mariana