- Ó Lina, ainda bem que te vejo. Queria tanto falar contigo. Nem imaginas há quanto tempo ! E ninguém me pode criticar, porque este desejo só veio quando a minha mulher foi a enterrar. Não sei se sabes, mas fui sempre fiel. Até nas palavras e no olhar.
Mas agora, Lina, ando muito triste a pensar no inverno que aí vem. E não imaginas como sou friorento. No ano passado, quase ia morrendo porque a minha mulher tinha de dormir sozinha por causa da doença. Ninguém lhe podia tocar. As dores atacavam-na de tal modo que lhe tiravam a respiração. Chorei muitas vezes, Lina, ao vê-la assim. Lembro-me dela mas o frio que passei também não me sai da memória. Não posso dormir sozinho. Acho que outro inverno gelado pode ser-me fatal. Chego a ter medo.
Casa comigo, Lina. Assim, podes aquecer-me os pés. Não me faltam meias de lã, mas não é a mesma coisa. Nunca experimentei o teu calor, mas deve ser de calar toda a fadiga e toda a dor. As meias só aquecem os pés e o teu calor também me pode aquecer a alma. Contigo, posso dormir melhor, porque a noite é negra e eu, muitas vezes, passo-a em branco. Chego até a abrir a janela para contar as estrelas e vê-las a brilhar. Mas logo tenho de a fechar, porque fico tolhido de frio e de solidão. Preciso da tua luz, Lina. Também deves querer ter alguém porque há muito andas sozinha. Olha que a solidão é assassina. Não te deixes morrer, Lina, nem me deixes morrer a mim.
Para além de me aqueceres, fazias-me a comida. Nunca tive jeito para cozinhar e ando desconsolado. Como sempre sopa requentada. Eu sei que tu és habilidosa e tens umas boas mãos. Se casares comigo, também poderás fazer-me massagens, porque tenho as costas presas. Tu, Lina, podias libertar-me. Deve ser a tristeza em que vivo que me endureceu os músculos. De não ter ninguém que se vire para mim e me faça mudar de posição. Só de pensar nos teus carinhos, fico mais leve e sem dores.
Desculpa, Lina, não me calar mas sinto-me mal sozinho na minha casa. Deve ser por estar tudo desarrumado. Sei que a tua casa está sempre um brinquinho e quem lá vai fica sem pressa de se ir embora. Não é que eu ande a saber da tua vida, mas não sou ceguinho nem surdo e, aqui onde moramos, sabes bem que toda a gente se conhece. A minha casa, Lina, precisa de mão de mulher.
Diz qualquer coisa, Lina. Peço-te perdão por não parar de falar, mas andava quase entalado com isto tudo que tinha para te dizer. Não penses que sou um rejeitado. Eu reparei nalguns olhares até no funeral da minha mulher, mas é a ti que eu quero, Lina, porque és de confiança, tens saúde e boas qualidades. Faz-me feliz, Lina, aceita o meu pedido e verás que não te arrependes.
Não vês que tenho o jardim abandonado, Lina?! As ervas daninhas crescem tanto como os meus desgostos. E o teu está sempre tão bonito. Vejo-te sempre a tratar dele pela fresca. Se casasses comigo eras a minha flor preferida. Podias entrar no meu jardim à tua vontade. Tomavas conta de todos os meus perfumes.
Ao domingo, podíamos fazer um piquenique, porque sei que fazes muito bem bolinhos de bacalhau. E comíamos das tuas maçãs, porque as minhas caíram todas podres ou cheias de bicho. Este ano ajudavas-me a podar as árvores de fruto, porque sei que até enxertos sabes fazer muito bem. Não me deixes cair como uma árvore seca.
Aceita o meu pedido, Lina, porque me sinto muito só e só penso no frio do Inverno que sei que me vai atacar. Até de pensar nisso fico enregelado. Dás-me uma alegria, Lina? E quando os meus filhos nos vierem visitar, podes fazer assado para todos e todos poderão ver a minha alegria e satisfação, ficando mais descansados. É que os meus filhos, Lina, andam preocupados comigo. Sabem que passo mal com o inverno e há muito que já passei o outono da vida. Tinham até onde deixar os miúdos quando estivessem doentes, porque agora não está fácil para a mocidade e nem podem dizer que ficam em casa a tratar das crianças, porque logo a seguir são despedidos. E eu sei que tratas bem toda a gente. Eles são lindos, os meus netos. É pena serem teimosos, mas não saem a mim.
Faz-me a vontade, Lina. Desfaz este nó que eu sinto no peito. Diz-me que casas comigo e que ainda me podes aquecer neste inverno.
Diz alguma coisa, Lina. Fala-me ao coração. Diz, diz, então:
- Ó Godofredo, só de te ouvir assim, até do frio tenho medo!
Segue, segue o teu caminho
Mesmo falando sozinho.
Olha que vai arrefecer
E podes enregelar.
Como só queres receber
E nada aprendeste a dar,
Vai o raio que te parta contratar.