sexta-feira, 16 de maio de 2014

E, no teu silêncio, vou dizendo…

Quando éramos pequenas, perguntavam-nos se éramos gémeas. Lembras-te? Gostávamos de dizer que a diferença de idades era só de um ano, um mês e um dia. A nossa mãe costurava-nos os vestidos e as batas que tinham folhos e bolsinhos, onde guardávamos bocadinhos de pão ou pedrinhas… Como a nossa mãe sempre gostou de flores, nós víamo-la a semeá-las, regá-las, colhê-las… E dizíamos: “Mãezinha, posso ir buscar o meu regadorzinho?”
Lembras-te da fotografia em que estamos ambas descalças no pequeno jardim da pequena casa em que nascemos? Tínhamos tranças, presas no alto da cabeça com um laçarote branco. Os teus caracóis eram férteis e a minha trança depressa se desfazia de tão pesada que era.
Depois, quando mudámos para uma casa maior, continuámos a ter por perto os campos, os regatos, os caminhos onde apanhávamos flores pequeninas, sem a preocupação de lhes saber o nome. A não ser dos pampilhos com que fazíamos macios colares amarelos.
E havia a casa alta de azulejo verde, que tinha um mirante, onde gostávamos de brincar com as outras meninas vizinhas. E por cima das nossas cabeças caíam, altas, flores de que já não lembro a cor. Havia também a de azulejo azul com um portão que fechava o interior da casa, cujos donos tinham passo apressado e lábios que nunca abriam a janela de um sorriso.
Fomos crescendo, ouvindo palavras que a época obscuramente cinzenta propagava: obediência, submissão, resignação, acentuadas na condição de mulher que não precisava de estudar, porque o futuro de esposa e de mãe não o exigiria. Desde cedo, troikas semelhantes já nos faziam franzir o sobrolho, mas éramos seres comuns e, comummente, não se cantava claro contraditório.
Começámos a bordar, a fazer renda, a cozinhar, a tratar da casa. Líamos os livros que o nosso pai nos comprava na Feira do Livro do Porto, os que havia na estante da sala, mas também procurávamos, às escondidas, O crime do Padre Amaro e outros.
Ao longo da vida, fomos gostando dos mesmos livros, dos mesmos filmes, dos mesmos lugares. Como Paris, onde fomos um par de vezes. Com os nossos maridos, brindámos lá com um Bordeaux, fomos à Torre Eiffel, ao Arco do Triunfo, mas o que te encantava – e a mim também – era passear pelas margens do Sena, os pequenos teatrinhos do Quartier Latin, as ruas estreitas com os cafés envidraçados, as mercearias com vistosa fruta bem disposta. E também as descontraídas livrarias simples e inspiradoras. E ver a gente que teria histórias para contar. E visitar os pequenos museus onde a quantidade não distrai mas convoca o olhar.
Dizia-te, quando a felicidade era, para ti, pássaro que não pousava: “Temos de nos alegrar com as pequenas coisas; de outro modo, somos infelizes”. 
Gostavas tanto de viver, mas tinhas medo de que a vida pudesse entristecer-te ou ao teu núcleo familiar.
Eras culta, tinhas ideias próprias, detestavas a hipocrisia, gostavas de ajudar os mais frágeis, mas pouco sorrias de tanto receio dos reversos da medalha.
Em ti, tinhas “todos os sonhos do mundo”, porém, com a pessoana e triste convicção de que “Nunca serei nada”.  As incertezas faziam apagar as luzes da ousada celebração da vida.
Estiveste doente durante vários anos. Partiste há dois dias e quis o acaso, ou destino, ou Deus, ou a tua vontade que eu estivesse junto de ti. Nesse momento, um frio silêncio calou, então, qualquer murmúrio que, tantas vezes, o sofrimento agudizou.
 No (teu) silêncio, continuarei a dizer-te: Então, minha irmã,…

domingo, 11 de maio de 2014

"SEM OUTRO INTUITO"

                                                                                 Monet

Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.


Luís Miguel Nava
(1957/1995)
Poema enviado pela Poetria, 
integrado no projeto 
TODOS OS DIAS NASCE E MORRE UM POETA,
E, ÀS VEZES, É PRECISO QUE O POETA MORRA
PARA QUE A OBRA NASÇA.

sábado, 10 de maio de 2014

Ninho



Obrigada, AC, pelas fotos 

Eu sei de um Ninho... 

Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar.


 Miguel Torga


sexta-feira, 9 de maio de 2014

Malícia

            “O BALOUÇO”, de FRAGONARD

Como balouça pelos ares no espaço
entre arvoredo que tremula e saias
que lânguidas esvoaçam indiscretas!
Que pernas se entreveem, e que mais
não vê o que indiscreto se reclina
no gozo de escondido se mostrar!
Que olhar e que sapato pelos ares,
na luz difusa como névoa ardente
do palpitar de entranhas na folhagem!
Como um jardim se emprenha de volúpia,
torcendo-se nos ramos e nos gestos,
nos dedos que se afilam, e nas sombras!
Que roupas se demoram e constrangem
o sexo e os seios que avolumam presos,
e adivinhados na malícia tensa!
Que estátuas e que muros se balouçam
nessa vertigem de que as cordas são
tão córnea a graça de um feliz marido!
Como balouça, como adeja, como
é galanteio o gesto com que, obsceno,
o amante se deleita olhando apenas!
Como ele a despe e como ela resiste
no olhar que pousa enviesado e arguto
sabendo quantas rendas a rasgar!
Como do mundo nada importa mais!
Assis, 8/4/1961
JORGE DE SENA, 2013: Obras Completas - Poesia 1 [Metamorfoses, 1963]. Lisboa: Guimarães, pp. 337-338.

Obrigada, IAzinha, pelo envio destes belos documentos, 
num postal de fim de semana e de celebração da primavera. 
Agradeço-te também a música de Rodrigo Leão, que juntavas no "postal".



Rodrigo Leão - (Outra forma de) Baloiço

segunda-feira, 5 de maio de 2014

São rosas, mas só uma cor-de-rosa!



Frases na escola


domingo, 4 de maio de 2014

Mãe e uma "redação surpreendente"

Malangatana


"(...) Os professores que mais me marcaram na vida foram os que me ensinaram coisas que estavam bem para além da matéria escolar. Não esqueço nunca um professor da escola primária que um dia leu, comovido, um texto escrito por ele mesmo. Logo na declaração da sua intenção nasceu o primeiro espanto: nós, os alunos, é que fazíamos redações, nós é que as líamos em voz alta para ele nos corrigir. Como é que aquele homem grande se sujeitava àquela inversão de papéis? Como é que aceitava fazer algo que só faz quem ainda está a aprender?
Lembro-me como se fosse hoje: o professor era um homem muito alto e seco e, nesse dia, ele subiu ao estrado da sala segurando, nos dedos trémulos, um caderno escolar. E era como se ele se transfigurasse num menino frágil, em flagrante prestação de provas. Parecia um mastro, solitário e desprotegido. Só a sua alma o podia salvar.
Depois, quando anunciou o título da redação, veio a surpresa do tema que
   parecia quase infantil: o professor iria falar das mãos da sua mãe. Éramos   
   crianças e estranhámos que um adulto (e ainda por cima com o estatuto dele)
partilhasse connosco esse tipo de sentimento. Mas o que a seguir escutei foi
bem mais do que um espanto: ele falava da sua progenitora como eu podia
    falar da minha própria mãe. Também eu conhecera essas mesmas mãos
    marcadas pelo trabalho, enrugadas pela dureza da vida, sem nunca     
    conhecerem o bálsamo de nenhum cosmético. No final, o texto acabava sem
nenhum artifício, sem nenhuma construção literária. Simplesmente, terminava assim, e eu cito de cor: “é isto que te quero dizer, mãe, dizer-te que me orgulho tanto das tuas mãos calejadas, dizer-te isso agora que não posso senão lembrar o carinho do teu eterno gesto.”
Havia qualquer coisa de profundamente verdadeiro, qualquer coisa diversa naquele texto que o demarcava dos outros textos do manual escolar. É que não surgia ali, em destacado, uma conclusão moral afixada como uma grande proclamação, uma espécie de bandeira hasteada. Aquele momento não foi uma aula. Foi uma lição que sucedeu do mesmo modo como vivemos as coisas mais profundas: aprendemos, sem saber que estamos aprendendo (...)". 

Mia Couto, (Um excerto da) Aula inaugural – Escola de Comunicação e Artes-UEM. 2012 


Recordo-me de, há uns trinta anos, começar a reparar no envelhecimento da minha mãe, através das mãos que iam ficando enrugadas. A mudança era mais nítida sobretudo no momento em que, estando toda a família à mesa, ela distribuía a comida pelos pratos.
E, felizmente, ainda posso dar comigo a olhar as mãos de minha mãe, agora que tem 87 anos.
As suas mãos preparam os alimentos, ajeitam a terra para conforto das plantas,  fazem cachecóis para os netos e colchinhas para os bisnetos,  seguram nas folhinhas soltas sobre vida de santos e nos pequenos jornais de relatos de exemplos cristãos, erguem-se para o Céu em orações, semeiam e colhem flores para pôr no cemitério porque  muitos  partiram, alisam os pacotes vazios para serem reutilizados, preparam pratinhos de aletria ou de leite-creme para o lanche que está sempre sobre a mesa enquanto a tarde se ilumina, escrevem versos – muitos deles ainda inspirados no labor e nos ensinamentos da professora primária de há oitenta anos!
Hoje é o Dia da Mãe. E das muitas flores macias que saem das suas Mãos.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Descanso

 
                                                                    

Casa assombrada



O céu estava coalhado de nuvens pardacentas. O ar gelava. A noite aproximava-se e não se via ninguém na rua ladeada de árvores despidas e negras. No silêncio parado, irrompeu o ruído de um carro, parando junto da porta do casarão, quase sempre fechado. O silvado cobrira os muros altos, isolando a casa. Todos diziam que lá não morava ninguém e contavam-se histórias sobre os habitantes que há muito tinham morrido, mas que, por muito amarem aquela casa e por muitas paixões guardarem, não tinham desaparecido. Porém, o único indício de vida, percebido do exterior, era o carro que, de repente, entrava e saía pelo portão que batia de forma assustadora.
Engolido o carro, tudo voltava ao silêncio.
Numa noite, houve um outro sinal: saía fumo de uma chaminé.
Aproveitando a minha invisibilidade de autora da história, entrei porque o frio era muito e também não gosto de ficar a espreitar aquém dos muros.
As sebes do enorme jardim estavam desgrenhadas e ressequidas; as árvores erguiam-se nos seus troncos retorcidos, sustentados por raízes irregulares e salientes; algumas rosas vermelhas haviam murchado em botão, as heras trepavam, cobrindo  grossas paredes em ruínas.
Porém, no centro do jardim, erguia-se uma pequeníssima estufa envidraçada. As suas paredes de vidro deixavam ver aveludadas e viçosas rosas amarelas. Era o único sinal de cuidado naquele espaço sem mimo de mão humana. Ao cimo das escadas de pedra, ouviam-se vozes quase murmuradas. De repente, uma porta rangeu, saindo uma bela mulher de rosto palidamente entristecido. Desceu as escadas e dirigiu-se à estufa. Colheu um ramo de rosas e voltou a entrar em casa. O murmúrio estalou de novo.
De repente, as nuvens ganharam movimento e houve um pouco de luar. Sem se ouvir qualquer ruído, a mulher desceu as escadas de granito, trazendo um ramo de rosas secas na mão. A noite foi devolvida às trevas. Sem estrondo da pesada porta exterior, a mulher saiu num ápice, tal como tinha entrado. Nenhuma luz se via. Apenas o fumo da chaminé continuava voando.
De madrugada, a luz da lua iluminou as flores murchas. A seu lado, podiam ver-se, jazendo no chão, umas pesadas correntes.

Jan. 2012