Este conto foi publicado este ano na coletânea
Lugares e Palavras de Natal da Editora Lugar da Palavra.
A ideia surgiu-me quando ouvi contar que uma mãe, pelo Natal,
dava uma saco cheio de prendas ao filho, quando este era pequeno.
Como todos os anos acontecia, chegou o
jantar de Natal da pequena mas empreendedora empresa, onde Ivo trabalhava. Vivia-se
a descompressão de uns dias de folga, se bem que o trabalho fosse estimulante,
reconhecendo a direção que havia sucesso graças à boa produção de todos os
colaboradores. A mesa de pingue-pongue, onde saltavam as pequenas bolas nos
intervalos da manhã e da tarde, também afastava o acumular de tensões e
contribuía para gerar um ambiente de bem-estar e felicidade, sem descurar nunca
o empenho e responsabilidade de todas as pessoas que trabalhavam na empresa.
Graças aos lucros, o diretor, com idade
semelhante à dos colaboradores e de cabelos compridos, como alguns deles,
ofereceu um I-phone a cada um no jantar de Natal como prova de reconhecimento
pelo trabalho conjunto.
Felizes e motivados, à volta da mesa do
jantar natalício, todos iam contando histórias que lhes vinham para a frente da
memória. Uns faziam-no de forma mais contida, outros não poupavam as palavras. Um
deles, segurando, orgulhoso, o novo equipamento recebido, começou a falar de
alguns presentes, bem menos eletrónicos, que recebera em Natais da sua infância
e os outros comensais logo lhe seguiram as pisadas. Uns confessavam que tinham
acreditado no Pai Natal até tarde, outros diziam que bem cedo consideravam o velhinho de barbas brancas
apenas personagem de belas histórias inventadas que os ajudavam a adormecer e a
sonhar.
Ao administrador, o Natal trazia-lhe a
lembrança das velhas tias que, durante a semana do Natal, mantinham, na velha
casa e em cima da velha mesa da cozinha, uma bandeja de vidro com uma garrafa
de vinho do Porto antigo e finos cálices verdes só utilizados nessa época, ao
lado de loiras rabanadas, polvilhadas de
açúcar e canela, para oferecer às visitas que chegassem. Para outro
colaborador, o Natal da sua infância representava muita neve e poucas prendas,
porque era passado com os pais na Suíça e os gastos tinham de ser reduzidos perante
o desemprego iminente.
Ivo sentiu, então, vontade de contar a
história que tinha vivido em vários Natais da sua infância em que o mesmo saco de serapilheira havia estado
presente:
Quando começava o mês de setembro, a mãe
retomava o trabalho e ele regressava à escola. Por essa altura, a mãe dizia
que, férias grandes terminadas, vinha o outono que logo chamava o inverno e com
este cavalgava o Natal. Em segredo e longe dos olhares do seu menino, ela começava
a reunir presentes para lhe oferecer na noite que para si era a mais mágica do ano.
Às escondidas, para nunca quebrar a
surpresa da noite de Natal, a mãe punha o
saco grande de serapilheira no armário e
nele ia depositando, paulatinamente, inúmeras prendas para o filho: carros,
comboios, jogos... que via nas montras das lojas por onde passava, ainda sem
quaisquer luzes ou sinais que anunciassem a época natalícia. Quase todas as
semanas, consoante as suas possibilidades económicas, comprava um presente que,
antes de chegar a casa, misturava com outras coisas para que Ivo nada descobrisse
nem adivinhasse. Vendo-o distraído ou a dormir, abria o armário e colocava o novo
brinquedo no saco de serapilheira de todos os anos, enquanto o seu coração abarrotava
de esperança de ver o filho cheio de alegria a brincar com todos aqueles presentes no Natal.
Assim, durante vários anos, chegada a
noite da consoada, depois da ceia, ela afastava-se discretamente, vestia o fato
de flanela encarnada, punha o velho saco de serapilheira com os presentes às
costas, batia à porta para cumprir bem a função de Pai ou Mãe Natal e entrava
com um oh! oh! oh! oh! magnânimo e folgazão, fazendo oscilar os óculos fininhos
na pontinha do nariz, quase invadido pelas enormes barbas de branco algodão.
Logo a seguir, depositava suavemente o
saco de serapilheira repleto de presentes no chão e Ivo abria-o perante os
olhares atentos dos pais e dos avós. Estes chegaram a dizer uma vez que no seu
tempo nem ao oito se chegava e que agora era mais do que oitenta, mas não
voltaram a repetir estas ou palavras afins porque não gostavam de incomodar e
os olhares que se seguiram não foram os mais amistosos.
Por isso, encher o mesmo saco de prendas
foi-se repetindo ao longo de vários anos e Ivo, apesar de estar à espera do
monte de presentes na noite de Natal, às vezes desatava a chorar porque, no
meio de tantos brinquedos, não encontrava o carro que tinha visto num anúncio da
televisão. A mãe ficava dececionada, achava que era ingratidão, mas em breve
tudo esquecia e, no ano seguinte, repetia o ritual.
Porém, num outono, faltando ainda bastante
tempo para o Natal, a mãe, por descuido, deixou ficar a chave na porta do
armário, Ivo abriu-a e o saco de serapilheira logo desabou a seus pés, de tanto
peso. De repente, muitos brinquedos ficaram espalhados pelo chão, porque o saco,
nessa altura, já estava quase cheio. Curioso, Ivo sentou-se no chão, sem saber o que escolher. A
mãe, que logo surgiu muito aflita, só se lembrou de dizer que o Pai Natal lhe tinha
pedido para guardar aqueles presentes. Nesse momento, Ivo olhou a mãe, dizendo,
com indiferença, que não gostava de nenhum deles e que, quando o Pai Natal viesse, os podia levar todos.
Agora, no jantar da empresa, passados mais
de vinte anos, Ivo recordava-se que fora a primeira vez que tinha visto o rosto
da mãe tão desalentado e a última que aquele saco de serapilheira se enchera de
brinquedos que não chegaram a ser-lhe
entregues nesse Natal. Só muito mais tarde veio a saber que a mãe os tinha
oferecido a uma instituição, trazendo, no entanto, o saco de serapilheira de
volta.
Contada a história, Ivo acrescentou que
precisava de telefonar à mãe depois do jantar da empresa. Sabia que ela ainda guardava
o velhinho saco de serapilheira. Como este ano ia ser o Pai Natal no infantário
do filho, daria jeito para pôr os
presentes que seriam oferecidos às crianças.
O gestor da empresa, com um sorriso descontraído
no meio da barba abundante, e Ivo, com um olhar que ainda não tinha descolado dessas
memórias do passado, encerraram assim a história do saco de serapilheira:
- A tua mãe merece um bom presente.
- Claro que sim. De certeza que se privava
de muitas coisas e eu nem dava valor!
- Não é só por isso.
- Então? É pela quantidade de brinquedos
que a minha mãe juntava para me dar no Natal?
-Também não é só por essa razão. Não a
conheço, mas de certeza que se fosse agora não acumulava tanta coisa para te dar de uma só vez porque as
mentalidades mudaram.
-
Queres explicar melhor?
- Apesar do excesso de presentes, acho
fantástico a tua mãe ter usado sempre o mesmo saco de serapilheira.
- Sim, já tinha pensado nisso.
- E, melhor ainda, sem nunca o trocar pelo
plástico!
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