segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

A noite dos três relógios!

Amadeo Souza-Cardoso

A velha casa tem três relógios. Todos adiantados mas a dar horas em minutos diferentes. Um soa as badaladas quando faltam uns quinze minutos para a hora certa; outro, uns vinte e tal minutos e outro ainda, exatamente, meia hora mais cinco minutos.
Este último é o que conta para as horas das refeições que são sempre a horas certas, ou melhor, certas pelo relógio adiantado meia hora mais cinco minutos. Os cinco minutos são para qualquer distração, para alguém que bate à porta, para atender o telefone, para responder à chamada da vizinha, para fechar uma janela se o vento sopra ou a chuva não para de cair... Os trinta minutos são um dos hábitos intocáveis da casa.
Se é estranho durante o dia ouvir badaladas de três relógios, muito mais estranhas são as noites  dormidas na casa. Isto é, mal dormidas.
E, como se os sons da noite estivessem incompletos, há o estalar de uma velha parede, o ruído da água a querer passar num cano ferrugento, o ronronar do gato, os ais doridos e não contidos...
Estranha é a noite. Para mais, quando não se sabe as horas ao certo.
Talvez fixar os toques dos diferentes relógios ajude a adormecer. 
Ou tenha ficado alguma janela aberta para poder olhar a paisagem noturna. E como se ouvem muitas badaladas dispersas na noite, ninguém acorda.
Ou continue sem adormecer. Como as badaladas dos três relógios.

4 comentários:

  1. Que texto tão bonito!...
    Lembra-me um bocadinho Campos! Principalmente este segmento: "E, como se os sons da noite estivessem incompletos, há o estalar de uma velha parede, o ruído da água a querer passar num cano ferrugento, o ronronar do gato, os ais doridos e não contidos...
    Estranha é a noite. Para mais, quando não se sabe as horas ao certo.".
    Vale sempre a pena aqui vir, apesar de o meu único relógio também andar por vezes, bastante desatinado.

    beijinho,
    IA

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  2. Obrigada, amiga. Que bom teres gostado e não ter sido em vão a tua vinda aqui.
    São coisas que me surgem de repente e que têm a ver com experiências que a vida nos vai apresentando em muitos dias e em muitas noites!
    Abraço
    M.

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  3. Também gostei muito deste texto. Soa bem, as palavras batem certo com as horas, mesmo que os relógios não batam certo.
    Pura poesia!
    bjs
    Ci

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  4. Que bom, Ci, também teres gostado! Obrigada!
    Embora com adaptações, não me é estranha esta realidade. Vem um momento em que bate umas badaladas em forma de palavras.
    Abraço
    M.

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