terça-feira, 22 de dezembro de 2015

A trança de Sabina



Esta pequena estória de Natal nasceu
do nascimento da minha neta, Sofia.
A médica chamava-se Sabina, era indiana, tinha uma longa trança...



Muito sabia Sabina já antes de entrar na escola primária.
E o que sabia Sabina muito se devia aos pais que, ao longo da vida, muito tinham aprendido, tendo muita paciência para lhe explicarem o mundo que via crescer à sua volta, enquanto ela crescia também. Deles nunca Sabina tinha ouvido:
- Está calada, porque não percebes nada do assunto.
Pelo contrário, gostavam de perguntar, de responder e que Sabina também perguntasse e respondesse. Sempre lhe diziam que os adultos sabem muitas coisas, mas acrescentavam que  as crianças vão igualmente acumulando montinhos de ideias e de conhecimentos que, juntos, se agigantam como uma montanha dos Himalaias.
E foi assim que Sabina se habituou a olhar, a questionar, a observar, sendo sempre uma das melhores alunas da escola.. Gostava muito de aprender, de saber mais, mas não pretendia ser a melhor de todos. Numas áreas seria, noutras não - como sempre lhe tinham dito os pais.
Sabina nascera em Jaipur, cidade - à qual muitos associam a cor rosa -  da Índia, que faz fronteira com o Paquistão, Nepal, Bangladesh.... Estas e muitas outras coisas já muito cedo Sabina sabia.
A jovem crescia sábia e serenamente, com a sua trança que juntava, ondeando-o, o farto cabelo escuro. Tal como era hábito de muitas outras meninas e mulheres indianas.
Quando Sabina acabou o ensino secundário, quis inscrever-se numa Universidade inglesa. Pretendia saber mais, ter acesso a outras experiências e conhecimentos. E viajou até Londres com as poupanças dos pais para a formação da filha. Sempre deles ouvira que a Educação é o melhor investimento.
Sabina partiu da sua cidade de Jaipur num dia do mês de outubro em que se festejava o Diwali - festa de todas as luzes e a que muitos Cristãos chamam o Natal indiano.
Rumo ao aeroporto, Sabina, em silêncio, olhava, com os seus olhos aveludados e negros, as ruas ladeadas de barraquinhas com vistosas iguarias, os cestos de malmequeres amarelos, o sari brilhante da mãe e o fato  claro e largo de linho do pai. Escutava o frenético apitar dos carros, o som ronceiro dos motociclos, o pedalar arrastado e contínuo dos magros condutores de riquexó, a vozearia alegre dos transeuntes que ziguezagueavam, com ousada confiança, através do caos colorido dos lugares.
Os familiares e amigos achavam estranho que Sabina abandonasse a cidade em plena celebração da festa de todas as luzes e de todos os cintilantes fogos de artifício. Sabina concluíra que a decisão não era errada porque todos os dias se iluminam de novas luzes e não apenas nas datas indicados no calendário. Para além disso, as aulas iriam começar na UCL Medical School  e Sabina queria a todas assistir desde o início.
Horas depois, chegava a Londres - cidade onde, aos seus olhos, iam chovendo todas as culturas e etnias. Sabina viera só, mas instalou-se, com outros estudantes, numa rua de nome Pandora. A cidade seria, pois, uma enorme caixa que, pouco a pouco, Sabina abriria para conhecer melhor o que ela continha.
Todas as manhãs, Sabina apanhava o metro para a Universidade, saindo na estação de Euston - onde sempre se ouve música clássica. Na travessia até à rua, concentrava-se naquele belo ritual de início de muitas manhãs e de regresso a casa, tantas vezes cansado.
 Sabina ia-se adaptando à nova cidade, embora se lembrasse muitas vezes da família, dos amigos, do sol, da luz, dos cheiros e sabores da casa dos pais, das cores intensas das ruas e mercados de Jaipur... Essas eram razões para não cortar a trança. Ligava-a à sua cidade natal e ao seu país que, devagar, revia em muitos momentos, embora o seu propósito de concluir o  curso nunca esmorecesse.
Se Camões a tivesse conhecido, também lhe teria dedicado, por certo, alguns dos seus versos
"Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha";

De Londres, enorme e húmida caixa de Pandora, foi tirando algumas boas amizades, o amor, a licenciatura... E ia, amorosamente, enviando para a Índia muitas  imagens do seu quotidiano através do Skype. Sobretudo para os pais.
Um dia, Sabina pôde anunciar-lhes que ia entrar na especialidade que escolhera: Ginecologia-obstetrícia.
Assim, muitos hojes passaram, muitas estações de metro calcorreou, muitas bibliotecas e cafés frequentou, muitas experiências viu realizadas, muitas teorias ouviu dentro e fora das salas de aula...
Contudo, a trança continuava, longa e escura, mimando as costas morenas de Sabina. Sempre.
Os Diwalis foram-se comemorando - com todas as luzes a celebrar a vitória do bem sobre o mal, durante sucessivos dias festivos. Os Natais  foram igualmente vividos. Até que chegou o dia em que Sabina assistiu, sozinha como especialista, ao  primeiro parto  no UCL Hospital of London..
Era final de uma madrugada. De outubro, por sinal. Um bebé demorava a nascer. Por mais que a parteira, pacientemente, insistisse (keep going, keep going...) para que os movimentos da jovem mãe o embalassem, chamando-o à luz do dia, mesmo assim, o nascimento tardava.
Para resolver o problema, entrou na sala de partos uma médica: a doutora Sabina. Aproximou-se serenamente da parturiente, sorriu, analisou, com calma, a situação e,  recorrendo aos cuidados certos, foi dizendo:
- Em breve, o bebé verá a luz do dia. Palavras ditas, ouviu-se o desejado chorinho vigoroso.  Para todos, uma nova luz que Sabina ajudara a nascer.

"Presença serena
Que a tormenta amansa";

E, logo a seguir, Sabina colocou a menina recém-nascida no seio da mãe, lembrando-se dos seus pais e de todas as luzes que lhe tinham transmitido até então.
Quando os suspiros sofridos da mãe deram lugar aos sorrisos das sublimadas ou já quase esquecidas dores, saiu do quarto, entrou, silenciosamente, no gabinete e telefonou aos pais. Estavam a celebrar a festa do Diwali. E mais Luz ainda sentiram quando Sabina partilhou a alegria de ter acompanhado, pela primeira vez e como médica de serviço, o nascimento daquele ser tão pequenino e tão completo, que abraçava saudavelmente a luz do dia, procurando alimento e aconchego.
A manhã abria-se, então, à luz de um dia claro desse mês de outubro, coincidindo com a festa das luzes no país natal de Sabina. E com a sua vinda  para Londres havia já alguns anos.
Uma nova vida começava. Sabina tornar-se-ia ainda mais sábia, por isso, ainda mais serena.
Com o tempo, uns fios brancos começaram a clarear a trança que continuava densa e longa. Eram luzes dos seus Diwalis - ou Natais - que celebrava através de cada bebé que ajudava a nascer e, por isso, a encontrar a luz.
 Como se olhasse uma trança de estrelas que, reconhecia, a tinham guiado desde a infância.

 Nota
Este conto foi publicado, neste mês de dezembro, 
na coletânea
Lugares e Palavras de Natal
da Editora Lugar da Palavra

FELIZ NATAL!

8 comentários:

  1. Gostei da história.
    Feliz Natal
    e um beijinho
    Gábi

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  2. Belíssimo conto, a cujo nascimento tive o privilégio de assistir! :)
    Feliz Natal, Dolores (também Mariana), para ti e para a tua família, especialmente para o membro mais minúsculo, que será, por certo, este ano o centro do vosso Natal, a (bis)netinha inglesinha, de nacionalidade portuguesa e amarericana!...
    beijinho,
    Ia

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  3. Obrigada, amiga, pelas tuas palavras sempre boas e quentinhas.
    Sim,olhar a Sofia, estar com ela, ajudar a cuidar dela tem sido o melhor do Natal.
    Na semana passada, uma nossa colega que também foi recentemente avó, dizia "É outra dimensão". De facto, é.

    Um xi-coração e muito feliz Natal para ti e toda a família.
    M.

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  4. Belíssimo conto!!
    Continuação de Boas Festas saborosas e ternurentas.
    Feliz Ano Novo!
    Bj
    Ci

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  5. Obrigada. Feliz Ano Novo com muitos momentos felizes.
    Beijinho
    M.

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  6. Feliz 2016 com tudo de bom.
    um beijinho
    Gábi

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  7. Obrigada, Gábi, para ti também, com muitos momentos felizes que tão bem (e também)partilhas no teu blogue - Dona Redonda.

    Beijinho
    M.

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