quarta-feira, 31 de julho de 2024

A dona Vitória

 

Saiu da Moldova há uns anos e veio trabalhar a dias para Londres. Procurava uma vida melhor porque no seu país não havia emprego. Com ela, veio o marido e um filho que, entretanto, seguiu a sua vida e foi morar para longe dos pais.

A vida foi correndo na casa minúscula cuja renda era mais comportável com o pouco dinheiro que o casal ganhava, mas nela entrara o vício do álcool, trazido pelo marido. Dona Vitória entristecia e a casa ainda lhe parecia mais pequena e sufocante, mas era o seu abrigo.

Quando o via chegar alcoolizado, mais os dentes lhe doíam e mais lhe custava comer. E o tratamento era demasiado caro em Londres. A única solução era tratar os dentes na Moldova. O marido iria também, e poderia até reduzir o vício da bebida. Teria vergonha da família, com certeza, e poderia mudar de hábitos.

Dona Vitória avisou as patroas de que iria ao seu país, onde teria de ficar umas semanas. Umas compreenderam e outras, não. 

As dores de dentes eram insuportáveis e, se a vida era dura, mais dura se tornaria se não resolvesse o problema. E lá foram. No final de umas poucas semanas, dona Vitória sentia o alívio dos dentes tratados e o marido, sentindo-se vigiado pela família, já não bebia tanto. Dona Vitória tinha esperança de que assim continuasse.

Voltaram a Londres, um pouco mais felizes do que quando haviam partido. Chegariam a casa e teriam novo ânimo para trabalhar.

Porém, à chegada a casa, depararam com o que nunca lhes tinha passado pela cabeça: o senhorio tinha-os despejado e retirado do interior todos os seus haveres. O que parecia um recomeço mais ameno era agora uma realidade nem sequer imaginada. 

Uns amigos receberam-nos,  disse ela, quando contou a uma das patroas que logo se ofereceu para fazer queixa do senhorio. Dona Vitória agradeceu muito, mas preferia não o fazer, porque perderia muito tempo e falava muito mal inglês. Disse-o com um sorriso triste de quem raramente conhece qualquer vitória.


segunda-feira, 29 de julho de 2024

Ser o dono daquilo tudo

 

Ontem houve eleições na Venezuela e hoje os resultados oficiais foram conhecidos: Nicolas Maduro, no poder há mais de dez anos, venceu por maioria absoluta (51,2 por cento).

Estes resultados contrariam todas as sondagens consideradas independentes e, atendendo a que todos os observadores externos foram impedidos de entrar no país ou proibidos de fazer o trabalho pretendido, é enorme a desconfiança sobre os dados agora conhecidos e as questões são inevitáveis sobre a possível fraude na contagem dos votos.

Se assim foi - o que parece bem provável - pode um único homem arvorar-se em querer ser dono de um país? Infelizmente não é o único, mas é terrível essa ideia e as consequências para o mundo.

Um ditador vestido com a bandeira nacional! Pobres  bandeiras quando dão pra tudo!

Quando não há transparência e o poder totalitário está na mira de quem governa, a grande parte dos cidadãos vai sufocando  de tristeza por falta de liberdade e de dinheiro para viver a sua vida.

O presidente reeleito tem de apelido Maduro. Tal como os frutos demasiado maduros, estragam o que e quem está por perto. Como se um único fruto a cair de podre pensasse que era o dono de todo o pomar e de tudo o que existe dentro das fronteiras do país. Enquanto não as puder ultrapassar, é claro.


sábado, 27 de julho de 2024

No Dia dos Avós também entram visitas especiais!


Quando tomo o pequeno almoço, tenho por hábito ligar a televisão. Ontem, dia 26 de julho (o meu pai faria anos!), não faltavam programas a falar dos avós: numa loja,  avó e neta partilhavam um negócio de artesanato; um trabalhador de hotelaria fazia um bolo cuja receita já vinha de uma das avós, etc

Pois bem, a minha neta que vive fora chegou de férias e foi o momento especial do meu dia. Vinha um bocadinho mais alta, já sem franja e o cabelo claro bem mais comprido. Dava abracinhos e aproveitava todos os espaços para, de pernitas no ar, fazer a roda, que repete e repete vezes sem conta.

A escolha da data para se juntarem à família de cá não foi premeditada e nem sei se em Londres este dia é comemorado, mas várias vezes a minha linda Clarinha me disse que estava feliz por estar cá - claro que foi em resposta às várias vezes que lhe perguntei!

E, tanto neste dia, como em tantos outros, senti saudades do meu avô paterno, que nunca vi mal disposto e sempre tinha uma pequena história, pitoresca e vivida por ele, na ponta da língua - com o mesmo brilhozinho nos olhos pequeninos e azuis, apesar de a já ter contado inúmeras vezes, não sendo, porém, nunca igual.

Como gostava que os meus netos tivessem, mais tarde, boas recordações de mim. Podia ser da comida, de conversas simples e boas, da valorização do que fazem ou dizem, sei lá, pequenas coisas que marcam os dias e a vida.

E os avós de hoje são cada vez mais importantes! Muitos desempenham papéis tão diversos e prementes. E, muitas vezes, ainda estão no ativo. Heróis para quem um dia de homenagem saberá a pouco. O melhor será mimá-los, sem data marcada nem aviso prévio, tornando os seus dias mais festivos ainda que serenos.



sexta-feira, 26 de julho de 2024

Paris está em festa!






quinta-feira, 25 de julho de 2024

Nevoeiro com sabor a pão com bananas

 

Aqui no Norte, as temperaturas até costumam ser bastante temperadas. Basta ver o mapa do boletim meteorológico para se concluir que o Sul é, habitualmente, bem mais quente.

Pois bem, nos últimos dias, o calor chegou a todo o país. E de que maneira. Ou melhor, a quase todo o país. Aqui, as temperaturas têm andado pelos trinta e tal graus - eu sei que, por exemplo, no Alentejo, mais de quarenta graus se acendem muitas vezes.  

Contudo, quem vai de carro basta andar um par de quilómetros em direção à costa para ver como a temperatura desce. Há dois ou três dias, quando o sol esquentava em terras mais afastadas do mar, em praias de Gaia o vento era frio.

E eu, que não aprecio o excesso de calor, gosto destes contrastes.da natureza. E até no nevoeiro matinal eu encontro beleza. E faz-me recordar verões do início da adolescência. Às vezes, íamos, a minha irmã e eu, com as minhas tias passar o dia numa das praias da Foz. Saíamos de casa muito cedo e,  quando chegávamos, se a areia ainda estava fria e as ondas do mar mal se distinguiam por causa do nevoeiro, comprávamos bananas e pão bem fresco - neste caso, ainda quentinho - e comíamos sentadas no muro. Sempre ouvindo reparos austeros das minhas tias para sermos discretas.

E não é que o perfume das bananas  - só o encontro nas bananas da Madeira - ainda me traz a recordação desses dias!?

Depois, quando o sol afastava o nevoeiro, descíamos à praia, guardávamos o resto do pão e das bananas e as outras coisas na barraca às riscas - quase sempre azuis - que tínhamos alugado. As minhas tias sentavam - se nas cadeirinhas, que sempre havia nas barracas, e começavam a bordar, elogiando o iodo que fazia muito bem à saúde.

Ao fim da tarde, regressávamos a casa, mas, na viagem, não falávamos das impressões do dia, porque as minhas tias diziam que o mar puxa e estavam cansadas.

Entretanto, já no elétrico, víamos que o nevoeiro tinha voltado. Porém, já sem o perfume e sabor de pão fresco com bananas.


quarta-feira, 24 de julho de 2024

Comprar ou não comprar, eis uma das questões!

 

Há muito tempo, eu ia com mais frequência ao Porto e, raramente, chegava a casa sem uma peça de roupa comprada. Às vezes, entrava numa loja sem qualquer ideia ou necessidade pré-definida e comprava quase sempre uma blusa, uma saia… depois de passar por um provador, tipo cubículo quente e horrível que nem motiva  a prestar atenção aos pormenores do que se está a comprar. Por vezes, era tão grande a vontade de sair dali que só depois via que a compra não tinha sido a mais acertada.

Agora, vou ao Porto muito menos vezes, apesar de gostar muito da cidade e do que ela tem para nos oferecer. No entanto, também nos dá demasiados turistas. Não os condeno porque todas as pessoas têm direito a conhecer outros lugares, mas os espaços, sobretudo de circulação, reduziram-se imenso. É como ir visitar alguém e encontrar uma multidão que nem nos deixa ver bem aqueles que queríamos encontrar.

Em certas ocasiões, ia(mos) ao belíssimo Café Majestic, na rua Santa Catarina. Era um prazer tomar chá ou café com leite em chávenas bonitas e fininhas e com a beleza de tantos elementos artísticos à nossa volta. Agora, nem ousaria lá entrar porque teria de estar na fila não sei quanto tempo até arranjar mesa.

Voltando à roupa, já nem me lembro de entrar numa loja, ver, escolher, provar e comprar. Fui reparando que, apesar de não ter o meu guarda-roupa muito cheio,  o que tenho dá para usar, mudar, combinar durante muito tempo. Assim sendo, para quê aumentar ainda mais as despesas mensais, comprando e acumulando roupa não muito necessária?

Porém, deste modo, não estou a dar grande contributo para a economia do país, mas talvez o ambiente e  o saldo de todos os dias se sintam um bocadinho mais confortáveis. Grão a grão …

Ah, e assim já não entro nos cubículos-provadores, onde até os espelhos me irritam, porque, sem nada dizerem, dizem-me também que tenho de emagrecer!


terça-feira, 23 de julho de 2024

Lampião e Maria Bonita


Hoje, logo de manhã, ofereceram-me este miminho, vindo do Recife e que representa o casal Lampião e Maria Bonita, figuras da cultura popular da região. Pendurei-o quase logo na cozinha e acho que fica engraçado.

Quem mo deu nasceu e viveu no Nordeste brasileiro e já me tem falado várias vezes deste par de salteadores (cangaceiros), da mesma região, que viveu no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Abordando o assunto, ela realça sempre o amor entre ambos e só depois refere as violências do cangaço.

Maria  - a mulher salteadora que sempre acompanhava o seu homem - ganhou a alcunha de Bonita, graças à sua beleza.


A história do casal - vi na net - já inspirou escritores e realizadores de cinema. Inspiradora é também a maneira como oiço falar do Recife, das suas belezas e produções, onde entram sempre Lampião e Maria Bonita.

Tudo contado com um brilhozinho nos olhos de quem vive cá, mas nunca se esquece das histórias da sua terra de lá.


segunda-feira, 22 de julho de 2024

Patti Smith

 

Todas as semanas recebo o jornal Expresso, mas muitas vezes fica à espera de melhores horas, isto é, que eu tenha tempo e vontade de o ler. Depois, lá vem um dia que seleciono e leio o que me interessa. Foi por isso que só hoje li a entrevista com Patti Smith, a cantora americana que escreve poesia e nela encontra o sentido da vida. É crente, muito ligada à familia e está muito preocupada com a possível reeleição  de Trump pelos resultados nefastos que produzirá no mundo. 

E tantas coisas mais se fica a saber desta mulher de 77 anos que espera ainda viver muitos anos para poder trabalhar e produzir coisas que sempre deseja bem feitas.

Partilho aqui um vídeo que retirei do YouTube.

Conheço muito mal a obra desta artista cujos talentos são reconhecidos e que olha para o alto sem deixar de ver onde tem os pés. Precisamos tanto de figuras assim!

domingo, 21 de julho de 2024

Le tour

 

Sempre gostei muito da língua francesa, embora não pratique há muito tempo, o que faz com que a comunicação vá ficando perra para uma conversa em francês.

Já visitei várias cidades francesas, mas a que conheço um bocadinho melhor é Paris, aonde fui várias vezes. Porém, seduzem-me as pequenas aldeias francesas que gostaria de conhecer. Talvez por isso, gosto de ver a volta à França em bicicleta, que tem mostrado imagens de belas montanhas e aldeias que nelas se encaixam. Como há quase sempre uma igreja a elevar-se dos aglomerados de casario, até o sino se ouve a tocar.

Gostaria era de ver habitantes das aldeias, mas seria pedir de mais, porque,  neste tipo de eventos, quem vemos na estrada são os adeptos, uns observadores mais ou menos sossegados, mas a maior parte cheios de vigor e entusiasmo que quase atropelam os ciclistas para os ver, para os apoiar, para tirar uma fotografia.

E, pedalando entre as belas paisagens, lá vão os ciclistas, quase todos jovens e magros, mas com uma força física e anímica espantosas, de que também é exemplo o ‘nosso’ João Almeida.

Passadas algumas horas do final da corrida, as aldeias podem voltar à calma hercúlea das montanhas e, à mesa, muitos falarão  do Tour, 

E eu a pensar  como gostaria de fazer um pequeno tour por pequenas aldeias francesas. Mas não de bicicleta, é claro.


sábado, 20 de julho de 2024

A minha prima


Tenho muitos primos, uns da minha idade, uns um pouco mais velhos e a grande parte mais novos. Basta dizer que a minha avó materna teve treze filhos e a minha avó paterna teve nove, sendo o meu pai o mais velho.  Porém, tanto de um lado como do outro da família, alguns dos filhos morreram muito cedo.

Ora, apesar de não nos encontrarmos com frequência, sempre me dei muito bem com uma prima, um pouco mais nova do que eu.

Quando éramos pequenas, como vivíamos perto, brincávamos às casinhas, sobretudo na nossa casa, debaixo de uma laranjeira à volta da qual púnhamos as bonecas a viver.

Agora, quando nos encontramos, não falamos disso, mas temos sempre motivo de conversa. É como se continuássemos à sombra da fértil laranjeira.

Há uns tempos, ela teve uma doença muito grave e, a propósito, dizia com um sorriso natural e confiante nos lábios: Eu sei o que tenho e sei que é para mim.

Quando estiver com ela, vou-lhe dizer que tenho bem presentes essas palavras. Imagino que vá sorrir, embora, naturalmente, não da mesma maneira que o fazia quando brincávamos debaixo da laranjeira. O tempo e  as vicissitudes não perdoam.

Ah, a laranjeira também já passou por doenças e lá continua. Mais velha e mais fraquinha, é claro. Também pelos frios de muitos invernos e calores de muitos verões. Sem deixar de esperar, pacientemente, por amenos outonos e renascidas primaveras.


sexta-feira, 19 de julho de 2024

Como é possível?


Como toda a gente já sabe e já viu em imagens, num ataque, enquanto discursava num comício, Trump foi atingido numa orelha. Agora, muitos seguidores do candidato a presidente dos Estados Unidos dizem que foi um sinal que o seu amado líder recebeu de Deus para ser o amado líder de todo o país e, mais ainda, o amado líder do mundo inteiro.

Como é possível?

E a imagem de Trump, à frente de grandes multidões, em êxtase, é agora quase santificada e todos os crimes - sobretudo de corrupção, que ele cometeu e já provados pelos tribunais - os seus apoiantes dizem ser falsos, inventados, criados para o denegrir e abater. E que ele, com a sua aura, agora mística de poder, vencerá. 

E o ego imenso do candidato mais cresce para atingir o céu de todo o poder e apagar de uma vez por todas as nuvens que lhe causam turbulência. 

Já nem precisa de levantar o punho enfurecido nem fazer esgares de raiva e vingança. 

Como é possível?

E as multidões rejubilam, choram, gritam, aplaudem, gesticulam perante o seu deus maior que foi escolhido por Deus. Algumas pessoas até usam um penso branco na orelha, não para se igualarem ao seu deus, mas para mostrarem que estão com ele.

Estranho fenómeno das massas.

Estranho país de tanta clarividência e de tanto negacionismo.

E que reduz a estranheza de nada parecer estranho.


quinta-feira, 18 de julho de 2024

De mãos livres!

 

Hoje, uma amiga contou-me este diálogo entre ela e uma familiar que, semana passada, festejou cem anos. Gostei muito e, por isso, o estou partilhar.


- Gostava que viesses à festinha dos meus cem anos.

- Irei com todo o gosto.

- O almoço será cá em casa.

- Ainda melhor. E o quer que eu leve? Posso fazer um bolo.

- Não tragas nada. Não quero que ninguém traga nada.

- Como assim?

- Quero que venham todos de mãos livres!

- De mãos livres?

- Sim, para nos podermos abraçar!


quarta-feira, 17 de julho de 2024

Não sei que nome lhe dar

 

Não sei que nome lhe dar

À história que escrevi

Dia a dia a acrescentar

O que vi e o que não vi


Mas é tão bom escrever

Sempre vida a acrescentar

Seja boa ou fraca a prosa

Sem nunca plagiar


O título é sempre difícil

Porque é como um resumo

Às vezes é boa fonte

Outras nem água nem sumo


Acho que fica sem titulo

Como vemos em pinturas

Aqui são só pinceladas

De mui  comuns criaturas


Se eu soubesse desenhar

Punha aqui uns corações

Para agradecer as palavras

E tantas visualizações!


E agora o que eu queria

Mesmo sem ficar na memória

Que tivessem um bom dia

Com  simples e boa história!


terça-feira, 16 de julho de 2024

As histórias nunca se acabam, mas esta fica por aqui!

 

Quando os filhos ficaram independentes, Nilda ficou a viver só e retomou um trabalho antigo de muitas mulheres da terra: enchedeira de peças em filigrana. Assim, ganhava mais algum dinheiro para si e para ajudar os filhos. 

Como trabalhava em casa,  ouvia os programas de rádio de que gostava e habituara-se também a seguir podcasts com os quais aprendia muito. Se ouvia falar de uma exposição que lhe agradava ou de um filme de que gostaria, ia nem que fosse sozinha, no que há uns anos nem pensaria sequer. Com o tempo e as experiências - umas boas outras más - foi aprendendo a dizer que era bom viver e muito havia para conhecer.

À semana, ia buscar aos ourives os brincos, pendentes, etc , peças que vinham vazias no seu interior, e devolvia-as cheias com os esses de filigrana muito fininha que formavam desenhos pequeninos e delicados que iam resultando de um trabalho minucioso em que as suas mãos hábeis eram ajudadas por uma tesoura pequenina e  uma pequena buxela.

 Para as devolver, depois de cheias com a filigrana, juntava-as num embrulhinho para que os esses de filigrana não se soltassem e saía segurando-o cuidadosamente na mão com as peças para serem soldadas na oficina. Quando se tratava de corações, dizia que levava o coração cheio

Um dia, tropeçou, caiu, o embrulhinho desfez- se e a filigrana que tinha meticulosamente inserido no molde espalhou-se pelo chão. Não se lamentou. Recuperou tudo que pôde e devolveu ao ourives, dizendo, sem drama, o que lhe tinha acontecido. O ourives ouviu-a com atenção e ofereceu-lhe  um coração de prata dourada, como seria o que lhe havia caído das mãos. 

Nilda ficou feliz e disse para si: vou usá-lo no próximo domingo.


segunda-feira, 15 de julho de 2024

E foi bater à porta da Rosarinha

 

Não sabia bem ao que ia, mas precisava de falar com alguém de confiança. A dona Rosarinha ouvi-la-ia com certeza, sem estar sempre a interromper, sem fazer perguntas, sem dar opiniões sobre tudo e sobre nada, sem ver os assuntos como pontas para falar das coisas dela. Nem ia logo contar na primeira conversa que tivesse com quem quer que fosse. 

Esperou só um bocadinho até Rosarinha abrir  o portão. Andava a regar umas plantas e pediu desculpa pela demora.

- Entre, entre, fiz umas bolachinhas e chá de limonete.Veio na hora certa.

Nilda sentia-se feliz com o acolhimento, que atenuava a frieza distante das poucas palavras trocadas com Zeferino. Mas não o podia criticar, porque, passados tantos anos, reconhecia que o final do namoro nunca tinha ficado claro. Ingenuamente, quando o reviu no recinto do baile, pensou que poderiam falar calmamente sobre o assunto. Porém, ele tinha a vida dele, os problemas dele, os amores dele, as alegrias dele e nenhuma falta Nilda já lhe faria, porque longe ia o tempo de sofrimento em Angola, quando se tinha visto mais abandonado.

Rosarinha serviu o chá, pôs as bolachinhas num pratinho bonito e esperou que Nilda começasse a falar. De certeza que precisava de desabafar ou tratar de algum assunto.  Sabia que Nilda nunca ia a casa de ninguém sem motivo.

Mas estava difícil desenlaçar as palavras e, como se fosse água a ferver para mais um bule de chá, Nilda começou a falar da sua vida que, via agora, tinha sido errática e não como gostaria.

 Queria afastar culpas que inculcara toda a vida, mas lamentava não ter sido mais corajosa, mais confiante, mais decidida, menos cativa do desamor, e, logo, mais feliz.

Já era noite quando Nilda saiu de casa de Rosarinha. 

- A partir de agora, vou esquecer a minha idade e o meu passado e vou ser uma mulher diferente - disse para si própria, enquanto se via ao espelho e encontrava ainda algum encanto na sua imagem - o encanto de saber que o mundo também lhe pertencia. Como a qualquer ser humano de pleno direito.


domingo, 14 de julho de 2024

Nilda foi ganhando coragem e aproximou-se de Zeferino

 

- Como estás, Zeferino? Que bom rever-te. Há tanto tempo.

- Estou bem, obrigado, e vejo que tu também estás. 

- A vida não me tem sido fácil, mas é bom viver.

- A vida não é fácil para ninguém. 

Nilda ia reparando na frieza do olhar e das palavras de Zeferino que não lhe dava de bom grado as boas-vindas, mas ela foi forçando o diálogo.

- Costumas vir aqui dançar?

- Só de vez em quando. A minha mulher gosta muito.

- Ela está cá, então?

- Sim, vem ali e vai querer dançar de certeza. Vou indo ao encontro dela. Adeus, Nilda. Gostei de te ver.

Nilda ficou a vê-lo afastar-se. Mancava um pouco. Talvez por sequela deixada pelo acidente na guerra colonial.  Daí a nada, os dois já dançavam e pareciam felizes.

Durante um lapso de tempo, Nilda deixou de ouvir o que se passava à sua volta. O pensamento era assolado por imagens da sua vida. 

A infância sem sorrisos em casa, as idas a pé para a escola com medo das pedras dos rapazes e da possível vinda do inspetor para ver se as mãos estavam lavadas e as unhas limpas… Mas revia também a D.Rosinha, angélica professora muito devota do menino Jesus de Praga; a D. Berta que puxava as orelhas quando alguém não sabia a tabuada  ou errava nas contas; a D. Gracinda que sabia ver o que as meninas faziam bem e tentava desenvolver esses saberes.

O ficar em casa a partir dos dez anos e gostar de ir ao lavadouro para ouvir algumas conversas entre as mulheres; outras eram tristes e afastava-se para não as ouvir.

Já adolescente, os passeios a pé ao domingo com as amigas, ou às festas de Santos padroeiros. E o estrear de meias de vidro e sapatos de tacão: de início, pequenino e fininho, mais alto com o avançar da adolescência. E a preocupação que era, e às vezes risota, quando os saltos ficavam presos entre os paralelos da estrada e os sapatos saíam dos pés. E os rapazes que andavam atrás delas, como diziam. E as virtudes e defeitos que neles viam. E as conversas sobre eles com muitas gargalhadas.

E os sorrisos em casa que não nasciam. E o desamor e indiferença que medravam. E a vida doméstica onde cabia a aprendizagem de rendas e bordados, tudo numa obrigação austera e religiosa. E algumas zangas e ciúmes entre as amigas por causa dos pretendentes. E tão inocentes que quase todos eram!

Até que apareceu o Zeferino, o primeiro grande amor da sua vida. Para quem e com quem sorria com gosto. Fora o seu único amor? - interrogava-se agora, alheada do bailarico. Viera para dançar e era o seu passado que não lhe deixava de dançar na cabeça.

E aquela decisão de considerar o namoro acabado por desconfiança e receio de desiludir ou ter uma desilusão, motor de mais culpabilidade.

Depois, o Augusto com quem casou e com quem viveu tantos anos e com quem não trocou sorrisos como gostaria. 

Sem vontade de dançar, saiu do recinto e, em breve, estava em casa. Telefonou aos filhos para ver se estava tudo bem e foi bater à porta da Rosarinha.


sábado, 13 de julho de 2024

E foi quando Nilda viu Zeferino, o primeiro grande amor da sua vida.

 

Há mais de quarenta anos que Nilda não via Zeferino. Para dizer a verdade, lembrava-se dele muitas vezes, mas era casada e afastava essas ideias da cabeça. Ele era divertido e tinha um sorriso bonito e prazenteiro. Nilda sentia o amor que também a fazia sorrir. 

Dele, os pais de Nilda tinham gostado. Para mais, tinha posses e alguns estudos. Começaram a namorar andava ele na tropa, e o tempo era de guerra colonial. Em breve, foi mobilizado para Angola. Despediram-se com tristeza e já saudade. 

Com o passar do tempo, veio o vazio que ela não tinha aprendido a preencher.  Se havia o longe da vista, logo pensava no longe do coração que poderia levar ao esquecimento ou desamor.

Se nunca sentira amor vindo da família mais próxima, como podia continuar a ser amada por alguém que conhecera  não havia um ano e tão longe dela estava?

Simpático como ele era, em Luanda arranjaria facilmente outra namorada. Valeria a pena esperar por ele para ter uma desilusão? Para ser olhada com indiferença?

Trocavam aerogramas e cartas. Nilda queria juras de amor e, em vez delas, Zeferino contava ataques sofridos ou perpetrados, por obrigação, pela sua Companhia. Nilda ia-se convencendo de que Zeferino já não gostava dela. 

E de novo a ideia recorrente de que, se nunca se sentira amada pelos mais próximos, também não o seria por ele que estava tão longe. A par, vinha a culpabilidade que também a fazia sofrer.

Um dia, mandou-lhe uma carta em que usou e abusou do verbo amar, para ter provas de que ele gostava dela.  Ele respondeu-lhe que não compreendia a carta que, como dizia o poeta, era  ridícula e durante algum tempo não deu notícias. 

Nilda, insegura como era quanto ao amor dos outros, considerou a ausência de correspondência como prova de que o namoro tinha acabado. Recebeu ainda alguns aerogramas que nem chegou a abrir, convencida de que eram de desamor e era de amor que precisava.

Umas semanas depois, Augusto telefonou-lhe a convidá-la para um baile de garagem e ela aceitou, dizendo para si que era livre e fiel.

Muito tempo depois, soube que Zeferino tinha tido um grave acidente num ataque que tinham travado nos dias em que as cartas do verbo amar circulavam. Ficou sem palavras.

Agora, passados mais de quarenta anos, estavam próximos, na mesma tarde de domingo e no mesmo recinto de dança.

Apesar da grande dimensão do espaço, os seus olhares encontraram-se, Nilda sorriu-lhe, mas ele não, mantendo-se sereno no lugar onde estava.

Nilda foi ganhando coragem e abeirou-se de Zeferino.

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Não, vou ao baile, como tinha decidido!

  

Não fazia ideia de como seria um baile de domingo à tarde e, quando chegou, ficou estupefacta porque havia mais gente do que pensava. Assim, até era melhor. Passava despercebida, ouvia música romântica ou divertida e via gente alegre à sua volta.

De repente, aproximou-se um homem de jeans apertados nas pernas magras e arqueadas e camisa às flores, também  muito justa. O cabelo parecia molhado e penteado para trás. Num braço, uma tatuagem com um coração atravessado por uma seta e onde se podia ler Amor de mãe.

Corou e recusou gentilmente  o convite para dançar.

- Para já não, só se for daqui a bocadinho.

Ele afastou-se com o descontentamento triste da rejeição, alisando mais o cabelo com as duas mãos. 

 Muito próximo dela estava um casal que meteu conversa por ela ter recusado o convite e por estar a sorrir sem eles saberem porquê.

Ela não contou, mas a situação fez-lhe lembrar a história da carochinha que tantas vezes tinha contado aos filhos. Só não sabia que animal podia ter sido afastado. Talvez o galo, ou talvez não. Porém, se cantasse, enchendo o peito de ar, ainda saltavam os botões da camisa. Ou seria um gato vaidoso? Dos que sobem ladinos para o telhado e ficam a espreitar? O João Ratão não seria, porque desistiu logo após a recusa do convite e nem um sorriso deu.

Estava com estes pensamentos e com cara de carochinha à janela não à espera de casar mas de dançar, quando viu passar um grupo de folgazões em fila e a cantar ‘Lá vai o comboio…’ . Levantou-se depressa e, sem pensar muito, encaixou-se na fila cantante e dançante. E foi quando viu Zeferino, o primeiro grande amor da sua vida.


quinta-feira, 11 de julho de 2024

Disse que ia a um baile na tarde do domingo seguinte.


Nilda já não dançava desde o tempo de namoro. Nesse tempo, adorava os bailes de garagem. Na memória, lá estava sempre um velhinho e pequeno gira-discos, que às vezes arranhava o disco e fazia parar a dança. E, nas capas dos discos, lá estavam os ídolos:  a Rita Pavone, o Nelson Ned, o Adamo, o Gianni Morandi, a Francoise Hardy, o Elvis Presley…

Muitas vezes, o espaço era pequeno e o calor apertava nos abraços dos slows, ou nos twists desajeitados e rodopiados.

Augusto ia de fato e gravata. Naque tempo, já gostava de fato claro, mesmo no inverno, e os sapatos brancos também contavam com a sua predileção. A mãe de Nilda, que sabia muitos provérbios, disse um dia de mau humor: Sapato branco em janeiro, sinal de pouco dinheiro.

Nilda sabia bem do desamor dos pais por Augusto, mas ele era tão sedutor e meigo a dançar que a fazia esquecer de tudo o resto. Os dois corpos encaixavam-se e confortavam-se.

Às vezes, pensava: mas a vida não é só viver abraçada a dançar. De facto, havia coisas nele de que não gostava, como fumar e cuspir para o chão, mas o que prevalecia eram os carinhos nos bailes e um dia ele até lhe disse: vou fazer de ti uma princesa, o que a fez  esquecer as conversas que ele não sabia manter e de que ela gostaria muito.

Os pais não gostavam dele, mas ele parecia assegurar-lhe uma vida com beijos e abraços que em casa nunca tinha tido. E que tanta falta lhe haviam feito. O resto viria por acréscimo.

Veio o casamento e, afinal, a prometida princesa nunca o seria e ele, por sua vez, achar-se-ia um príncipe de um reino pobre no qual sentia o direito e poder de mandar.

Tudo isto pensava Nilda enquanto se dirigia ao baile de domingo numa tarde de sol. A meio do caminho, pensou voltar para trás. Vir para casa, ligar a televisão e passar a ferro. Ainda se levantou do assento da camioneta. Não, disse para si própria, vou ao baile, como tinha decidido. Nada me fará recuar. E voltou a sentar-se já sem hesitação.


quarta-feira, 10 de julho de 2024

De repente, era a campainha a tocar em desespero!


 Era Nilda que tocava aflita. 

- Dona Rosarinha, dona Rosarinha, abra e ajude-me, por favor.

- O que se passa, Nilda, o que se passa?

- O meu Augusto está muito mal. Tem de vir a ambulância, mas o meu telefone está avariado

Passados uns minutos, chegava o 112 e a maca ia até ao tanque, onde o dr Esticadinho tinha caído quando foi pôr a camisa com a nódoa de molho. Nem chegou a mergulhar a camisa na água com detergente, deu-lhe uma coisa - como disse Nilda - e caiu redondo no chão - como acrescentou ao enfermeiro.

Chegou ao hospital, com a sua calça branca suja e amarrotada, sapato branco com um pouco de lama e a camisola interior com manchas de terra e ele já sem vida. O dr Esticadinho parecia mais encolhido e pequenino.

Na Casa do Sol, soube-se do falecimento no dia seguinte, fez-se silêncio e os sorrisos fecharam-se. Mas durante pouco tempo. Até a Tilde dizer:

- Meninas, enquanto há vida, há alegria. Vamos mas é celebrar o tempo em que este nosso amigo do peito esteve feliz entre nós.

Ao funeral, que a Rosarinha ajudou a pagar, vieram três pessoas desconhecidas. Houve quem falasse de três mulheres, outros de três senhoras, outros de três raparigas e também se ouviu que eram três meninas.

No velório, Nilda estava pálida, pensativa e fazia ainda mais festas aos filhos. O Nequita leu umas orações do missal, tropeçando nas palavras mais difíceis, mas, durante a leitura, houve silêncio e as vizinhas não fizeram tantas perguntas nem olhavam tanto para as coloridas forasteiras.

Quando todos regressavam a casa, o Nequita pôs-se ao lado de Nilda e explicou-lhe quem eram as três senhoras desconhecidas, sem Nilda lhe perguntar nada. Rosarinha deu-lhe uma pequena cotovelada, mas ele não percebeu e continuou. Ela sentiu então que a sua causa de ajudar Nequita a entrar na vida religiosa também tinha morrido. 

Tentaria motivá-lo a arranjar um trabalho o mais brevemente possível. Talvez o padre não concordasse, mas tinha de ser prática e decidida.

O tempo foi passando: dias, semanas, meses… e Nilda, um dia, disse a Rosarinha que se sentia muito só, aliás como sempre se tinha sentido, mesmo quando o seu Augusto era vivo.

E, com um sorriso meigo e sereno, disse que ia a um baile na tarde do domingo seguinte.