domingo, 21 de julho de 2024

Le tour

 

Sempre gostei muito da língua francesa, embora não pratique há muito tempo, o que faz com que a comunicação vá ficando perra para uma conversa em francês.

Já visitei várias cidades francesas, mas a que conheço um bocadinho melhor é Paris, aonde fui várias vezes. Porém, seduzem-me as pequenas aldeias francesas que gostaria de conhecer. Talvez por isso, gosto de ver a volta à França em bicicleta, que tem mostrado imagens de belas montanhas e aldeias que nelas se encaixam. Como há quase sempre uma igreja a elevar-se dos aglomerados de casario, até o sino se ouve a tocar.

Gostaria era de ver habitantes das aldeias, mas seria pedir de mais, porque,  neste tipo de eventos, quem vemos na estrada são os adeptos, uns observadores mais ou menos sossegados, mas a maior parte cheios de vigor e entusiasmo que quase atropelam os ciclistas para os ver, para os apoiar, para tirar uma fotografia.

E, pedalando entre as belas paisagens, lá vão os ciclistas, quase todos jovens e magros, mas com uma força física e anímica espantosas, de que também é exemplo o ‘nosso’ João Almeida.

Passadas algumas horas do final da corrida, as aldeias podem voltar à calma hercúlea das montanhas e, à mesa, muitos falarão  do Tour, 

E eu a pensar  como gostaria de fazer um pequeno tour por pequenas aldeias francesas. Mas não de bicicleta, é claro.


sábado, 20 de julho de 2024

A minha prima


Tenho muitos primos, uns da minha idade, uns um pouco mais velhos e a grande parte mais novos. Basta dizer que a minha avó materna teve treze filhos e a minha avó paterna teve nove, sendo o meu pai o mais velho.  Porém, tanto de um lado como do outro da família, alguns dos filhos morreram muito cedo.

Ora, apesar de não nos encontrarmos com frequência, sempre me dei muito bem com uma prima, um pouco mais nova do que eu.

Quando éramos pequenas, como vivíamos perto, brincávamos às casinhas, sobretudo na nossa casa, debaixo de uma laranjeira à volta da qual púnhamos as bonecas a viver.

Agora, quando nos encontramos, não falamos disso, mas temos sempre motivo de conversa. É como se continuássemos à sombra da fértil laranjeira.

Há uns tempos, ela teve uma doença muito grave e, a propósito, dizia com um sorriso natural e confiante nos lábios: Eu sei o que tenho e sei que é para mim.

Quando estiver com ela, vou-lhe dizer que tenho bem presentes essas palavras. Imagino que vá sorrir, embora, naturalmente, não da mesma maneira que o fazia quando brincávamos debaixo da laranjeira. O tempo e  as vicissitudes não perdoam.

Ah, a laranjeira também já passou por doenças e lá continua. Mais velha e mais fraquinha, é claro. Também pelos frios de muitos invernos e calores de muitos verões. Sem deixar de esperar, pacientemente, por amenos outonos e renascidas primaveras.


sexta-feira, 19 de julho de 2024

Como é possível?


Como toda a gente já sabe e já viu em imagens, num ataque, enquanto discursava num comício, Trump foi atingido numa orelha. Agora, muitos seguidores do candidato a presidente dos Estados Unidos dizem que foi um sinal que o seu amado líder recebeu de Deus para ser o amado líder de todo o país e, mais ainda, o amado líder do mundo inteiro.

Como é possível?

E a imagem de Trump, à frente de grandes multidões, em êxtase, é agora quase santificada e todos os crimes - sobretudo de corrupção, que ele cometeu e já provados pelos tribunais - os seus apoiantes dizem ser falsos, inventados, criados para o denegrir e abater. E que ele, com a sua aura, agora mística de poder, vencerá. 

E o ego imenso do candidato mais cresce para atingir o céu de todo o poder e apagar de uma vez por todas as nuvens que lhe causam turbulência. 

Já nem precisa de levantar o punho enfurecido nem fazer esgares de raiva e vingança. 

Como é possível?

E as multidões rejubilam, choram, gritam, aplaudem, gesticulam perante o seu deus maior que foi escolhido por Deus. Algumas pessoas até usam um penso branco na orelha, não para se igualarem ao seu deus, mas para mostrarem que estão com ele.

Estranho fenómeno das massas.

Estranho país de tanta clarividência e de tanto negacionismo.

E que reduz a estranheza de nada parecer estranho.


quinta-feira, 18 de julho de 2024

De mãos livres!

 

Hoje, uma amiga contou-me este diálogo entre ela e uma familiar que, semana passada, festejou cem anos. Gostei muito e, por isso, o estou partilhar.


- Gostava que viesses à festinha dos meus cem anos.

- Irei com todo o gosto.

- O almoço será cá em casa.

- Ainda melhor. E o quer que eu leve? Posso fazer um bolo.

- Não tragas nada. Não quero que ninguém traga nada.

- Como assim?

- Quero que venham todos de mãos livres!

- De mãos livres?

- Sim, para nos podermos abraçar!


quarta-feira, 17 de julho de 2024

Não sei que nome lhe dar

 

Não sei que nome lhe dar

À história que escrevi

Dia a dia a acrescentar

O que vi e o que não vi


Mas é tão bom escrever

Sempre vida a acrescentar

Seja boa ou fraca a prosa

Sem nunca plagiar


O título é sempre difícil

Porque é como um resumo

Às vezes é boa fonte

Outras nem água nem sumo


Acho que fica sem titulo

Como vemos em pinturas

Aqui são só pinceladas

De mui  comuns criaturas


Se eu soubesse desenhar

Punha aqui uns corações

Para agradecer as palavras

E tantas visualizações!


E agora o que eu queria

Mesmo sem ficar na memória

Que tivessem um bom dia

Com  simples e boa história!


terça-feira, 16 de julho de 2024

As histórias nunca se acabam, mas esta fica por aqui!

 

Quando os filhos ficaram independentes, Nilda ficou a viver só e retomou um trabalho antigo de muitas mulheres da terra: enchedeira de peças em filigrana. Assim, ganhava mais algum dinheiro para si e para ajudar os filhos. 

Como trabalhava em casa,  ouvia os programas de rádio de que gostava e habituara-se também a seguir podcasts com os quais aprendia muito. Se ouvia falar de uma exposição que lhe agradava ou de um filme de que gostaria, ia nem que fosse sozinha, no que há uns anos nem pensaria sequer. Com o tempo e as experiências - umas boas outras más - foi aprendendo a dizer que era bom viver e muito havia para conhecer.

À semana, ia buscar aos ourives os brincos, pendentes, etc , peças que vinham vazias no seu interior, e devolvia-as cheias com os esses de filigrana muito fininha que formavam desenhos pequeninos e delicados que iam resultando de um trabalho minucioso em que as suas mãos hábeis eram ajudadas por uma tesoura pequenina e  uma pequena buxela.

 Para as devolver, depois de cheias com a filigrana, juntava-as num embrulhinho para que os esses de filigrana não se soltassem e saía segurando-o cuidadosamente na mão com as peças para serem soldadas na oficina. Quando se tratava de corações, dizia que levava o coração cheio

Um dia, tropeçou, caiu, o embrulhinho desfez- se e a filigrana que tinha meticulosamente inserido no molde espalhou-se pelo chão. Não se lamentou. Recuperou tudo que pôde e devolveu ao ourives, dizendo, sem drama, o que lhe tinha acontecido. O ourives ouviu-a com atenção e ofereceu-lhe  um coração de prata dourada, como seria o que lhe havia caído das mãos. 

Nilda ficou feliz e disse para si: vou usá-lo no próximo domingo.


segunda-feira, 15 de julho de 2024

E foi bater à porta da Rosarinha

 

Não sabia bem ao que ia, mas precisava de falar com alguém de confiança. A dona Rosarinha ouvi-la-ia com certeza, sem estar sempre a interromper, sem fazer perguntas, sem dar opiniões sobre tudo e sobre nada, sem ver os assuntos como pontas para falar das coisas dela. Nem ia logo contar na primeira conversa que tivesse com quem quer que fosse. 

Esperou só um bocadinho até Rosarinha abrir  o portão. Andava a regar umas plantas e pediu desculpa pela demora.

- Entre, entre, fiz umas bolachinhas e chá de limonete.Veio na hora certa.

Nilda sentia-se feliz com o acolhimento, que atenuava a frieza distante das poucas palavras trocadas com Zeferino. Mas não o podia criticar, porque, passados tantos anos, reconhecia que o final do namoro nunca tinha ficado claro. Ingenuamente, quando o reviu no recinto do baile, pensou que poderiam falar calmamente sobre o assunto. Porém, ele tinha a vida dele, os problemas dele, os amores dele, as alegrias dele e nenhuma falta Nilda já lhe faria, porque longe ia o tempo de sofrimento em Angola, quando se tinha visto mais abandonado.

Rosarinha serviu o chá, pôs as bolachinhas num pratinho bonito e esperou que Nilda começasse a falar. De certeza que precisava de desabafar ou tratar de algum assunto.  Sabia que Nilda nunca ia a casa de ninguém sem motivo.

Mas estava difícil desenlaçar as palavras e, como se fosse água a ferver para mais um bule de chá, Nilda começou a falar da sua vida que, via agora, tinha sido errática e não como gostaria.

 Queria afastar culpas que inculcara toda a vida, mas lamentava não ter sido mais corajosa, mais confiante, mais decidida, menos cativa do desamor, e, logo, mais feliz.

Já era noite quando Nilda saiu de casa de Rosarinha. 

- A partir de agora, vou esquecer a minha idade e o meu passado e vou ser uma mulher diferente - disse para si própria, enquanto se via ao espelho e encontrava ainda algum encanto na sua imagem - o encanto de saber que o mundo também lhe pertencia. Como a qualquer ser humano de pleno direito.


domingo, 14 de julho de 2024

Nilda foi ganhando coragem e aproximou-se de Zeferino

 

- Como estás, Zeferino? Que bom rever-te. Há tanto tempo.

- Estou bem, obrigado, e vejo que tu também estás. 

- A vida não me tem sido fácil, mas é bom viver.

- A vida não é fácil para ninguém. 

Nilda ia reparando na frieza do olhar e das palavras de Zeferino que não lhe dava de bom grado as boas-vindas, mas ela foi forçando o diálogo.

- Costumas vir aqui dançar?

- Só de vez em quando. A minha mulher gosta muito.

- Ela está cá, então?

- Sim, vem ali e vai querer dançar de certeza. Vou indo ao encontro dela. Adeus, Nilda. Gostei de te ver.

Nilda ficou a vê-lo afastar-se. Mancava um pouco. Talvez por sequela deixada pelo acidente na guerra colonial.  Daí a nada, os dois já dançavam e pareciam felizes.

Durante um lapso de tempo, Nilda deixou de ouvir o que se passava à sua volta. O pensamento era assolado por imagens da sua vida. 

A infância sem sorrisos em casa, as idas a pé para a escola com medo das pedras dos rapazes e da possível vinda do inspetor para ver se as mãos estavam lavadas e as unhas limpas… Mas revia também a D.Rosinha, angélica professora muito devota do menino Jesus de Praga; a D. Berta que puxava as orelhas quando alguém não sabia a tabuada  ou errava nas contas; a D. Gracinda que sabia ver o que as meninas faziam bem e tentava desenvolver esses saberes.

O ficar em casa a partir dos dez anos e gostar de ir ao lavadouro para ouvir algumas conversas entre as mulheres; outras eram tristes e afastava-se para não as ouvir.

Já adolescente, os passeios a pé ao domingo com as amigas, ou às festas de Santos padroeiros. E o estrear de meias de vidro e sapatos de tacão: de início, pequenino e fininho, mais alto com o avançar da adolescência. E a preocupação que era, e às vezes risota, quando os saltos ficavam presos entre os paralelos da estrada e os sapatos saíam dos pés. E os rapazes que andavam atrás delas, como diziam. E as virtudes e defeitos que neles viam. E as conversas sobre eles com muitas gargalhadas.

E os sorrisos em casa que não nasciam. E o desamor e indiferença que medravam. E a vida doméstica onde cabia a aprendizagem de rendas e bordados, tudo numa obrigação austera e religiosa. E algumas zangas e ciúmes entre as amigas por causa dos pretendentes. E tão inocentes que quase todos eram!

Até que apareceu o Zeferino, o primeiro grande amor da sua vida. Para quem e com quem sorria com gosto. Fora o seu único amor? - interrogava-se agora, alheada do bailarico. Viera para dançar e era o seu passado que não lhe deixava de dançar na cabeça.

E aquela decisão de considerar o namoro acabado por desconfiança e receio de desiludir ou ter uma desilusão, motor de mais culpabilidade.

Depois, o Augusto com quem casou e com quem viveu tantos anos e com quem não trocou sorrisos como gostaria. 

Sem vontade de dançar, saiu do recinto e, em breve, estava em casa. Telefonou aos filhos para ver se estava tudo bem e foi bater à porta da Rosarinha.


sábado, 13 de julho de 2024

E foi quando Nilda viu Zeferino, o primeiro grande amor da sua vida.

 

Há mais de quarenta anos que Nilda não via Zeferino. Para dizer a verdade, lembrava-se dele muitas vezes, mas era casada e afastava essas ideias da cabeça. Ele era divertido e tinha um sorriso bonito e prazenteiro. Nilda sentia o amor que também a fazia sorrir. 

Dele, os pais de Nilda tinham gostado. Para mais, tinha posses e alguns estudos. Começaram a namorar andava ele na tropa, e o tempo era de guerra colonial. Em breve, foi mobilizado para Angola. Despediram-se com tristeza e já saudade. 

Com o passar do tempo, veio o vazio que ela não tinha aprendido a preencher.  Se havia o longe da vista, logo pensava no longe do coração que poderia levar ao esquecimento ou desamor.

Se nunca sentira amor vindo da família mais próxima, como podia continuar a ser amada por alguém que conhecera  não havia um ano e tão longe dela estava?

Simpático como ele era, em Luanda arranjaria facilmente outra namorada. Valeria a pena esperar por ele para ter uma desilusão? Para ser olhada com indiferença?

Trocavam aerogramas e cartas. Nilda queria juras de amor e, em vez delas, Zeferino contava ataques sofridos ou perpetrados, por obrigação, pela sua Companhia. Nilda ia-se convencendo de que Zeferino já não gostava dela. 

E de novo a ideia recorrente de que, se nunca se sentira amada pelos mais próximos, também não o seria por ele que estava tão longe. A par, vinha a culpabilidade que também a fazia sofrer.

Um dia, mandou-lhe uma carta em que usou e abusou do verbo amar, para ter provas de que ele gostava dela.  Ele respondeu-lhe que não compreendia a carta que, como dizia o poeta, era  ridícula e durante algum tempo não deu notícias. 

Nilda, insegura como era quanto ao amor dos outros, considerou a ausência de correspondência como prova de que o namoro tinha acabado. Recebeu ainda alguns aerogramas que nem chegou a abrir, convencida de que eram de desamor e era de amor que precisava.

Umas semanas depois, Augusto telefonou-lhe a convidá-la para um baile de garagem e ela aceitou, dizendo para si que era livre e fiel.

Muito tempo depois, soube que Zeferino tinha tido um grave acidente num ataque que tinham travado nos dias em que as cartas do verbo amar circulavam. Ficou sem palavras.

Agora, passados mais de quarenta anos, estavam próximos, na mesma tarde de domingo e no mesmo recinto de dança.

Apesar da grande dimensão do espaço, os seus olhares encontraram-se, Nilda sorriu-lhe, mas ele não, mantendo-se sereno no lugar onde estava.

Nilda foi ganhando coragem e abeirou-se de Zeferino.

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Não, vou ao baile, como tinha decidido!

  

Não fazia ideia de como seria um baile de domingo à tarde e, quando chegou, ficou estupefacta porque havia mais gente do que pensava. Assim, até era melhor. Passava despercebida, ouvia música romântica ou divertida e via gente alegre à sua volta.

De repente, aproximou-se um homem de jeans apertados nas pernas magras e arqueadas e camisa às flores, também  muito justa. O cabelo parecia molhado e penteado para trás. Num braço, uma tatuagem com um coração atravessado por uma seta e onde se podia ler Amor de mãe.

Corou e recusou gentilmente  o convite para dançar.

- Para já não, só se for daqui a bocadinho.

Ele afastou-se com o descontentamento triste da rejeição, alisando mais o cabelo com as duas mãos. 

 Muito próximo dela estava um casal que meteu conversa por ela ter recusado o convite e por estar a sorrir sem eles saberem porquê.

Ela não contou, mas a situação fez-lhe lembrar a história da carochinha que tantas vezes tinha contado aos filhos. Só não sabia que animal podia ter sido afastado. Talvez o galo, ou talvez não. Porém, se cantasse, enchendo o peito de ar, ainda saltavam os botões da camisa. Ou seria um gato vaidoso? Dos que sobem ladinos para o telhado e ficam a espreitar? O João Ratão não seria, porque desistiu logo após a recusa do convite e nem um sorriso deu.

Estava com estes pensamentos e com cara de carochinha à janela não à espera de casar mas de dançar, quando viu passar um grupo de folgazões em fila e a cantar ‘Lá vai o comboio…’ . Levantou-se depressa e, sem pensar muito, encaixou-se na fila cantante e dançante. E foi quando viu Zeferino, o primeiro grande amor da sua vida.


quinta-feira, 11 de julho de 2024

Disse que ia a um baile na tarde do domingo seguinte.


Nilda já não dançava desde o tempo de namoro. Nesse tempo, adorava os bailes de garagem. Na memória, lá estava sempre um velhinho e pequeno gira-discos, que às vezes arranhava o disco e fazia parar a dança. E, nas capas dos discos, lá estavam os ídolos:  a Rita Pavone, o Nelson Ned, o Adamo, o Gianni Morandi, a Francoise Hardy, o Elvis Presley…

Muitas vezes, o espaço era pequeno e o calor apertava nos abraços dos slows, ou nos twists desajeitados e rodopiados.

Augusto ia de fato e gravata. Naque tempo, já gostava de fato claro, mesmo no inverno, e os sapatos brancos também contavam com a sua predileção. A mãe de Nilda, que sabia muitos provérbios, disse um dia de mau humor: Sapato branco em janeiro, sinal de pouco dinheiro.

Nilda sabia bem do desamor dos pais por Augusto, mas ele era tão sedutor e meigo a dançar que a fazia esquecer de tudo o resto. Os dois corpos encaixavam-se e confortavam-se.

Às vezes, pensava: mas a vida não é só viver abraçada a dançar. De facto, havia coisas nele de que não gostava, como fumar e cuspir para o chão, mas o que prevalecia eram os carinhos nos bailes e um dia ele até lhe disse: vou fazer de ti uma princesa, o que a fez  esquecer as conversas que ele não sabia manter e de que ela gostaria muito.

Os pais não gostavam dele, mas ele parecia assegurar-lhe uma vida com beijos e abraços que em casa nunca tinha tido. E que tanta falta lhe haviam feito. O resto viria por acréscimo.

Veio o casamento e, afinal, a prometida princesa nunca o seria e ele, por sua vez, achar-se-ia um príncipe de um reino pobre no qual sentia o direito e poder de mandar.

Tudo isto pensava Nilda enquanto se dirigia ao baile de domingo numa tarde de sol. A meio do caminho, pensou voltar para trás. Vir para casa, ligar a televisão e passar a ferro. Ainda se levantou do assento da camioneta. Não, disse para si própria, vou ao baile, como tinha decidido. Nada me fará recuar. E voltou a sentar-se já sem hesitação.


quarta-feira, 10 de julho de 2024

De repente, era a campainha a tocar em desespero!


 Era Nilda que tocava aflita. 

- Dona Rosarinha, dona Rosarinha, abra e ajude-me, por favor.

- O que se passa, Nilda, o que se passa?

- O meu Augusto está muito mal. Tem de vir a ambulância, mas o meu telefone está avariado

Passados uns minutos, chegava o 112 e a maca ia até ao tanque, onde o dr Esticadinho tinha caído quando foi pôr a camisa com a nódoa de molho. Nem chegou a mergulhar a camisa na água com detergente, deu-lhe uma coisa - como disse Nilda - e caiu redondo no chão - como acrescentou ao enfermeiro.

Chegou ao hospital, com a sua calça branca suja e amarrotada, sapato branco com um pouco de lama e a camisola interior com manchas de terra e ele já sem vida. O dr Esticadinho parecia mais encolhido e pequenino.

Na Casa do Sol, soube-se do falecimento no dia seguinte, fez-se silêncio e os sorrisos fecharam-se. Mas durante pouco tempo. Até a Tilde dizer:

- Meninas, enquanto há vida, há alegria. Vamos mas é celebrar o tempo em que este nosso amigo do peito esteve feliz entre nós.

Ao funeral, que a Rosarinha ajudou a pagar, vieram três pessoas desconhecidas. Houve quem falasse de três mulheres, outros de três senhoras, outros de três raparigas e também se ouviu que eram três meninas.

No velório, Nilda estava pálida, pensativa e fazia ainda mais festas aos filhos. O Nequita leu umas orações do missal, tropeçando nas palavras mais difíceis, mas, durante a leitura, houve silêncio e as vizinhas não fizeram tantas perguntas nem olhavam tanto para as coloridas forasteiras.

Quando todos regressavam a casa, o Nequita pôs-se ao lado de Nilda e explicou-lhe quem eram as três senhoras desconhecidas, sem Nilda lhe perguntar nada. Rosarinha deu-lhe uma pequena cotovelada, mas ele não percebeu e continuou. Ela sentiu então que a sua causa de ajudar Nequita a entrar na vida religiosa também tinha morrido. 

Tentaria motivá-lo a arranjar um trabalho o mais brevemente possível. Talvez o padre não concordasse, mas tinha de ser prática e decidida.

O tempo foi passando: dias, semanas, meses… e Nilda, um dia, disse a Rosarinha que se sentia muito só, aliás como sempre se tinha sentido, mesmo quando o seu Augusto era vivo.

E, com um sorriso meigo e sereno, disse que ia a um baile na tarde do domingo seguinte.


terça-feira, 9 de julho de 2024

Mas, sem jeito nem paciência, nada feito!


Rosarinha abriu o portão alto e entrou em casa. Estava triste. Queria ajudar o afilhado, mas estava a ver que não conseguia. O Nequita era bom rapaz, mas não estava fadado para ser padre, ia concluindo. Para tal, faltava-lhe espiritualidade e, sobretudo, convicção e empatia. Poderia ser até violência querer fazê-lo seguir um rumo para o qual não tinha nascido.

A ideia da cruz  ao peito, do missal e de se apresentar com indumentária à beato do início do século XX não resultava e tornava-o uma figura caricata. Era o que Rosarinha menos queria e culpava-se a si própria por ter corroborado nesta situação. Custava-lhe dizer que não a quem quer que fosse e muito menos ao padre.

Só a ela própria menos vezes dizia sim, incluindo sobre a sua saúde. Quando ia ao médico, de longe a longe, trazia sempre vários exames que não fazia. Ia adiando até que ficavam esquecidos no envelope que usava para o efeito. Até que um dia ficou doente, muito doente, doença que podia ter sido evitada se tivesse sido vista por um médico mais cedo. Nessa altura, sentiu que era até leviandade e desrespeito por si própria.

Sempre tinha ajudado mais do que tinha sido ajudada, dizia para si própria como revolta ou desabafo. E sofreu bastante com a incerteza do presente e do futuro. Apesar de ser tão religiosa, não concordava com promessas. Parecia-lhe um negócio de toma lá dá cá, ou melhor, dá cá e depois toma lá.

Porém, durante a doença, deu consigo a fazer uma promessa. Se recuperasse a saúde, tentaria viver uma vida ainda mais equilibrada com ela e com os outros. Tentaria ajudar quem precisasse, sem se pôr em segundo plano,  como sempre tinha acontecido.

Neste patamar, entrou o Nequita, em quem o padre depositava confiança, porque gostava de rezar e de ir à igreja, muito mais do que os jovens da sua idade. Como era afilhado da Rosarinha, e viviam muito próximos, o caminho até à vida religiosa seria mais fácil. Rosarinha confiou no projeto que englobava Nequita. Depositava nele a confiança que tantas vezes inculcava pela imaginação.

No entanto, via agora que era quase impossível transformar aquele jovem num ser religioso, amado, confiável e ouvido.

Já na cozinha, começou a fazer o jantar. Aproveitaria o diálogo à mesa para o orientar e aconselhar. De repente, a campainha começou a tocar em desespero.


segunda-feira, 8 de julho de 2024

Rosarinha ficou a olhar para eles


 - Não contava com os dois aqui a conversar a esta hora. Como vai, sr Augusto?

- Como Deus manda e que nem sempre é como a gente quer. E a dona Rosarinha, como está?

- Estou bem, graças a Deus, e hoje tive a alegria de saber que o meu afilhado, se continuar a fazer boas obras, em breve entra no Seminário.

- Ó madrinha, era disso que estávamos a conversar.

- Como assim? Estavas a dar a boa noticia ao Sr Augusto?

- Não, estava a dizer-lhe que tem de ser melhor pai e melhor marido.

- Desculpe, Sr Augusto, o meu afilhado é muito direto. Tem um grande coração e às vezes mora-lhe muito perto da boca.

- O madrinha, então não fiquei de dizer o que disse ao dr Esticadinho?

- Ele tem nome de batismo, Nequita, não te esqueças e, como já temos falado, às vezes temos de dar tempo ao tempo porque ninguém é dono da verdade.

- Ó dona Rosarinha, peço imensa desculpa, dou os parabéns ao Nequita pelo sucesso, que, deixe-me dizer-lhe e com a sua licença, ele só consegue com a sua ajuda, porque a inteligência dele não me parece grande coisa, mas estou cansado e está a fazer-se tarde.

- Graças a Deus, Sr Augusto, o Nequita tem feito muito esforço e muitos progressos, mas compreendo o seu cansaço e irritação. Vá então para casa e peço-lhe desculpa por esta situação inesperada. Se, entretanto, precisar de alguma coisa, ou a sra Nilda, não hesitem e batam-me à porta.

- Muito obrigado, dona Rosarinha, eu sei que a senhora gosta de ajudar.

- Faz-se o que se pode, Sr Augusto, e nem sempre é perfeito. Uma boa noite para toda a família.

Uma boa noite, dona Rosarinha.


- Nequita, queres jantar comigo hoje?

- Claro que sim, madrinha. Está chateada comigo?

- Não, Nequita, não estou, mas tens de saber esperar pelo momento certo, se queres mudar alguma coisa na vida das pessoas.

 - Afinal, madrinha, é  mais difícil seguir a vida religiosa do que eu pensava.

- Nequita, não sejas precipitado e pensa no mundo melhor que, com a ajuda de Deus,  vais construir. Mas, sem jeito nem paciência, nada feito.


domingo, 7 de julho de 2024

O que é que o Nequita me quererá dizer?


Quando o dr Esticadinho saiu da camioneta, deu logo de caras com o Nequita,  bem visível ao longe, com os botões da camisa apertados até ao pescoço, cabelo  com brilhantina e risca vincada, calças pretas, uma grande cruz ao peito e um missal preso na mão que fechava para dentro junto ao coração. 

- Então, Nequita, o que se passa?

- Preciso de falar consigo, mas sem ninguém à nossa volta.

- Isso aqui é mais complicado, mas diz lá, rapaz.

Nequita, olhando-lhe a nódoa da camisa, perguntou:

- O que lhe aconteceu? Foi comer alguma francesinha e descuidou-se? 

- Nada disso, mas diz lá o que precisas porque tenho mais que fazer.

- E se fôssemos caminhar um pouco para conversarmos mais à vontade?

- Caminhar? A esta hora e com a camisa neste estado?

- Vamo-nos sentar então aqui no muro e assim ninguém nos ouve.

- Mas é segredo? 

- Tem a ver com coisas do céu, mas também da terra!

- Diz lá, então, enquanto tenho paciência. 

- Hoje ouvi o Sr padre falar de um livro e de famílias desavindas.

- Ó Nequita, deixa-te de palavras difíceis e  de histórias e vai aos finalmentes. 

- Tenho visto que a Sra Nilda anda desanimada e você nunca está em casa e, se está, está a dormir.

- E o que tens com isso? Ando cansado, rapaz, e a dormir também não faço despesa. Mas, vamos lá ver, Nequita, e se tu te metesses na tua vida a ler os teus missais e a passear a tua cruz?

- Você também tem a sua, que eu sei.

- Mas não ando a carregar com ela ao pescoço pra toda a gente ver.

Nequita  parou uns instantes, olhou o chão, voltou a olhar  para o dr Esticadinho e disse:

- Tem de falar mais com a Sra Nilda, dar-lhe mais atenção e também aos seus filhos. 

- O que é que queres dizer  com isso? Só não te chamo nomes nem te deixo a falar sozinho, porque tenho grande consideração pela tua madrinha,  a Rosarinha.

- E que me tem ajudado muito e, por isso, vou seguindo este caminho que me vai iluminando e que sei que é o que ela quer para mim.

- Tiveste sorte. Muito mais sorte do que eu na vida. Pronto, era este o teu sermão? Então, adeus e amanhã continuamos.

- Sei que não lhe vou pôr a vista em cima, a não ser que eu vá ao Porto, à Casa do Sol.

- Ó Nequita, estás muito bem informado. 

- Tudo se sabe e para a Sra Nilda é um desgosto.

- A minha mulher não é para aqui chamada. Se me fizeres outra espera como a de hoje para sermão e missa cantada, pensa bem no que te vou dizer, até o missal vai rebolar pelo chão.

- Vá, vá, então, mudar de camisa e lavar as suas máculas. Seja você a lavá-las porque a sujidade vem de si. E pense no que eu lhe disse.

Nisto, a Rosarinha saiu da mercearia, a que toda a gente chamava venda, e ficou a olhar para eles.


sábado, 6 de julho de 2024

O prazer fica sempre aquém do desejado, disse ele, já sozinho à mesa

 

O dr Esticadinho, a olhar para a nódoa da camisa, até se esqueceu de que a Maribel o tinha deixado sozinho à mesa. Já a conhecia há uns anos e sabia desse seu  hábito que o irritava e a outros clientes. Ou melhor, amigos do peito, como elas diziam. Quando ela ouvia uma conversa mais divertida entre as colegas, levantava-se logo da cadeira, se o momento não era de sedução,  e lá ia ela saber o que se passava.

No momento, a Lurdes ria-se com aquele seu riso meio fechado e arrastado. Quem não a conhecia ficava na dúvida se era riso ou se era choro.

O que estaria a contar Lurdes? Interrogou-se ele, com a cabeça ora mais esticada, ora mais baixa, fixando e maldizendo a nódoa.

Daí a nada, saiu da mesa e juntou-se ao grupo à volta de Lurdes. Era da maneira que não pensava na malfadada nódoa da camisa. Sempre impecável e aquela nódoa a manchar-lhe a indumentária e a reputação! Raisparta.

E como o bife com as batatas fritas e o ovo a cavalo lhe tinham sabido bem! Um festim. Boa fritura, bom tempero. Este manjar não lhe saía da cabeça há muito tempo. Hoje, finalmente, tinha-lhe escorregado, deliciando tudo até ao estômago. E tinha que vir aquela nódoa tirar-lhe o prazer do momento. Vinha à Casa do Sol para ser feliz e ter prazer e, afinal, até neste ninho de ternura descobria que o prazer fica sempre aquém do desejado!

Levantou-se devagar, arrastou a cadeira consigo e sentou-se bem perto do grupo. E Lurdes foi contando:

- Como a minha avó era muito religiosa, quando eu era adolescente, inscreveu-me uns anos seguidos num campo de férias, orientado por freiras. Havia uma que não tinha paciência para nada e um dia deu um estalo numa miúda do nosso grupo. Ficámos furiosas. Tínhamos de fazer alguma coisa para vingarmos o que se tinha passado.

- E o que fizeram?

- Esperem um bocadinho senão perde a graça.

E continuou:

- Como sempre, ao fim de tarde, fomos com essa freira escrever pensamentos, num caderninho próprio. De repente,  reparámos que, junto de nós, havia  pulgas da areia, sempre a saltar. Mesmo sem nos levantarmos, apanhámos muitas para um saco de papel e, sem a freira reparar, despejámo-lo no saco preto de asas que a freira tinha deixado atrás de si. Quando nos preparávamos para ir embora, ao pegar no saco, a freira deu conta das pulgas que lhe tinham invadido o saco. ‘Ai, meu Deus’ - repetia ela vezes sem conta e aos gritinhos.

- E depois, e depois?

- Quando nos viu todas a rir, mandou-nos rezar o terço, e só nos pudemos levantar depois de terminada a salvé-rainha, apesar de a areia ter ficado gelada.

O dr Esticadinho ouviu a história, sorriu e disse de forma lenta:

- Até nisto o prazer fica aquém do esperado! São horas de eu ir andando. Um vizinho meu, que por acaso também é muito religioso, disse-me que precisava de falar comigo ainda  hoje.  O que é que o Nequita me quererá dizer?


sexta-feira, 5 de julho de 2024

Quando regressava a casa, é que era um sarilho

 

O dr Esticadinho chegou a casa e logo se estendeu na cama, ou melhor, deitou-se depois de ter tirado o fato, que pendurou, meticulosamente, no cabide que era só dele e aí de quem o tirasse daquele lugar. Se tal acontecesse, os berros tremendos até faziam tremer cá fora.

Deitado por cima da cama, em cima da coberta macia e bem esticada, como sempre exigia, o seu corpo estreito e magro lembrava um quase esqueleto com alguns tufos de pelos escuros a sair da pele seca e branca. Perguntou o que era o jantar. Sardinhas fritas com arroz de feijão, respondeu Nilda, já a fazer o estrugido. 

- Os fritos fazem-me azia. Até o cheiro me incomoda.

E foi resmungando que já não bastava o barulho das crianças, a gritaria da rua, o falatório das vizinhas, a loiça esbotenada, não ter mimos como precisava… 

Se Nilda reagia, ele exaltava-se; se ela se calava, ele exaltava-se na mesma.

Nilda sabia onde ele passava quase todas as tardes, depois que veio para casa por invalidez. Nesse dia, ele até rejubilou. Ia ganhar muito pouco, é certo, mas não tinha de aturar o patrão nem os colegas, nem tinha de se levantar tão cedo, nem andar nos transportes públicos em horas de ponta. O dinheiro ia esticando, porque as vizinhas davam roupa para os filhos, ele tinha dois fatos que duravam muito porque tratava muito bem deles. Sobre a roupa de Nilda não sabia nem muito nem pouco, porque não tinha tempo nem vontade para reparar, mas devia estar mais ou menos. Nas poucas saídas a dois, as pessoas olhavam-na de alto a baixo, o que o incomodava e levava a esticar-se ainda mais, porque gostava de ser ele o centro das atenções. 

Para a comida, o dinheiro também ia dar, porque em casa só entrava comida barata. O que valia era o sr Salomão, da família da Rosarinha, que vivia sozinha na casa alta e de pedra. Ele tinha um barco de pesca e, quando a faina corria bem, trazia peixe e distribuía-o pela aldeia. As mulheres vinham com as suas baciinhas e levavam-nas cheias para casa. Tinham peixe para várias refeições. Era pena era ter de ficar dentro do mosqueiro porque o frigorífico era luxo dos ricos. Também os lavradores eram generosos e davam hortaliças dos seus campos, em tempo de fartura.

Mesmo assim, às vezes, andava desconsolado e um dia comprou um bom bife só para ele, sem dizer nada em casa. Levou-o para a Casa do Sol e pediu que o fritassem com batatas e ovo a cavalo. Consolou-se com a companhia e com o pitéu. O pior foi a nódoa de gordura que lhe caiu na camisa, apesar de ter posto um guardanapo bem preso ao pescoço. Raisparta!

O prazer fica sempre aquém do desejado, lamentou, já sozinho à mesa.


quinta-feira, 4 de julho de 2024

Julgo que já falei dela, mas não lhe disse o nome

 

Se, ao domingo, pelas nove da manhã, passar pela paragem da camioneta, sei que vejo Nilda, de seu nome, e nascida  há quase oitenta anos. O cabelo ondulado lembra qualquer atriz dos anos vinte. O fato de saía e casaco, em tons claros, que veste habitualmente quando o dia se prevê de sol, é antigo, tal como a blusa de nylon, com preguinhas no colarinho e botõezinhos doirados. E saltam à vista os brincos compridos, o alfinete e as pulseiras, tudo com preciosas pedras de tão baratas mas bonitas e a condizer.  Ah, e também um relógio de pulso que só usa precisamente ao domingo, dia de ir ao Centro Comercial ter com o grupo em que todos esperam por todos, sempre à mesma mesa.

Enquanto não vem o transporte, quem passa diz bom dia e Nilda responde com palavras risonhas. Quando entra na camioneta, logo reconhece passageiros do domingo. E tudo continua próximo e familiar até ao Porto.

Um dia, uma companheira de assento gabou-lhe a roupa que trazia vestida e ela logo se apressou a dizer que era muito antiga, mas que muito estimava porque cada peça que usava tinha uma história. Nem sempre bonita, acrescentou com um sorriso meigo, ainda que amargo e amarelecido.

A roupa vinha-lhe do tempo em que o marido - o dr Esticadinho, como era conhecido  - estava vivo. Ele era de compleição estreita, comprida e bem esticada, daí a alcunha. 

Fosse inverno ou verão, usava um fato branco, camisa branca e sapatos que limpava com tino e esmero para também não perderem a alvura. Se as nuvens do céu anunciavam chuva, calçava os sapatos com recortes pretos, mas a meia, essa tinha de ser branca como  a cal, não como a do muro do caminho que estava suja, mas como a da parede da habitação bem próxima, a única casa bonita da rua, e a única com portão alto. 

Quando passava junto à casa alta e de pedra, não havia vez nenhuma que não olhasse lá para dentro. Tinha pena de não ser rico, mas só na Casa do Sol, na ruazinha apertada e sombria do Porto, com cheiro a fritos,  se sentia com coragem de o dizer porque as interlocutoras tinham tempo e bom humor.

Quando regressava a casa, é que era um sarilho.

quarta-feira, 3 de julho de 2024

A leviandade às vezes fica bem!

 

Não deve ser bem o significado que vem no dicionário, mas, para mim, na palavra leviano cabe também o sentido de encarar certas coisas mais complicadas de forma mais leve. Para não sofrer, para não interligar com outras mais profundas e dolorosas, e, muitas vezes, para que as outras pessoas com quem se interage não tenham acrescidos motivos de inquietação.

Talvez eu esteja a ser abstrata.

Clarificando: a alguém é comunicado que tem uma doença grave, fica triste, o problema não lhe sai da cabeça, mas, ao falar do assunto, parece menorizar o mal para não se inquietar tanto nem aos outros. Parece leviandade, mas pode fazê-lo pela lei do menor esforço, por alguma generosidade, e, porque não dizê-lo, também para se convencer de que o seu caso poderá ser menos grave do que lhe é apresentado.

E se a leviandade, nestes moldes, ajudar à cura e à redução da preocupação de quem está próximo, pode ter as suas vantagens. Em dose qb, é claro. 


terça-feira, 2 de julho de 2024

Há dias assim

 

Há dias em que acordamos cedo e apetece logo levantar e sentir o cheiro do café  quente e ouvir os pássaros e regar as flores e fazer o que ficou por fazer do dia anterior, quase sem pensar na vida que se abre em tudo que tocamos. Tão natural como a nossa sede.

Há outros dias em que quase nada disto acontece. E parece que o presente estagna por desconhecimento e receio do futuro. E a boca seca ainda que da torneira continue a jorrar água.

Há dias em que apetece organizar tudo porque a vida promete; existem outros dias em que muitas das palavras ouvidas pintam os sorrisos de amarelo.

Há dias em que se ouvem as crianças a falar de borboletas e logo esses seres surgem aos nossos olhos e voam, risonhos, na nossa memória.

Há dias em que as borboletas parecem desaparecer porque não veem flores onde pousar.

Há dias e dias, como há mar e mar. Fique sempre a esperança de a melhores dias voltar.