Nunca tinha olhado a sua varanda de outra semelhante. E disse: “Não tinha reparado que as sardinheiras estão cheias de flor”.
Daí a nada, o Sr. Domingos terminava a função de pôr uma rede segura por cima do canteiro. Deixava-o de modo a ela apanhar os raminhos de salsa, a hortelã, o manjericão, sem que o raio do gato ali voltasse. “Há liberdade a mais, até dos gatos”, disse, seráfico, o Sr. Domingos. “Não é bem assim”, disse ela com ar professoral, acrescentando: “A liberdade nunca é em demasia, o uso que dela fazemos é que pode não ser o melhor”.
O Sr. Domingos sentia agrado e atração por aquele tom didático. E foi oiro sobre azul quando ouviu: “Sente-se um bocadinho. Aceita um chá ou um café?”
“Muito obrigado. Fico de bom grado. Se me dá licença, sento-me aqui em frente à minha varanda. Posso ver o gato. Nem deu pela minha falta… Às vezes não entendo este bicho, apesar de me ter entrado em casa há mais de dez anos”.
“Ainda não respondeu”, inquiriu, firme e de sorriso aberto, a vizinha: “Toma um chá ou um café?”
“Se posso escolher, prefiro o café… É um dos meus vícios”.
Ela sorriu e retorquiu ”Não parece ter muitos”.
“A senhora bem sabe que as aparências iludem. Tenho alguns, mas, felizmente, são baratos, de outro modo, não os podia manter”.
“ Estou curiosa. Então?”
“Um deles é sentar-me na varanda e ficar a olhar tudo com vagar. Nem imagina o que descubro. Às vezes, até me esqueço do tempo e de tirar a roupa de noite. Sei que é antiquada, mas não me importo porque ninguém repara em mim”.
“Não será bem assim”, disse a professora com uma leve e prolongada malícia. E acrescentou: “Agora já me posso também dar ao luxo de olhar à minha volta sem a pressa do relógio. Não tenho testes nem trabalhos para corrigir, nem reuniões demoradas.”
“Que bom ter a sua presença por perto e por mais tempo. Já me pode dizer se é preciso arranjar a cobertura dos seus vasos, porque o meu gato é matreiro”.
“Ora deixe lá o bichano. E que outros vícios tem?”
“A senhora não sabe, mas vou todas as tardes ao alfarrabista da Misericórdia e releio o mesmo livro vezes sem conta. Só passo para outro, quando me parece que já descobri quase tudo. Talvez lhe pareça ridículo, mas, em todas as leituras, deparo com um elemento novo e isso dá-me um prazer enorme”.
“E qual é o livro que anda a ler?”
“Alguns contos e novelas de José Régio”.
“Também gosto muito desse autor. Quando passo no jardim da Cordoaria, lembro-me de ‘O vestido cor de fogo’ e parece que vejo personagens a passear”.
“A Cordoaria é um belo sítio bafejado pela velha araucária.”
“E não se cansa de retomar vezes sem conta as mesmas histórias?”
“Não, minha senhora, é um prazer até. Penso assim: muito mais tempo deve ter gasto o escritor a pensar e a escrevê-las. Bem merece então as tardes que lhe dedico.”
“Vejo que é paciente, o que é raro”.
“Tenho alguma paciência, mas veja a senhora se não é de a ter: o meu nome é Domingos, sempre vivi nesta rua ao Largo de S. Domingos e vem ter comigo um conto com o título “Davam grandes passeios aos domingos”.
“Tem uma certa graça, de facto. Até as palavras podem ter encontros e desencontros”.
“Amanhã, como é domingo, dá-me o prazer que lhe retribua este café no Café do Olival?
(Parte 2 de talvez 3)