Lurdes Castro |
Indiferente ao que acontecia à sua volta, a mãe de Natércia passava horas infinitas e silenciosas a tratar das plantas e o pai, nas arrastadas tardes, a ver filmes do canal Hollywood. Às vezes, era um velho que sonhava com histórias de amor; outras, o menino triste da lágrima.
O Natal aproximava-se. Como sempre, a ceia seria na cozinha só para os três. Na sala, ficariam as travessas com as rabanadas, o leite-creme e a aletria. Enquanto durassem as iguarias, a janela não se abriria para não entrarem moscas nem olhares curiosos.
Até à véspera de Natal, tudo correu como de costume, incluindo o bacalhau a fumegar na travessa cavalinho, por entre as batatas e as couves. A sobremesa iria para a mesa nos pratinhos de porcelana, que já vinham do casamento de Maria e José.
Cearam quase em silêncio, ou melhor, a ouvir músicas natalícias pela rádio, porque as notícias da televisão não davam tréguas às desgraças.
Durante a refeição, Natércia ainda falou dos Natais da infância, em que punha o sapatinho perto do fogão para recolher as prendas trazidas pelo Menino Jesus, mas calou-se pouco depois.
A mãe sorriu apenas quando ouviu falar do Menino Jesus e o pai murmurou, com ar ainda mais cansado do que era habitual, enquanto tomava os medicamentos para o fraco coração:
- Outros tempos!
Se não fosse tão contida, Natércia diria que, em vez de um presente natalício no sapato, preferia carinhos, dias mais alegres, boas expectativas para o seu futuro... (E como tal ausência lhe dificultou também a vida no casamento! - pensou).
Nessa noite, recolheram-se cedo, como sempre acontecia no inverno.
De madrugada, o pai de Natércia levantou-se a custo e veio deixar, na mesa da cozinha, um envelope com uma carta que havia escrito dias antes. Depois, voltou a deitar-se, cada vez com mais dificuldade em andar e em respirar.
Natércia levantou-se cedo. Queria preparar o farrapo velho, para não sobrecarregar a mãe, cuja idade ia pesando.
Vendo o envelope, logo o abriu, lendo vorazmente o que estava escrito:
Continua