terça-feira, 13 de junho de 2017

"O Lago Perfeito"


Um lago é a marca mais bela e expressiva de uma paisagem.
É o olho da Terra, no qual podemos medir a profundidade da nossa própria natureza.
Henry David Thoreau
Quando a nossa carrinha saiu da Autoestrada 71 e começou a percorrer, de forma barulhenta, mais um carreiro de gravilha, o meu pai perguntou, enquanto desfazia uma curva e atravessava outra nuvem de pó:
— Lembras-te de quando, em 45, tivemos aquela tempestade enorme?
— Isso é que foi uma maravilha! — exclamou o tio Bob, alheio à saraivada de pedras que bombardeavam o carro.
Íamos a caminho do lago “perfeito” do meu pai e eu já aturava este tipo de recordações há quase trinta minutos. O meu pai tinha telefonado na semana anterior, pedindo-me que viesse ver o tio Bob e um lago recém-descoberto.
“Aposto que fica no meio do nada”, pensei.
Durante a minha adolescência, quase não tive contacto com o meu pai. Ele fazia as coisas dele e eu as minhas. Nem ele me dizia o que fazer nem eu lhe pedia opinião. De vez em quando, pedia-me para ir pescar ou escalar com ele, convite que eu sempre recusava, com o pretexto de que tinha de jogar ténis ou fazer coisas mais interessantes.
Contudo, à exceção destes convites, o meu pai não dava sinais de se interessar por mim. Quando hoje recordo aqueles tempos, penso no meu pai como uma pessoa reservada de mais, como um homem um pouco fraco. Nunca gritava, nunca discutia. Dizia o que pensava e deixava que os outros decidissem por eles. Depois de ele fazer setenta anos, achei que era altura de o conhecer um pouco melhor.
Daí eu estar dentro desta carrinha aos solavancos, a atravessar uma estrada deserta do Minnesota, rodeada de silos, campos de milho e nuvens de poeira. Quando o meu pai voltou ao seu “conto-te como foi”, desisti de seguir o que dizia. Deitei a cabeça no encosto do assento e deixei a mente vaguear até ao meu apartamento. Vi uma pilha de correio por abrir na mesa de café de mármore, resmas de artigos de pesquisa por ler junto da minha cama de ferro, e mensagens de correio eletrónico a multiplicarem-se no meu computador, mesmo à espera de me engolirem quando clicasse no rato.
“Não tenho tempo para uma viagem à Terra Sem Lugar”, pensei. “Com três trabalhos para entregar na próxima semana e uma entrevista com o meu editor para preparar, esta carrinha é o último lugar onde eu devia estar. E o que posso realmente ficar a saber sobre o meu pai? Continua o mesmo de sempre — tranquilo, paciente, simples. Posso visitá-lo quando quiser.”
O encontro da carrinha com uma lomba trouxe-me de volta à realidade e decidi voltar para casa no dia seguinte. “Preciso de regressar ao mundo real”, pensei. “Tenho coisas mais importantes para fazer.”
De repente, o meu pai travou a fundo e avistei a cauda branca de um veado a desaparecer num daqueles intermináveis campos de milho.
— Meu Deus! — exclamei, sentando-me direita.
— Era bonito, não era? — perguntou o meu pai, soltando o travão e entrando, de forma cuidadosa, na alameda arborizada de uma quinta.
Depois disse, enquanto se dirigia para o celeiro:
— Lá está ele. Não é uma beleza?
Por entre um oceano de erva que nos dava pela cintura, conseguíamos vislumbrar um caminho que conduzia a uma pequena enseada.
“O meu pai vai enfiar a carrinha naquele buraco”, pensei.
O cascalho soltou um último estertor quando parámos. O tio Bob saiu para depositar uma caução de dois dólares na lata ferrugenta colada com fita adesiva na porta velha e descolorada do celeiro. Caminhámos pelo trilho quase invisível em direção ao lago, onde dois enormes cavalos pretos e suados estavam amarrados com cordas a uma árvore. Abanaram as caudas e resfolgaram um espumoso “olá” quando roçámos neles a caminho daquela doca improvisada.
O tio Bob e eu esperámos naquele mar de relva que o meu pai lançasse o barco à água.
O barco entrou na água, criando uma ondulação à sua volta. Quando já estávamos todos a bordo, o meu pai pôs o motor a funcionar. Deslizámos até meio do lago. Acabei por me encostar para trás e apoiar os cotovelos nos lados, respirando fundo. Enquanto o sol aquecia a minha face pálida e a brisa levantava o cabelo húmido do meu pescoço, o lago começou a operar a sua magia. Com a cabeça para trás, olhei para o céu. Algures entre mim e o sol incandescente, uma águia pairava, lançando de quando em vez uma sombra sobre a minha cara. O ronronar do motor e o rumorejar dos choupos começaram a esbater a imagem mental das importantes tarefas que me aguardavam na cidade.
Vi o meu pai e o tio Bob junto da caixa de ferramentas. Mãos marcadas pelo tempo davam nós sem esforço e montavam linhas de isco. Embora vivessem a quilómetros de distância e só se juntassem de dez em dez anos, continuavam a tagarelar como miúdos de escola.
Voltei-me de novo, mas continuei a prestar atenção à conversa.
— Tenho muito orgulho nela. Era tão independente em miúda. Nunca me queria muito por perto. Boa atleta, música de talento, uma ótima aluna. Ainda guardo os recortes do jornal.
Calou-se enquanto colocava outra minhoca no anzol.
— E agora é uma bela mulher e uma escritora cheia de talento. Continua muito independente. Fiquei admirado quando me disse que vinha. Sabias que tem livros publicados?
— Nem me digas — exclamou o tio Bob.
— É verdade. Escreveu umas histórias para uma revista. E também textos técnicos. Tenho cópias lá em casa.
Nem podia acreditar. “Meu Deus”, pensei. “Afinal, ele interessa-se pelo que faço. Sempre se interessou. Juntou os pedaços da minha vida em bocadinhos de papel. Porque não me disse? Porque não tinha pedido para o incluir?” Soergui-me, abalada pela minha descoberta súbita. Diante dos meus olhos, o meu querido, velho e desinteressado pai
adquiriu uma importância que nunca lhe dera. Ele sempre se interessara pela minha vida e continuava a querer fazer parte dela. Mas, reservado como era, esperava que eu o convidasse. Nesse momento, vi, pela primeira vez, que o meu pai não era fraco. A força dele era tranquila e imensa. Era uma força que não forçava nada. Nada interrompia e em nada interferia. Era paciente e esperava que eu acabasse por me aproximar dele.
De repente, naquele paraíso que me rodeava, vi o homem que era meu pai. “Como podemos ser tão diferentes?”, admirei-me. “De onde lhe vem esta vontade interior e por que razão não a tenho eu?”
Os homens continuaram a conversar enquanto eu me recostava no assento e tentava reorganizar as minhas recordações. A conversa foi, em breve, abafada pelo zumbido do motor. Quando me voltei de novo para eles, fitavam a floresta e uma raposa vermelha que fugia por uma encosta íngreme acima e desaparecia dentro de uma toca. Os olhos azuis e claros do meu pai brilhavam com uma alegria que nunca lhe vira no rosto.
“É esta a fonte da sua força e da sua paciência. A natureza, a vida ao ar livre, este lugar. Sempre o quis partilhar comigo, mas eu nunca estava preparada.”
Ao virar o olhar para mim, a sua face refletia múltiplas camadas de tempo e demasiados invernos passados no Minnesota. Suspirou fundo e disse:
— Fico contente por teres vindo. Isto só é perfeito quando estás aqui.
— Eu também estou contente — sussurrei, enquanto um sorriso se formava nos meus lábios, vindo do fundo do meu coração.
Então, a mão forte e áspera do meu pai pegou na minha e olhámos juntos para a água. O meu pai dera-me o seu lago “perfeito”. Nesta viagem, o meu pai mostrara-me a sua força e o seu mundo, que eu quase não conseguia ver devido às lágrimas que me corriam pela face.



Linda Armstrong
Jack Canfield; Mark Victor Hansen, Steve Zikman
Chicken soup for the nature lover’s soul
Florida, HCI, 2004
(Tradução e adaptação)
 clubecontadores@gmail.com