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DOMINGOS
MIRA FLOR
Eu já tinha chegado a
esta conclusão: as varandas do Porto são mais visíveis ao domingo de manhã. Parece
absurdo, mas, se não acredita, experimente passar nas ruas Mouzinho da Silveira,
das Flores e outras do Porto antigo, fora da azáfama da semana. As varandas, de
recorte simples, puxam e demoram os olhares.
Ora, numa manhã de
tempo e espaço desanuviados, vi, numa velha varanda, um homem sentado. Nada de
estranho, dirá o leitor, não fosse aquele estar de camisa de noite até aos pés.
Junto dele, erguia-se um vaso de begónias vermelhas e, quase debaixo delas,
dormia um gato farfalhudo, de sono interrompido por suspirados sobressaltos.
Não pude deixar de
olhar, porque muitas varandas estavam nuas de plantas.
Há setenta anos e cinco
meses que o Sr. Domingos era habitante desta casa da rua que se abria ao Largo
de S. Domingos. Da sua varanda, ele conseguia ver o rio, os quintais interiores
de casas vizinhas, a ponte D. Luís, os anúncios ao vinho do Porto - brindando a
todos os momentos e prazeres - do outro lado, como ele dizia quando se referia
ao Cais de Gaia.
O Sr. Domingos vivia
só, tendo a companhia do gato e da paisagem. Tudo era encantamento, apesar de
ser costumeira e diária a visão.
Conhecia as outras
varandas vizinhas. Lamentava as que iam ficando vazias: murchas ou mirradinhas,
as plantas sinalizavam o abandono e solidão.
Quando via alguém na
varanda, o Sr. Domingos fazia uma saudação, mas, muitas vezes, disfarçava e
desviava o olhar, porque se lembrava do que a mãe lhe dizia, na sua voz austera
e bem pronunciada: “Devemos ser discretos, carago!”. Achava que a palavra carago
não combinava muito bem com a maternal discrição, em cujo berço fora educado,
mas não contrariava a mãezinha.
Ora, quase em frente,
vivia uma professora há muito ano. Assim dito, o tempo recuava pausado e singular.
Nunca tinha falado com ela.
Um dia, decidiu interpelá-la,
pedindo-lhe desculpa pelo arrojo do seu gato. “Desculpe, não sei se a senhora já
reparou, o meu gato foi dormir no seu canteiro das aromáticas. Eu bem o chamei…”.
Que sim, que já tinha
reparado, mas que os gatos têm pouco pensar ou até nenhum, e que não se inquietasse.
Claro que era de se preocupar
e o melhor seria pôr um resguardo no canteiro: “Se a senhora quiser, eu posso
ir aí à tardinha tratar disso, pois o raio do gato é que fez os estragos. Já o
castiguei, mas foge-me e não posso ir atrás dele, como poderá compreender,
embora gostasse…”.
A vizinha,
recém-reformada, aceitou e, nessa mesma tarde, à hora marcada, o Sr. Domingos
fez-lhe sinal da sua varanda. Como era dia de semana e passava muita gente na
rua, se falasse alto, todos ficariam a saber do seu intento e do recheio da sua
vida, assim como de uma das sete do seu gato. De facto, para o governo da sua
existência só ele era o eleito.
Vestiu umas calças com
vinco, um polo azul, um blusão pardacento, dado pela mãe num Natal; viu-se ao
espelho, endireitou a risca do cabelo, ainda com alguma pujança, com um pentezinho
antigo; reparou que os sapatos estavam demasiado gastos e mudou as meias brancas
porque tinham um fio puxado. Pegou na caixa da ferramenta e nuns pedaços de
rede que ia guardando e atravessou a rua.
Logo que o viu, a professora
reformada disse-lhe, roliça e canora: “Pode entrar, não faça cerimónia”. Ele
respondeu “Com certeza, minha senhora” e lá foi subindo, dirigindo-se à
varanda, não fossem outros passos serem mal entendidos. Já lhe bastava a
ousadia do gato.
Nunca tinha olhado a sua varanda de outra
semelhante. E disse: “Não tinha reparado que as sardinheiras estão cheias de flor”.
Daí a nada, o Sr.
Domingos terminava a função de pôr uma rede segura por cima do canteiro.
Deixava-o de modo a ela apanhar os raminhos de salsa, a hortelã, o manjericão,
sem que o raio do gato ali voltasse. “Há liberdade a mais, até dos gatos”,
disse, seráfico, o Sr. Domingos. “Não é bem assim”, disse ela com ar professoral,
acrescentando: “A liberdade nunca é em demasia, o uso que dela fazemos é que
pode não ser o melhor”.
O Sr. Domingos sentia
agrado e atração por aquele tom didático. E foi oiro sobre azul quando ouviu: “Sente-se
um bocadinho. Aceita um chá ou um café?”
“Muito obrigado. Fico
de bom grado. Se me dá licença, sento-me aqui em frente à minha varanda. Posso
ver o gato. Nem deu pela minha falta… Às vezes não entendo este bicho, apesar
de me ter entrado em casa há mais de dez anos”.
“Ainda não respondeu”,
inquiriu, firme e de sorriso aberto, a vizinha: “Toma um chá ou um café?”
“Se posso escolher,
prefiro o café… É um dos meus vícios”.
Ela sorriu e retorquiu
”Não parece ter muitos”.
“A senhora bem sabe que
as aparências iludem. Tenho alguns, mas, felizmente, são baratos, de outro modo,
não os podia manter”.
“ Estou curiosa.
Então?”
“Um deles é sentar-me
na varanda e ficar a olhar tudo com vagar. Nem imagina o que descubro. Às vezes,
até me esqueço do tempo e de tirar a roupa de noite. Sei que é antiquada, mas
não me importo porque ninguém repara em mim”.
“Não será bem assim”, disse
a professora com uma leve e prolongada malícia. E acrescentou: “Agora já me
posso também dar ao luxo de olhar à minha volta sem a pressa do relógio. Não
tenho testes nem trabalhos para corrigir, nem reuniões demoradas.”
“Que bom ter a sua
presença por perto e por mais tempo. Já me pode dizer se é preciso arranjar a
cobertura dos seus vasos, porque o meu gato é matreiro”.
“Ora deixe lá o
bichano. E que outros vícios tem?”
“A senhora não sabe,
mas vou todas as tardes ao alfarrabista da Misericórdia e releio o mesmo livro
vezes sem conta. Só passo para outro, quando me parece que já descobri quase
tudo. Talvez lhe pareça ridículo, mas, em todas as leituras, deparo com um
elemento novo e isso dá-me um prazer enorme”.
“E qual é o livro que
anda a ler?”
“Alguns contos e novelas de José Régio”.
“Também gosto muito desse autor. Quando passo
no jardim da Cordoaria, lembro-me de ‘O vestido cor de fogo’ e parece que vejo
personagens a passear”.
“A Cordoaria é um belo
sítio bafejado pela velha araucária.”
“E não se cansa de
retomar vezes sem conta as mesmas histórias?”
“Não, minha senhora, é
um prazer até. Penso assim: muito mais tempo deve ter gasto o escritor a pensar
e a escrevê-las. Bem merece então as tardes que lhe dedico.”
“Vejo que é paciente, o
que é raro”.
“Tenho alguma paciência,
mas veja a senhora se não é de a ter: o meu nome é Domingos, sempre vivi nesta
rua ao Largo de S. Domingos e vem ter comigo um conto com o título “Davam
grandes passeios aos domingos”.
“Tem uma certa graça,
de facto. Até as palavras podem ter encontros e desencontros”.
“Amanhã, como é
domingo, dá-me o prazer que lhe retribua este café no Café do Olival?
“Sim, podemos passear depois
na Cordoaria, ir à praça Carlos Alberto e a Cedofeita”.
“Fico feliz por aceitar
o meu convite. Obrigado pelo café”.
E já do lado de cá da sua varanda, Domingos recordava
a doçura do diálogo a que quase se desabituara. Revia os braços redondos da
vizinha, as ancas largas, o cabelo farto com vestígios de caracóis de menina,
embora já grisalhos. E os olhos dela que sorriam quando a boca se comprazia com
o que ouvia ou com uma curta peripécia contada. Ela lembrava-lhe quadros de
Botero, de quem tinha visto uma exposição em Bilbao, num domingo chuvoso e
meditativo.
A curta visita
havia-lhe trazido uma serena e clara alegria. Como seria se tratasse a vizinha
por tu? Que encantos profundos poderia com ela partilhar? A sua vida
parecia-lhe até então um canteiro de salsa pisada pelos gatos; viçoso ficava agora
pela proximidade de uma mulher cujo nome apenas soubera nesse dia: Mira Flor.
Estranho nome para flor que nem ousara mirar. Cobiçou secretamente a astúcia do
seu gato. E lembrou-se do semicerrar de olhos quando as costas da sua mão
esquerda tocaram na macia mão direita, enquanto ela tirava a chávena do
tabuleiro. A curta travessia da rua parecia-lhe a concretização de uma linha do
horizonte que não pensara transpor.
Os passeios de Domingos
e Flor passaram a ser frequentes. Voltavam, por vezes, aos mesmos lugares. Como
Domingos fazia com os livros que amava de paixão.
E, algum tempo depois,
quem passasse pela varanda de Domingos veria dois pijamas novos a secar e uns pares
de meias escuras. Junto das viçosas begónias, o gato dormia. Era vê-lo bem
descansado!
Às vezes, a porta de
uma das varandas fechava-se – estendendo-se a paisagem interior à viva e
penetrada intimidade. Nem o gato tinha permissão de entrar.
E mais não ouso dizer. Também
a minha mãe me ensinou a ser discreta, carago!