sexta-feira, 23 de maio de 2014

A escolha dos nomes

          Uma chamava-se Generosa, outra era Formosa e a mais nova tinha o nome de Mimosa. O pai das meninas – era sobretudo ele quem escolhia o nome dos/das descendentes – esteve para optar pelo de personagens de epopeias. E até já os tinha escrito num caderninho, onde registava recados para memória futura, com letra muito miudinha. Se tivesse filhos, o primeiro seria Ulisses; se fosse menina, chamar-se-ia Penélope. E não era só por ter lido a Odisseia de Homero, mas a ideia sempre lhe surgia quando via a mãe a tecer um interminável entremeio de renda, enquanto o pai estava em África.
Mas não, os padrinhos não concordaram que a primeira menina se chamasse Penélope, sobretudo a madrinha que disse até: “Pronto, tudo bem, a menina não se chama Procópia como eu, mas, então, tem de se chamar Generosa porque é o que sou ao aceitar que a minha graça morra comigo em vez de perdurar". E assim ficou o nome Generosa, pronunciado bem alto pela robusta madrinha junto da pia do batismo.
A segunda, até nascer, não tinha nome. Na tarde em que a menina viu a luz do dia, a médica obstetra pegou nela, voltou-a para a claridade da janela e exclamou: “Que formosa que ela é”. Pronto, estava encontrado o nome: Formosa e muito formosa cresceu.
O pai, que era amante de poesia com rimas, antes do nascimento da terceira filha foi pensando no nome que não destoasse do das irmãs. Como tinha de rimar, pensou em Rosa, mas era muito curto e, confrontado com o das manas, podia parecer demasiado breve e gerador de conflitos ou ciúmes.
Na Maternidade, logo que a menina nasceu, o pai foi com as duas filhas – Generosa e Formosa – visitá-la e à mãe que já não sabia o que fazer porque o bebé chorava, chorava com a boquinha muito aberta e as maçãzinhas do rosto muito vermelhas. As meninas estavam muito caladas, sem saberem o que fazer ou dizer. Foi então que Generosa se aproximou da irmã e esfregou o dedinho indicador no polegar, o que sempre fazia antes de tocar na pele macia e delicada de um bebé. Disse-lhe a mãe: “Podes fazer festas à maninha, querida. Pode ser que deixe até de chorar tanto”. E a pequena Generosa assim fez. Não sei se por cansaço ou pelo carinho acrescido, a recém-nascida sossegou. E foi então que Formosa, que gostava de imitar as palavras da mãe, exclamou: “Que mimosa!”. E logo o pai disse: “Encontrei o nome!” E, assim, Mimosa  ficou..
No regresso a casa, o pai, contente, foi com as meninas visitar uma exposição de pintura de Amadeu (Souza Cardoso) e entraram, para lanchar, no café Orfeu. 

E que mais posso dizer eu?
Apenas que as meninas cresceram generosas, formosas e mimosas. 
Todos os professores diziam que eram atentas, simpáticas e gostavam de aprender. Porém, as três manifestavam uma reação estranha: recusavam-se a decorar rimas e esquemas rimáticos!!!

terça-feira, 20 de maio de 2014

Rosas (ainda) sem chuva



 



Permanência do Objeto


À Dolores

A janela abria sobre o mar
o azul marulhava na sala
encapelado de luz branca
espraiava-se levemente
no jarrão com girassóis
que amarelavam o chão e
os pequeninos miosótis
no papel de parede…

na cadeira de vime
o menino brincava no colo
imenso
do pai
estendia os bracinhos
roliços
rolantes no rosto no pescoço
do pai

e o pai brincava com o menino
no colo
escondia a chupeta
no bolso da camisa
envolvendo-a
na brancura do lenço
e o menino
órfão da chupeta
chorava
então o pai retirava o lenço
como se mágico fosse
e do bolso
saltava a chupeta
como coelho liberto
da cartola

e o menino ria
dobrando o riso
(talvez mesmo quadruplicando)
à ressuscitada chupeta…
e o pai e o menino
brincavam

tanta vez a chupeta
desapareceu e reapareceu
que o menino percebeu:
o lenço era apenas
cortina que
afastada
oferecia aos olhos
o que sempre lá era…

depois o menino cresceu
e saltou do colo
pequeno
do pai
para o colo enorme da vida
onde havia outras chupetas
a descobrir…

até que veio
arrebatador
fora do tempo
o  bicho-papão
o colo de uma negra-noite
onde o pai
desapareceu

uma noite sem cortina
para afastar…

porém
o homem-ainda-menino
sabia que o pai era ali
no oculto colo da negra-noite negra
e aquilo era apenas um novo jogo
que ele só poderia jogar
quando essa mesma noite
o levasse
para brincar… 
                          IA, maio 2014

Obrigada, IAzinha. Os (teus) poemas são
colo onde as palavras aconchegam e 
sorriem. Haverá uma 
mulher-eternamente-menina
tomando-os, leve,  "para brincar".
Um beijinho
M.