De repente, passou uma pequena nuvem de tristeza sobre os olhos de
Francisca. A avó Josefa partira há dois anos para um sítio de onde ninguém
costuma mandar notícias. Antes da partida ainda sofreu muito, e tão depressa a
queria junto de si, para sentir o calor do seu carinho, como a queria longe,
para não se aperceber dos rostos que o sofrimento pode ter.
Francisca ainda era pequena mas nunca mais esqueceu a dor daquela
perda. Foi como se o mundo, naquele dia, tivesse decidido mostrar-lhe o seu
lado negro e atemorizador, como se o sol se tivesse zangado com a claridade dos
dias e como se até as lágrimas se recusassem a sair para não verem como dói ser
infeliz.
Era dezembro e, lá em casa, nesse ano, ninguém quis festejar o Natal,
porque não havia vontade de dar nem de receber presentes e porque todas as
conversas se encaminhavam no mesmo sentido, que era o da tristeza e do
desconsolo.
Antes de partir, a avó Josefa dissera a Francisca:
— Uma noite, quando já estiver habituada à minha nova morada, hei de
dar-te sinal para que saibas que estou bem e que penso em ti.
Francisca lembrou-se sempre dessas palavras e encontrou, nos poemas
que lia nos livros da escola, palavras mágicas e belas que eram iguais às que a
avó Josefa usava quando queria mostrar-lhe que, por vezes, a beleza de uma
coisa pode estar na forma que usamos para a nomear.
— Pode dizer-se de uma coisa — explicava a avó Josefa — somente aquilo
que os olhos veem. Mas também se pode acrescentar qualquer coisa que a torne
mais bonita e mais agradável de ver. Isso, minha filha, chama-se Poesia.
Quando Francisca lhe pediu para explicar melhor o que queria dizer,
ela deu-lhe alguns exemplos:
— Podemos dizer: “isto é uma árvore”, mas também podemos dizer: “esta
árvore está triste porque tem sede” ou “esta árvore é alta e elegante como uma
girafa num dia de primavera”.
Francisca percebeu sem esforço as palavras da avó Josefa e, a partir
desse dia e desses exemplos, compreendeu que a Poesia havia de ajudá-la a estar
sempre perto da avó, estivesse ela onde estivesse, por maior que fosse a
distância que as separava.
Tinha passado um ano e a família preparava-se para festejar mais um
Natal. Tinham--se distribuído tarefas e cada um dava o melhor que podia e sabia
para realizar bem a que lhe coubera. Uns ajudavam a mãe a pôr a mesa, outros
verificavam se os ornamentos da árvore de Natal estavam todos no lugar certo,
outros ainda colocavam os presentes nos lugares certos para poderem ser
localizados na hora de serem distribuídos, quando fosse meia-noite.
Francisca também cumpriu as suas tarefas, que não eram nem mais fáceis
nem mais difíceis que as dos outros, mas nem mesmo estando ocupada conseguia
disfarçar a tristeza que as saudades da avó Josefa lhe punham nos gestos e nos
olhos. Todos sabiam qual era a razão dessa tristeza, mas estava assente que,
naquela noite, ninguém falaria no assunto. A avó Josefa, que não tinha rival na
forma de organizar a festa de Natal, seria lembrada por todos em silêncio, pois
as palavras mais belas tinham viajado com ela para muito longe.
Quando se ouviram, na torre da igreja, as doze badaladas da
meia-noite, Francisca sentiu que uma lágrima lhe escorria pela face como se
fosse uma pérola de um tesouro antigo e secreto. Foi então que um dos irmãos, o
Afonso, lhe disse, tentando animá-la e distraí-la:
— Francisca, há uma estrelinha no céu, lá muito alto, que parece estar
a chamar por ti.
Francisca correu para a janela, limpou a lágrima, olhou para a estrela
e conseguiu ver no seu brilho intenso o rosto da avó Josefa sorrindo para ela
como nos tempos em que lhe contava histórias estranhas e belas para a convencer
a comer a sopa.
Quando chegou o momento de se distribuírem os presentes, coube a
Francisca, para além de muitas coisas que lhe deram grande satisfação, um belo
livro de poemas sobre árvores, rios e animais, ilustrado com muita imaginação e
cores muito vivas.
— Quem foi que me deu este livro? — quis saber Francisca. Mas ninguém
lhe respondeu.
— Vá, digam lá, quem foi que me deu este livro tão bonito? — insistiu
ela, mas continuou a não obter resposta.
Então Francisca pegou no livro, foi para junto da janela e recitou
baixinho o mais belo poema que encontrou, como se estivesse a conversar com a
avó. Ninguém comentou o seu gesto ou o achou estranho. Lá fora, a pequena
estrela brilhava ainda com maior intensidade, como se quisesse encher de luz,
de uma luz cintilante e rara, aquela festa de Natal.
E quando Pedro, o irmão mais novo de Francisca, na manhã seguinte lhe
perguntou do que mais tinha gostado na festa de Natal, ela respondeu de uma
forma breve e simples:
— Do que eu mais gostei foi da Poesia.
— E o que é a Poesia? — perguntou Pedro.
— É uma estrelinha perdida na noite a querer dizer-nos que está sempre
alguém connosco quando nos sentimos tristes e temos saudades de quem já partiu.
Também Pedro nunca mais se esqueceu de como pode ser bela a palavra
Poesia.
José Jorge Letria
A Árvore das Histórias de Natal
Porto,
Ambar, 2006