Cybele Chaves
Era uma vez uma velha que tinha cinco
gatos. Percorriam-lhe a casa de lés a lés. E por que não? Eram da casa e como
se fossem da família. Entendiam tudo: o bom humor da dona e também os momentos
de má disposição que também aconteciam. Não eram muito frequentes, mas a velha
ralhava-lhes às vezes quase sem razão, porque não o podia fazer com os
políticos nem com os familiares que poucas vezes a visitavam. Se dissesse
alguma palavrita mais azeda, então é que nunca viriam.
A
meio da manhã e ao fim da tarde, arranjava sempre umas horinhas para ler. Às
vezes, dormitava e deixava cair livro das mãos, já enrugadinhas, mas voltava a
abri-lo sem nunca se esquecer da página, porque as palavras lidas eram como se
as ouvisse pronunciadas.
Andava a ler o primeiro volume de Os Gatos de Fialho de Almeida. O último
livro que tinha lido tinha sido Cão como
nós, um livro de contos de Manuel
Alegre. Requisitar livros na Biblioteca Municipal era um dos seus grandes
prazeres.
Depois de tratar dos gatos, saía quase
sempre no início da manhã. Gostava de caminhar um pouco, de ver as pessoas
habituais, de entrar no café e sentir o cheiro do pão com manteiga, de ir ao
mercado para ver as cores dos frutos e hortaliças…
Ah, também gostava de ouvir rádio
enquanto estava em casa. Fazia-lhe lembrar o conto “Sempre é uma companhia” de
Manuel da Fonseca que também já tinha lido.
Até os gatos já se tinham habituado à
música e às palavras através da rádio. A pensão de sobrevivência era baixa, a
reforma também, mas ia dando para pagar a água, a luz, o telefone, os
medicamentos, os legumes, um peixinho de vez em quando.
Um dia, chegou a casa com o saquinho de
compras habitual. Pousou tudo, guardou o que tinha a guardar e preparava-se
para a leitura do fim da manhã. Ligou o rádio e logo ouviu a notícia de que em
cada apartamento só poderia haver quatro gatos.
A velha, que tinha cinco gatos, sempre
se habituara a levar a sério o que ouvia, porque achava que palavra dada devia
ser cumprida. Às vezes, desconfiava e apetecia-lhe não acreditar nem levar a
sério, mas era difícil mudar depois de velha. E não velhinha, como detestava
ouvir de si própria. Só poderia ter quatro gatos? Dos cinco, qual teria de
afastar de casa? Como seria possível se eram como filhos de quem os pais não
são capazes de se separar?!
Até sentiu uma dor no peito quando ouviu
a notícia. Olhou para os bichanos e começou a chorar. Nem conseguia ler nem
concentrar-se. Era doloroso pensar que gato teria de abandonar o seu
apartamento.
Não conseguia escolher. Resolveu até
adiar a decisão, dizendo a si própria que o tempo se encarrega de trazer
soluções.
Ora, no dia seguinte, a velha saiu para
o seu passeio matinal e cruzou-se com outra velha que vivia numa casa grande e
com quintal e era generosa para com os animais, mais até do que com as pessoas.
Pararam, afastaram-se o mais possível da rua, onde passavam carros nervosos e
apressados, e começaram a conversar. Daí a alguns minutos, um dos gatos já
teria para onde ir: para a casa grande e com jardim.
Quando a velha que tinha cinco gatos
chegou a casa, olhou-os e, embora lhe custasse muito, escolheu um: o mais
robusto e brincalhão. Saberia defender-se melhor do que os outros. Tinha ficado
acordado que iria lá visitá-lo de vez em quando.
Passados dias, a velha, trémula, foi
buscar a caixa que utilizava para levar os gatos ao veterinário. Tentou
enganá-lo com biscoitos, mas o bicho não queria entrar e mostrou os dentes
zangados como um pequeno tigre. A velha esteve quase a desistir, mas teve medo
que lhe levassem o gato de casa e assim saberia ao menos onde ele estava.
Quando ouviu a campainha da casa para
onde estava a ser levado, o gato começou a agitar-se e logo a velha abriu a
tampa para o acalmar. De repente, o gato mexeu-se tanto que a caixa caiu e o
bicho desatou a fugir na direção da sua casa de sempre. Como não estava
habituado a andar na rua, perdeu o tino, não encontrando a direção certa e eis
que se ouve uma travagem de um carro, que logo retomou a marcha, deixando atrás
de si o gato… já morto.
A velha gritou, chamou por alguém e
apareceu um homem dizendo que era normal porque todos os dias ali morriam
gatos. Ofereceu-se para o retirar da rua, mas de certeza, afirmava ele com fria
segurança, nada havia a fazer. O melhor era a senhora ir para casa e esquecer o
assunto.
Quando a velha chegou a casa, nem podia
falar. Nem chorar. Sentou-se a olhar em silêncio os quatro gatos que restavam.
Um aninhou-se aos seus pés, outro sentou-se no colo, outro nas pernas e o outro
foi apoiar-se no peitoril da janela, olhando para a rua. Pousado, junto da
janela, estava o livro de Fialho de Almeida, servindo para o gato ficar mais
alto e observar melhor a rua.
Nesse dia, a velha morreu. Os vizinhos
repararam porque deixaram de a ver nas manhãs
seguintes. Os gatos, à janela, pareciam chamar por alguém.
As vizinhas ainda falaram dela durante
uns tempos, parando, respirando fundo e dizendo coitada muitas vezes. Foram elas
que levaram os quatro gatos para a casa grande e com quintal.
Quanto à velha, nada mais havia a
acrescentar: era velha, era pobre e tinha-se cumprido a lei!