quinta-feira, 20 de junho de 2013

O sonho de Mia



Nunca irei esquecer o dia em que pela primeira vez encontrei Mia. A minha camioneta avariou na sua aldeia e imediatamente simpatizámos um com o outro. Eis a sua história.
A aldeia de Mia chama-se Acampamento San Francisco e fica situada entre a grande cidade e as montanhas cobertas de neve. Não é bem uma aldeia, mas é lá que ela vive. Não há belos jardins, nem árvores. Não há estradas a sério, apenas um caminho em terra batida.
O pai de Mia vai todos os dias à cidade vender ferro velho na sua camioneta. Noutros tempos, havia terras cultiváveis, mas a cidade estendeu--se desmesuradamente e hoje só resta aquilo que é deitado fora. As casas são feitas à toa, com toda a espécie de materiais que os habitantes da aldeia recolhem nos locais onde o lixo da cidade é descarregado….
Todas as noites Mia corre ao encontro do pai que, às vezes, vem contente, com algum dinheiro no bolso, mas outras vezes triste, de mãos a abanar. O pai sonha vir a construir uma casa de tijolo…
Uma tarde, no início do outono, o pai de Mia voltou com um sorriso estranho nos lábios. Abriu o blusão e saiu de lá o focinho lindo de um cão! Tinha-o encontrado na cidade, sozinho e abandonado.
Mia beijou logo o focinhito e chamou-lhe Poco, por ser muito pequenino. Mostrava-o a toda a gente e depressa se tornaram inseparáveis. Poco adorava a sua nova família: lambia continuamente as caras de Mia e dos pais… Mia até apresentou Poco a Sancho, o cavalo, e o cãozito seguia Mia para todo o lado, mesmo até à escola. Bem comportado, esperava cá fora que as aulas acabassem.
Mas, naquele inverno, o frio era intenso e um dia Poco desapareceu. Mia procurou-o por todo o lado.
— Acaso viu o meu cão? É pequenino, castanho e com manchas — perguntava ela a todos.
— Olha, vi passar uma matilha naquela direção — disse-lhe um homem, apontando para o lado da lixeira.— Pode ter ido com eles.
Mia saltou para cima do cavalo, e lá foram, ela e Sancho, à lixeira, procurar o cãozinho.
Mas, à medida que o procuravam, iam-se afastando cada vez mais da aldeia. E, quando Mia se apercebeu, já se encontrava no cimo de uma montanha muito alta de onde se podia ver a nuvem negra que se estendia sempre sobre o vale. Mas, acima dessa nuvem, o ar era tão puro que até lhe custava respirar! Tamanha brancura dava-lhe volta à cabeça! Desceu do Sancho e pegou num punhado de neve que provou. E, depois, pôs-se a dar cambalhotas naquele imenso tapete branco.
Sancho olhava para ela e não tardou a imitá-la, rebolando-se na neve e pontapeando o ar com as suas velhas pernas cansadas. A Mia, deitada de costas na neve, com os braços e as pernas esticadas, nunca o céu tinha parecido tão azul e tão próximo…
Chamavam por Poco e procuraram-no até cair a noite. Surgiram então as primeiras estrelas. Mia estava cansada, mas confiava em Sancho: sabia que o cavalo havia de a conduzir a casa, sã e salva. Lá iam calmamente quando, de repente, Sancho parou para cheirar o chão. Mia olhou em redor. Já não havia neve, apenas flores a perder de vista. Colheu um ramo, mas com raízes. Aquelas flores iriam sempre recordar-lhe o dia em que tanto tinha procurado Poco e acabara por encontrar aquele lugar maravilhoso, sob as estrelas.
No dia seguinte, Mia plantou as flores, colocando algumas em latas de conserva. Tratou delas e regou-as todos os dias. As flores desenvolveram-se muito bem, crescendo vigorosas, e alastraram durante o verão. No outono, o vento espalhou as sementes em redor da aldeia, e estas rapidamente se multiplicaram. Na primavera seguinte, as flores tinham invadido toda a
aldeia e coberto as lixeiras de um manto branco, tão branco como a neve das montanhas. Mia estava encantada, mas não esquecera Poco por quem diariamente continuava a chamar.
Numa bela manhã, quando o pai estava de saída para a cidade com uma carga enorme de objetos para vender, Mia pediu-lhe que a deixasse ir também para tentar vender as flores. Tinha-as às dezenas, plantadas em latas de conserva. O pai sorriu, mas deixou que a filha tentasse a sorte.
Mia pousou as flores nos degraus da catedral à beira da ferro velho do pai. E logo surgiram os primeiros clientes, tão numerosos que o pai teve de largar o seu negócio para a vir ajudar.
— Donde são estas flores? — perguntavam as pessoas.
— São as flores do Poco — limitava-se ela a responder.
Dali em diante, Mia passou a vender flores com o pai. Como ele, também ela sonha em vir a ter uma casa de tijolo.
Mas sempre que passava por uma matilha de cães, Mia pensava em Poco. Até ao dia em que um cão parou para vir cheirar as flores. Lambeu-lhe a cara e deitou-se a seus pés.
— Estas são as flores que vêm das estrelas — disse ela baixinho.
Vinha eu de Santiago do Chile e dirigia-me para a cordilheira dos Andes, quando dei com um terreno inculto, um baldio que, na realidade, era uma gigantesca lixeira a céu aberto onde toda a cidade despejava o lixo. Manuel, que lá vive, fez-me ver que, para ele e os demais habitantes da aldeia, aquele terreno lhes permitia recolher objetos que seriam depois reciclados e vendidos….
 
Michael Foreman
Le rêve de Mia
Paris, Éd. Gallimard-Jeunesse, 2007
(Tradução e adaptação)
  


terça-feira, 18 de junho de 2013

Dr MST, are you a clown?



Dr MST, leio, habitualmente, as suas crónicas no Expresso. A minha opinião em nada lhe poderá interessar, mas, mesmo assim, quero dizer-lhe que aprecio as suas crónicas e os seus comentários na televisão. Também li dois dos seus livros: Equador e No teu deserto. Gostei muito.

No que diz respeito aos professores, acho que você (desculpe não dizer DR, mas você utiliza muito esta forma de tratamento e se a usa é porque está correta) deve ter um problema muito mal resolvido. Claro que todos têm coisas mal resolvidas, mas quando digo “todos” refiro-me aos comuns mortais, coisa demasiado pequenina para quem tão grande ego tem.

Na crónica “Os novos tempos”, do Expresso de 15 de junho 2013, você elogia a sua professora primária, a D. Constança, e boas razões tem para tal:

“Éramos uns 80 alunos, da 1ª à 4ª classe, todos juntos na mesma e única sala de aula da escola”;

“A escola não tinha um vigilante, um porteiro, uma secretária administrativa. Ninguém mais do que a D. Constança…”

E não era preguiçosa nem mariquinhas:

“Se porventura adoecesse, ou se na aldeia houvesse, que não havia, um médico disposto a passar-lhe uma baixa psicológica ou outra qualquer quando não lhe apetecesse ir trabalhar, as 80 crianças da aldeia em idade escolar ficavam sem escola”.

Dr MST, não duvido das suas palavras, mas estariam realmente as 80 crianças na mesma sala? Ou então eram todas tão magrinhas, devido à miséria da época, que ocupavam pouco espaço. Não me diga que você tinha um lugar melhor, como acontecia nesse tempo! Se assim foi, então não vale!

Não duvido de nenhuma palavra sua, nem mesmo quando confundiu filatelia com filantropia, num dos comentários da SIC. Nem sei até se dessa vez os editores foram logo a correr mudar os dicionários, porque da sua boca e da sua mão só saem verdades.

Peço-lhe desculpa de voltar atrás, mas, se calhar, a história dos 80 alunos na mesma sala não foi bem assim. Quem sou eu para não acreditar, mas você, na mesma coluna do jornal também diz:  “não me lembro se tinha ou não casas de banho, mas sei que não tinha qualquer espécie de aquecimento contra o frio granítico, de Novembro a Março…”

Se não se lembra de umas coisas também pode esquecer ou confundir outras, não acha? Quanto ao frio, realmente não havia necessidade de aquecimento. Então, com 80 crianças todas juntas numa sala há lá frio que resista? A menos que os meninos faltassem à escola ou fossem trabalhar para os campos, como também era frequente.

Não sei se o Ministério vai até aproveitar a sua ideia e pôr 80 alunos por sala. A poupança será colossal. E se os professores disserem que não aguentam e as salas também não, você dirá do seu pedestal ou a conduzir o seu jeep rumo a exótico destino: “Ai aguentam, aguentam”! E você tem a prova: a D. Constança aguentou.

Mas confesso que sinto uma certa ternura pela D. Constança. E sabe porquê? Porque ainda há muitas donas constanças, no masculino e no feminino, que você não conhece, porque vai quando quer para o Deserto e nem se apercebe que há muitos oásis dos quais ninguém fala nem escreve.

Gostava de o ver com trinta e tal alunos (não digo 80 porque não sou vingativa como parece estar na moda) numa sala de aula. E olhe que eu sempre me dediquei aos meus alunos!

Sobre a greve aos exames, você recomenda aos professores: “… tenham pudor”. E como explica sempre tudo muito bem, cumpre a regra de juntar exemplos aos argumentos: “um cirurgião não resolve entrar em greve quando recebe um doente já anestesiado”…

Mais uma vez, você confundiu ou então estava com pressa e nervoso por não poder fumar um cigarro e comparou alhos com bugalhos para despachar. Tenha pudor, digo eu. Não tome a árvore pela floresta, nem um pedaço de areia por todo o deserto.

      Quando assim é, você parece um clown, a sad clown.




Casa-Museu Aquilino Ribeiro


A Casa-Museu fica em Soutosa, Moimenta da Beira e mostra uma grande parte do espólio deixado por Aquilino Ribeiro, um Homem Resistente.
Este verão, vou tentar ler, pelo menos, O Malhadinhas e o Romance da Raposa.

Maravilhas de "Terras do Demo"

Igreja de Ariz

domingo, 16 de junho de 2013

O cuidador das flores



Toda a gente que passava pela aldeia de Ariz parava junto a uma casa que se destacava pela profusão de flores. Quase sempre eram forasteiros que vinham em visita às “Terras do Demo”, tão presentes nos livros de Aquilino Ribeiro.

Todos os dias, o dono da casa florida passava umas boas horas no café vizinho, depois do almoço. Em dias de sol, sentava-se a uma das mesas exteriores e convidava sempre alguém a sentar-se numa das cadeiras que estava livre. Era uma maneira de falar e de ouvir os outros.

Quem chegava ia comentando a beleza da casa cheia de flores a escorrerem das varandas, a elevarem-se dos canteiros. Olha que rosas bonitas e perfumadas. E as sardinheiras tão coloridas! Quem morará aqui?

O dono da casa ouvia muitas vezes conversas semelhantes, mesmo junto de si, porque não o conheciam. Às vezes, apetecia-lhe dizer que era ele o dono da casa, que vivia sozinho e das flores era só ele que tratava. E se isso acontecia, também dizia que tinha a casa sempre limpa e arrumada. 
Tudo estava no lugar como acontecia antes da morte da mulher. E desabafava: pois, como estou sozinho e reformado, tenho tempo. E gosto, se gosto, de cuidar das flores. Rego-as todos os dias. Vejo-as nascer, viver, morrer e muitas vezes são o meu relógio e o meu calendário. Se não as tivesse, então é que me sentia só. Nem quero pensar. 
Quando as pessoas se despediam, desejava-lhes boa viagem. E, mesmo sem olhar, sentia que as flores também estavam contentes. Mas só ele entenderia.

(Obrigada, Etelvina e Vítor, pela fotografia!)



Porque...



 Emerenciano
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não. 


Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.


Sophia de Mello Breyner

Felizmente (ainda) há flores