Hoje é dia de vir a D. Vitória, uma senhora que veio há anos da Moldávia. Faz limpezas, é simpática e tem ar triste desde que a conheço há já uns anos, mas agora mais.
O meu inglês não é forte e o dela talvez ainda menos. Perguntei-lhe como estavam as coisas no seu país devido à guerra na Ucrânia. Suspirou e disse quase soletrando e com ar cansado: - mal, muito mal. Estamos muito perto da Ucrânia, temos medo do poder militar russo e daquele louco.
Disse também ter amigos na Ucrânia que estão passando muito mal. E que uma amiga, que fugiu de Odessa, vive agora na sua casa na Moldávia.
Nisto, o telefone dela tocou. Afastei-me da cozinha onde estávamos. Ela atendeu e ia falando em língua para mim muito estranha, mas para ela materna e familiar, a avaliar pela grande fluência.
Peguei no livro que tinha começado a ler e fui para um pequeno espaço donde se veem
árvores e se ouvem os pássaros a cantar. De vez em quando, um saltita na
vedação de madeira exterior e fico a olhar-lhe os movimentos e a escutar-lhe os sons.
Sento-me e reabro Claraboia de José Saramago, cujo contexto são os anos cinquenta do século XX num bairro de Lisboa - onde vive e trabalha um velho sapateiro ex-revolucionário, uma mulher que recebe visitas noturnas sempre à mesma hora, uma espanhola que nunca se adaptou ao país nem ao casamento, uma jovem empregada de escritório que anseia por salário melhor, um jovem que vai vivendo temporariamente em quartos que aluga em errância quase permanente, duas irmãs - uma delas marcada por um romance dos muitos já lidos - que vivem com a mãe e uma tia...
Neste livro, em que o narrador olha para o pulsar do bairro como iluminado por uma claraboia, escrito em 1953 mas só publicado em 2011, um ano após a sua morte, Saramago ainda recorre à pontuação tradicional, o que causa certa estranheza a quem está mais familiarizado com a maior parte dos livros mais atuais em que evita, por exemplo, os dois pontos, o travessão, o ponto de interrogação, etc.
Enquanto a D. Vitória ia avançando na sua manhã de limpezas cá em casa, eu avançava na leitura do livro.
De repente, lembrei-me de que nas várias vindas a Londres eu lhe trouxe um pequeno presente, quase sempre em filigrana da minha região. Desta vez, esqueci-me e tenho pena, porque, mais do que nunca, ela precisaria de mimos e alegrias. Ainda que pequenas.
Porque as dificuldades da D. Vitória são muitas e variadas, para além do medo daquele homem tenebroso que ataca o mundo, nunca saindo da sua escura claraboia.