Partilho este conto que escrevi para a coletânea, cuja capa reproduzo em baixo, com desejos de um
Feliz Tempo de Natal!
Também com luzes de semáforos que vão piscando e chamando a atenção para o que à volta delas acontece.
Maria Dolores Garrido
À Isaura
O velho do semáforo
Aquele semáforo fazia parte do meu
trajeto quase diário. Passava lá, no mínimo, três ou quatro vezes por semana,
entre as nove e as dez da manhã. A essa hora, o velho lá estava, no separador
entre as duas vias, junto da fila de carros que parava ao sinal vermelho, quase
a chegar ao Porto. Nesse lapso de tempo, o homem tentava aproximar-se do maior
número possível de condutores, mas não conseguia abordar mais do que dois ou
três, porque logo aparecia o sinal verde e todos arrancavam o mais depressa que
podiam para evitar perdas de tempo, sempre escasso na ida para o trabalho.
Vezes sem conta o velho também se
aproximou de mim, inclinando-se para a janela do meu carro, saudando com a mão
e sempre mostrando um sorriso. O homem é simpático e terá, como qualquer ser
humano, uma história de vida - pensava eu e interrogava-me por que razão nunca
tinha aberto a janela para falar com ele, mesmo que fosse só para lhe dar os
bons dias. E, lá com os meus botões, ia pensando que fechamos tantas vezes as
janelas aos outros e gostamos tanto que para nós sejam abertas!
Nunca o vi de mau humor ou contra
alguém que, como eu, nem abria a janela, embora lhe sorrisse. Às vezes até
aproveitava a pequena pausa entre o vermelho e o verde do semáforo para me ver
ao espelho ou espreitar o telemóvel. Ainda assim, tentava corresponder à
simpatia do velho, acenando, mas não de forma explícita, confesso, porque o seu
aspeto andrajoso e sujo retirava-me a vontade de comunicar sem o vidro da
janela de permeio. As suas barbas abundavam crespas e incertas e o cabelo mal
se via porque usava um gorro escuro e espesso. O outono já tudo arrefecia.
Numa manhã de novembro, fria mas
luminosa, disse para mim que já era tempo de dirigir algumas palavras ao velho.
Tantas vezes ali passava, tantas vezes era saudada, tantas vezes me dirigia
palavras que tinha também de retribuir. Podia ser só para dizer bom dia ou até
amanhã, mas tornava-se urgente fazê-lo, abrindo a janela. Na viagem seguinte, quando
cheguei ao semáforo, logo apareceu o
sinal verde e tive de circular o mais rápido possível, para evitar buzinadelas
nervosas e vozes destemperadas. Ficaria para o dia seguinte. Teria uma moeda à
mão.
Nessa manhã, fiquei logo à frente da fila,
diante do implacável sinal vermelho. O
homem aproximou-se do meu carro, mas ainda não foi dessa que abri a janela.
Tinha-me esquecido da máscara e não queria enfrentar aquele respirar direto, durante
a saudação habitual, sempre com muitos acrescentos: bom dia para si e também
para a família e muita saúde que é o melhor da vida e muita alegria que faz
muito bem à alma, etc etc etc. Sorri e arranquei logo que pude. Seguiu-se uma
semana de vento e chuva. Durante esses dias de tempestade, do velho nem sinal.
Os dias foram passando sem eu chegar
à fala com o homem. Porém, sempre no mesmo lugar, o velho mantinha-se afável e
transmitia uma ternura imensa que lhe escorria do rosto aberto em sorrisos e
das mãos em acenos. Podia sentar-se à porta de uma igreja, de mão estendida em jeito
de miserável sofredor, mas não, aguentava-se ali ao tempo, exceto quando chovia,
mantendo-se de pé, distribuindo mais do que recebendo mimos, aceitando a má
disposição de quem, àquela hora, ainda não tinha aberto a caixa dos sorrisos ou
então a mantinha fechada à chave há muito perdida.
Eu não podia continuar a adiar uma
pequena mas carinhosa troca de palavras com o velho. Como o Natal chegava, esse
seria o momento. Sem hesitações, decidi dar-lhe um presente para compensar a
pouca atenção. Comprei-lhe bombons macios e saborosos. Postos em caixinha
bonita. Sem laço para ser mais fácil abrir e evitar também o desperdício. Como
reagiria ele quando a recebesse? Sorrisos haveria com certeza, palavras
carinhosas sem dúvida, brilho dos olhos não faltaria... E talvez surpresa. Não
devia estar habituado a receber prendas, para além das moedas.
Nessa manhã, pus a caixinha dos
bombons no banco da frente, junto à carteira. Quando chegasse ao semáforo, se
fosse das primeiras pessoas da fila, poderia dar-lhe o presente um pouco mais
devagar; se o sinal vermelho já
estivesse no final, teria a possibilidade de lhe entregar rapidamente os
bombons com votos de bom Natal. Se sobrassem uns segundos, ainda lhe desejaria
muita saúde e muita alegria, tal como ele dizia sempre a toda a gente, mesmo
que não lhe abrissem a janela.
Quando cheguei ao semáforo, fiquei em
segundo lugar na fila e peguei logo na caixinha que já tinha à mão. Oh! Não,
não podia crer, quem eu queria que lá estivesse não estava. Não havia chuva a
impedi-lo de vir que o céu estava bem azul e transparente. Estaria o velho doente?
Alarguei o olhar nos poucos segundos que me restavam antes de avançar e deixar
seguir os outros, confirmando que ele não estava mesmo lá.
No dia seguinte, saí de casa convicta
de reencontrar o velho no semáforo para, finalmente, abrir a janela e
entregar-lhe o presente. Mas não, mais uma vez, ele não estava no seu posto
habitual. Nos últimos segundos de sinal vermelho, vi passar uma mulher jovem
com olhar sorridente, um telemóvel pequenino numa das mãos e um saco de pão na outra. Devia morar perto.
Ainda tive tempo de lhe perguntar pelo velho do semáforo. Morreu há dias,
respondeu. Estava em casa e a casa incendiou-se, concluiu com ar pesaroso mas
sem falso drama.
Ela devia ter sentido prático,
porque, ao ver o sinal vermelho, nada mais acrescentou, afastando-se no seu
passo pequeno mas ligeiro.
Eu é que não retomei logo a marcha ao
sinal verde, o que me valeu uma grande buzinadela de um dos condutores atrás de
mim. Assustei-me de tal modo que deixei cair a caixinha e os bombons espalharam-se
todos pelo chão.
In Lugares e palavras de Natal, Editora Lugar da Palavra, 2021, p. 42/44