quinta-feira, 10 de junho de 2021

'Camões, grande Camões...'

Endechas a Bárbara escrava

Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.

U~a graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.

Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E. pois nela vivo,
É força que viva.

             Luís de Camões (Faleceu, em Lisboa, em 1580)
Composição poética, fúnebre ou triste, geralmente em quadras de cinco ou seis sílabas.

"endecha", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/endecha [consultado em 09-06-2021].
 (Endecha - composição poética melancólica, geralmente em versos de 5 ou 6 sílabas métricas)
 

A propósito das endechas,  gostava que lessem aqui os comentários esclarecedores de Vítor Oliveira.

Julgo que assim o assunto fica mais claro e correto.

Obrigada. 

Obrigada, Vítor.

(Recordo que Vítor Oliveira é também o autor do blogue Carruagem 23)

 
Composição poética, fúnebre ou triste, geralmente em quadras de cinco ou seis sílabas.

"endecha", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/endecha [consultado em 09-06-2021].

Teresa Silva Carvalho
 
Verdes são os campos

De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.

Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gado que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis,
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.
 
Luís de Camões


quarta-feira, 9 de junho de 2021

DOMINGOS MIRA FLOR

 

“Sim, podemos passear depois na Cordoaria, ir à praça Carlos Alberto e a Cedofeita”.

“Fico feliz por aceitar o meu convite. Obrigado pelo café”.

 E já do lado de cá da sua varanda, Domingos recordava a doçura do diálogo a que quase se desabituara. Revia os braços redondos da vizinha, as ancas largas, o cabelo farto com vestígios de caracóis de menina, embora já grisalhos. E os olhos dela que sorriam quando a boca se comprazia com o que ouvia ou com uma curta peripécia contada. Ela lembrava-lhe quadros de Botero, de quem tinha visto uma exposição, numa das suas poucas viagens, num domingo chuvoso e meditativo.

A curta visita havia-lhe trazido uma serena e clara alegria. Até se esquecia da antiga recomendação da mãe: "Devemos ser discretos, carago!".

Como seria se tratasse a vizinha por tu? Que encantos profundos poderia com ela partilhar? A sua vida parecia-lhe até então um canteiro de salsa pisada pelos gatos; viçoso ficava agora pela proximidade de uma mulher cujo nome apenas soubera nesse dia: Mira Flor. Estranho nome para flor que nem ousara mirar durante tanto tempo. Cobiçou secretamente a astúcia do seu gato. E lembrou-se do semicerrar de olhos quando as costas da sua mão esquerda tocaram na macia mão direita, enquanto ela tirava a chávena do tabuleiro. A curta travessia da rua parecia-lhe a concretização de uma linha do horizonte que não pensara transpor.

Os passeios de Domingos e Flor passaram a ser frequentes. Voltavam, por vezes, aos mesmos lugares. Como Domingos fazia com os livros que amava de paixão.

E, algum tempo depois, quem passasse pela varanda de Domingos veria dois pijamas novos a secar e uns pares de meias escuras. Junto das viçosas begónias, o gato dormia. Era vê-lo bem descansado!

Às vezes, a porta de uma das varandas fechava-se – estendendo-se a paisagem interior à viva e penetrada intimidade. Nem o gato tinha permissão de entrar.

E mais não ouso dizer. Também a minha mãe me ensinou a ser discreta, carago!

 

 (Parte 3)

 

Esta história foi publicada em 

Lugares e Palavras do Porto, Editora Lugar da Palavra, 2014, p. 9/11

 


 O antes desta história: 

Um dia, uma colega de trabalho, que vivia perto do Largo de S. Domingos, no Porto, falou-me de um homem que passava muito tempo na sua varanda usando camisa de noite.

Pronto, havia uma personagem. O resto veio por acréscimo ao olhar as varandas do belo Largo junto à bela Igreja barroca da Misericórdia.

 

A todos desejo um dia com boas histórias.

 

terça-feira, 8 de junho de 2021

DOMINGOS MIRA FLOR

 

Nunca tinha olhado a sua varanda de outra semelhante. E disse: “Não tinha reparado que as sardinheiras estão cheias de flor”.

Daí a nada, o Sr. Domingos terminava a função de pôr uma rede segura por cima do canteiro. Deixava-o de modo a ela apanhar os raminhos de salsa, a hortelã, o manjericão, sem que o raio do gato ali voltasse. “Há liberdade a mais, até dos gatos”, disse, seráfico, o Sr. Domingos. “Não é bem assim”, disse ela com ar professoral, acrescentando: “A liberdade nunca é em demasia, o uso que dela fazemos é que pode não ser o melhor”.

O Sr. Domingos sentia agrado e atração por aquele tom didático. E foi oiro sobre azul quando ouviu: “Sente-se um bocadinho. Aceita um chá ou um café?”

“Muito obrigado. Fico de bom grado. Se me dá licença, sento-me aqui em frente à minha varanda. Posso ver o gato. Nem deu pela minha falta… Às vezes não entendo este bicho, apesar de me ter entrado em casa há mais de dez anos”.

“Ainda não respondeu”, inquiriu, firme e de sorriso aberto, a vizinha: “Toma um chá ou um café?”

“Se posso escolher, prefiro o café… É um dos meus vícios”.

Ela sorriu e retorquiu ”Não parece ter muitos”.

“A senhora bem sabe que as aparências iludem. Tenho alguns, mas, felizmente, são baratos, de outro modo, não os podia manter”.

“ Estou curiosa. Então?”

“Um deles é sentar-me na varanda e ficar a olhar tudo com vagar. Nem imagina o que descubro. Às vezes, até me esqueço do tempo e de tirar a roupa de noite. Sei que é antiquada, mas não me importo porque ninguém repara em mim”.

“Não será bem assim”, disse a professora com uma leve e prolongada malícia. E acrescentou: “Agora já me posso também dar ao luxo de olhar à minha volta sem a pressa do relógio. Não tenho testes nem trabalhos para corrigir, nem reuniões demoradas.”

“Que bom ter a sua presença por perto e por mais tempo. Já me pode dizer se é preciso arranjar a cobertura dos seus vasos, porque o meu gato é matreiro”.

“Ora deixe lá o bichano. E que outros vícios tem?”

“A senhora não sabe, mas vou todas as tardes ao alfarrabista da Misericórdia e releio o mesmo livro vezes sem conta. Só passo para outro, quando me parece que já descobri quase tudo. Talvez lhe pareça ridículo, mas, em todas as leituras, deparo com um elemento novo e isso dá-me um prazer enorme”.

“E qual é o livro que anda a ler?”

 “Alguns contos e novelas de José Régio”.

 “Também gosto muito desse autor. Quando passo no jardim da Cordoaria, lembro-me de ‘O vestido cor de fogo’ e parece que vejo personagens a passear”.

“A Cordoaria é um belo sítio bafejado pela velha araucária.”

“E não se cansa de retomar vezes sem conta as mesmas histórias?”

“Não, minha senhora, é um prazer até. Penso assim: muito mais tempo deve ter gasto o escritor a pensar e a escrevê-las. Bem merece então as tardes que lhe dedico.”

“Vejo que é paciente, o que é raro”.

“Tenho alguma paciência, mas veja a senhora se não é de a ter: o meu nome é Domingos, sempre vivi nesta rua ao Largo de S. Domingos e vem ter comigo um conto com o título “Davam grandes passeios aos domingos”.

“Tem uma certa graça, de facto. Até as palavras podem ter encontros e desencontros”.

“Amanhã, como é domingo, dá-me o prazer que lhe retribua este café no Café do Olival?

 

(Parte 2 de talvez 3) 

 

segunda-feira, 7 de junho de 2021

DOMINGOS MIRA FLOR

 


Eu já tinha chegado a esta conclusão: as varandas do Porto são mais visíveis ao domingo de manhã. Parece absurdo, mas, se não acredita, experimente passar nas ruas Mouzinho da Silveira, das Flores e outras do Porto antigo, fora da azáfama da semana. As varandas, de recorte simples, puxam e demoram os olhares.

Ora, numa manhã de tempo e espaço desanuviados, vi, numa velha varanda, um homem sentado. Nada de estranho, dirá o leitor, não fosse aquele estar de camisa de noite até aos pés. Junto dele, erguia-se um vaso de begónias vermelhas e, quase debaixo delas, dormia um gato farfalhudo, de sono interrompido por suspirados sobressaltos.

Não pude deixar de olhar, porque muitas varandas estavam nuas de plantas.

Há setenta anos e cinco meses que o Sr. Domingos era habitante desta casa da rua que se abria ao Largo de S. Domingos. Da sua varanda, ele conseguia ver o rio, os quintais interiores de casas vizinhas, a ponte D. Luís, os anúncios ao vinho do Porto - brindando a todos os momentos e prazeres - do outro lado, como ele dizia quando se referia ao Cais de Gaia.

O Sr. Domingos vivia só, tendo a companhia do gato e da paisagem. Tudo era encantamento, apesar de ser costumeira e diária a visão.

Conhecia as outras varandas vizinhas. Lamentava as que iam ficando vazias: murchas ou mirradinhas, as plantas sinalizavam o abandono e solidão.

Quando via alguém na varanda, o Sr. Domingos fazia uma saudação, mas, muitas vezes, disfarçava e desviava o olhar, porque se lembrava do que a mãe lhe dizia, na sua voz austera e bem pronunciada: “Devemos ser discretos, carago!”. Achava que a palavra carago não combinava muito bem com a maternal discrição, em cujo berço fora educado, mas não contrariava a mãezinha.

Ora, quase em frente, vivia uma professora há muito ano. Assim dito, o tempo recuava pausado e singular. Nunca tinha falado com ela.

Um dia, decidiu interpelá-la, pedindo-lhe desculpa pelo arrojo do seu gato. “Desculpe, não sei se a senhora já reparou, o meu gato foi dormir no seu canteiro das  aromáticas. Eu bem o chamei…”.

Que sim, que já tinha reparado, mas que os gatos têm pouco pensar ou até nenhum, e que não se inquietasse.

Claro que era de se preocupar e o melhor seria pôr um resguardo no canteiro: “Se a senhora quiser, eu posso ir aí à tardinha tratar disso, pois o raio do gato é que fez os estragos. Já o castiguei, mas foge-me e não posso ir atrás dele, como poderá compreender, embora gostasse…”.

A vizinha, recém-reformada, aceitou e, nessa mesma tarde, à hora marcada, o Sr. Domingos fez-lhe sinal da sua varanda. Como era dia de semana e passava muita gente na rua, se falasse alto, todos ficariam a saber do seu intento e do recheio da sua vida, assim como de uma das sete do seu gato. De facto, para o governo da sua existência só ele era o eleito.

Vestiu umas calças com vinco, um polo azul, um blusão pardacento, dado pela mãe num Natal; viu-se ao espelho, endireitou a risca do cabelo, ainda com alguma pujança, com um pentezinho antigo; reparou que os sapatos estavam demasiado gastos e mudou as meias brancas porque tinham um fio puxado. Pegou na caixa da ferramenta e nuns pedaços de rede que ia guardando e atravessou a rua.

Logo que o viu, a professora reformada disse-lhe, roliça e canora: “Pode entrar, não faça cerimónia”. Ele respondeu “Com certeza, minha senhora” e lá foi subindo, dirigindo-se à varanda, não fossem outros passos serem mal entendidos. Já lhe bastava a ousadia do gato.

 

(Parte 1 de talvez 3)

 

domingo, 6 de junho de 2021

É bela a diversidade também nas flores

 



Fui hoje a Mindelo e deparei com esta beleza larga de flores entre o parque de estacionamento e o passadiço junto à praia.
 Umas aparentemente espontâneas, outras um bocadinho menos, mas só um bocadinho. Indaguei sobre o semeador/plantador. A Junta de freguesia, disseram-me. 
Bela ideia. Venham mais. E que sejam semeadas/plantadas noutros sítios.