Um presépio africano |
Hoje recebi este excerto do último livro de Ondjaki (um dos 'Herdeiros de Saramago', série que está a passar na RTP 1, à segunda-feira à noite).
Obrigada, Idalina, pela partilha deste terno texto natalício.
"[…] isso notava-se era nas casas daqueles que iam à missa:
o presépio com o camarada menino Jesus.
era na casa dos outros o natal, natal-mesmo; nós, nem árvore não tínhamos
isso foi já depois, anos depois
e se não falassem essa palavra eu nem sabia que já tinha chegado o tal de natal.
o que eu gostava mais?
o presépio da casa da tia Tó: simples, bonito de só ver e não tocar os cabritos de barro, uma casinha de madeira e o Jesus, deitado na palha, era um bonequinho de plástico com a pilinha de fora
- mas este menino Jesus fica assim com “os documentos” à mostra?
a avó Nhé olhava de desconfiar
- então ele já nasceu vestido, mãe?
a tia Tó me piscava o olho
- pelo menos um paninho a cobrir
agora, natal do puro panquê, de comer e beber até ficar a arrotar à toa?, era na casa do tio Chico, só que eu sempre só encontrava “as consequências”, como dizia o senhor Osório, os restos da noite anterior
porque na noite de vinte e quatro cada um ficava na sua casa e embora eu ficasse tantas vezes com o tio Chico, o jantar de natal era em casa com os meus pais, talvez no dia seguinte fôssemos então ao tio Chico
aquilo só faltava ter fila
todo o mundo parece que gostava de visitar as consequências do natal do tio Chico, para mim era bom porque ali tinha prenda garantida, para os mais-velhos era mesmo de comer e beber
a casa do tio Chico mandava muita comida naquele tempo"
Ondjaki, O Livro do Deslembramento, Caminho, 2020, pp. 67/68