Romance de Nós
Estou à beira do mar,
estou à beira de ti.
Ardem no meu olhar
os sonhos que não vi.
Tudo em nós foi naufrágio,
não quisemos saber:
fizemos nosso adágio
do que não pôde ser.
Que resta do amor
a quem é como nós?
Envergonha-me pôr
em verso: «somos sós;
sós como amanhecer
às avessas do mundo;
sós como podem ser
as areias no fundo;
somos sós e sabê-lo
é negar o pronome
que de nós fez novelo
e por nós se consome».
Luis Filipe Castro Mendes, in
"Modos de Música"
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Das Palavras
As
palavras mais simples
foram as que te dei; o amor não sabe outras, só estas fazem lei. As palavras de uso mais comum e vulgar são as que amor conhece. Com elas nos pensamos; é nelas que tememos desacertos, enganos; se nelas triunfamos, já delas nos perdemos. Com palavras vulgares se diz o mal de amor, seu riso, seu espelho, o que fica da dor. E todos os mistérios que se fazem promessa e se perdem nos versos e dos corpos nasceram são aqui cerimónia evidente e secreta nas mais simples palavras que conhece o poeta. Luis Filipe Castro Mendes, in
"Os
Amantes Obscuros"
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segunda-feira, 11 de abril de 2016
Poemas do Sr Ministro
domingo, 10 de abril de 2016
"E se fosse eu?"
Carta a uma avó refugiada
Com
certeza que esta carta não será lida pela principal destinatária, mas envio-ta,
a ti, uma avó que abraça uma neta durante uma viagem de grande dureza e
precariedade. Não sei se deva dizer viagem ou fuga; migração ou deportação.
Escolhi-te
por seres uma mulher muçulmana, de roupas compridas, casaco de malha já gasto,
lenço na cabeça a esconder-te os cabelos que imagino lisos e negros.
Desculpa
tratar-te por tu, mas também sou avó. Não te conheço bem, mas vi-te a
sair de um barco com outros refugiados de diferentes idades. Pressinto-te
corajosa porque arriscaste sair do teu país onde as armas amedrontam e o terror
caótica se agudiza e desespera. Não receaste que te tomassem por família de
terrorista e ousaste arriscar para que a vida dos que amas não continuasse
eternamente por um fio.
Fixei
a tua imagem ao lado da tua filha, segurando com forte ternura a tua neta para
que nada de mal lhe aconteça, para além de todos os males que vêm
atingindo o teu povo nos últimos tempos. Tantas vezes por ganância e fanatismo
dos poderosos.
A
tua filha transportava um saco onde imagino haver roupa, alguma comida enlatada
e medicamentos. Talvez haja alguma fotografia. Tudo essencial à vida, sem
qualquer excesso ou desperdício.
Gostava
de ter um pouco da tua coragem, procurar-te, levar-te água limpa e roupa
lavada. Poderia juntar um creme para amaciar o rosto bonito e meigo da
tua neta. Ah, e levar-lhe-ia livros de histórias para que a realidade se
tornasse mais amena e menos crua. E a imaginação não morresse como tantas
pessoas que viajam nos mesmos barcos em que passaste, com custo e a alto
preço, o Mediterrâneo. E também lápis de cor e um caderno para
desenhar imagens felizes e não apenas de negrura do triste desalento.
Não
sei o teu nome, nem tu conheces o meu, mas quero enviar-te o meu afeto e uma
firme vontade de que a minha neta e a tua possam vir a viver num mundo de paz e
liberdade.
Um
abraço
terça-feira, 5 de abril de 2016
O solitário da rua
Simplex
Há vários dias que queria escrever, mas o trabalho
da Repartição e compromissos familiares apenas lhe tinham reservado curtos
momentos de sossego.
Não é que tivesse grandes histórias a contar. As
mesmas coisas simples de sempre. Se calhar, complicadas ou inúteis para os que nelas nem
reparavam.
Às vezes, olhava as pessoas que atendia na
Repartição e, apenas por intuição, logo lhe parecia ver se eram pessoas que
tinham sido amadas na infância ou não. Talvez fosse um perfeito disparate, mas
julgava quase sempre acertar. Apesar de dizer que muitas vezes se enganava. Havia momentos em que via nas pessoas - e muitas vezes nos homens já de uma certa idade - a influência da educação ministrada pelas mães. E tal era motivo para escrever se tivesse tempo e o computador por perto.
Uma outra coisa que lhe vinha aflorando muitas vezes
ao pensamento era o preconceito que o levava a não dizer nunca que era feliz. E
era-o, de facto, à sua maneira, apesar da idade da reforma estar à porta. Gostava do que
fazia. Não ligava muito às críticas que se ouviam sobre os funcionários
públicos. Gostava de atender bem as pessoas e com a eficácia possível.
Reconhecia a importância do conceito Simplex e de não enredar o tempo dos
cidadãos nem de os tratar como se fossem de segunda, simplesmente porque não
sabiam preencher bem os documentos.
Custava-lhe dizer que gostava da vida que levava, porque, se o dissesse, parecia esquecer os problemas de fome, de miséria, de medo, de terror que persistiam e se avolumavam velozmente.
Crescera no freio religioso que rejeitava qualquer excesso de satisfação. Nem que fosse aparente.
Quando podia, gostava de tratar do jardim, de ler,
de ir ao cinema, de seguir os assuntos da atualidade, mas nunca se habituara a
dizer que gostava da vida que tinha - uma ousadia que poderia dar
azar. E, no entanto, o correr dos seus dias dava-lhe prazer.
Hoje deu consigo a pensar que à sua vida também
devia chegar o conceito Simplex. E sorriu, enquanto acertava um relógio que
não usava há muito tempo.
A história do vestido vermelho
Recupero hoje uma pequena história
que ouvi há uns tempos.
Apesar de não parecer,
parece ter sido verdadeira!
Não era muito saudosista, mas às
vezes falava de coisas que tinha vivido, nas histórias que contava.
Os netos pediam: avó, conta uma
história. E ela contava. E nunca contava da mesma maneira. A
neta mais pequenina, muito observadora, dizia logo: avó, enganaste-te, a
história não é assim. Tinha, então, de se lembrar das palavras já ditas e de que não se podia desviar.
Um dia, a neta de dez anos disse:
avó, conta a história do capuchinho vermelho mas à tua maneira. Ela, talvez por
já ser mais crescida, gostava de pormenores diferentes ou de histórias
verdadeiras. E a avó disse então: em vez do capuchinho vermelho, vou contar-te
a história do vestido vermelho. É verdadeira.
- Mas começa por Era uma vez como eu gosto?
- Sim, pode começar. Era uma vez uma menina que gostava muito
de roupa colorida. Desde pequena que assim era. Era uma festa quando a mãe lhe comprava
uma peça de roupa nova e vistosa.
Cresceu, tornou-se mulher e
manteve o gosto por vestidos, saias, blusas… com muita cor.
Foi sempre boa aluna, tirou um
curso e começou a dar aulas numa escola. Ficou tão contente por poder começar a
trabalhar que, no primeiro dia, levou o vestido de que gostava mais: um vestido
vermelho. Quando chegou à escola, foi chamada ao diretor que lhe disse, muito
sério, que era proibido entrar numa sala de aulas de vestido vermelho.
- Ó avó, essa história é
inventada. Inventas cada coisa!
- Mas olha que é verdadeira!
- Só se for para ti, avó. Queres
enganar-me? Esqueces-te que já tenho 10 anos? Para inventar prefiro a playstation!
A avó imaginou-se ainda com
corpo de menina e a cabeça cheia de sonhos a vestir o vestido vermelho. Que
conservava há mais de 38 anos.
Apesar de já não lhe servir, contava uma das histórias mais verdadeiras da sua vida.
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