Mandei abater a árvore mais alta do meu jardim. Era um
abeto. Trouxe-o de um país do norte da Europa, mas não quero que pensem que o
arranquei da floresta.
Sempre gostei de abetos. Aprendi a conhecê-los melhor
também nos livros de Sophia e não sosseguei enquanto não plantei um no meu
jardim, mesmo à frente da casa.
Quis que viesse de um país do Norte da Europa, de
vegetação verde, fria e densa. Como tive a oportunidade de ir à Floresta Negra,
na Alemanha, não desperdicei a ocasião. Trouxe-o num saquinho de plástico
transparente, com um fio atado à volta da raiz que cobri com água. As folhas e
o caule ficaram ao ar e aconcheguei cuidadosamente o pequeno abeto dentro de um
saco de papel, aberto, para que a respiração da planta fosse possível. Na
viagem de regresso, o pinheiro já era como um amigo de quem não me queria
separar.
Quando cheguei a casa, plantei-o e fui acompanhando,
atentamente, o seu crescimento. Passou a morar no meio do jardim. Aproximava-me
dele todos os dias e falava-lhe com carinho, dizendo-lhe: já me dás pelos
joelhos, já me chegas à cintura, já está maior do que eu…
Via-se que o abeto gostava do sítio onde vivia e que
tinha sido demoradamente escolhido por mim, depois de me ter informado das
condições necessárias para que se desenvolvesse, uma vez que vinha do Norte da
Europa e o nosso país fica no Sul.
Num dia quente de verão, dei comigo sentada a reler um
livro de Sophia, O Cavaleiro da Dinamarca, à sombra do meu abeto. O
cenário era perfeito.
Nessa altura, já estava bem maior do que eu. E mais
largo. Parecia o rei do meu jardim pela natural imponência e sobretudo pela
grandiosa beleza, ainda que discreta.
As minhas amigas diziam-me: como o pinheiro
cresceu! Sei até que havia quem chamasse à nossa habitação “a casa do abeto”,
porque era o elemento natural que logo sobressaía. Como a família gostou da
designação, pintámos num azulejo: “Casa do abeto” e afixámo-lo na porta
principal. Assim ficou e para sempre ficará, apesar de a nossa árvore já não
estar entre nós.
Para além de dar tanta vida ao jardim, foi a nossa
companhia ao longo de mais de uma dezena de Natais. Quando chegava dezembro,
íamos ao sótão, abríamos a caixa das iluminações, pegávamos nos fios, descíamos
ao jardim e começávamos a decorar o abeto, a nossa árvore viva do Natal.
Era um trabalho em família, porque ninguém
conseguia abraçar o abeto de uma só vez. Quando concluíamos a operação de
colocar os fios à volta da árvore, ficávamos muito tempo a olhar as luzinhas a
piscar. Nunca nos cansávamos de o fazer e era o primeiro presente de Natal que
dávamos uns aos outros e também a quem passava na nossa rua.
Mas, como se sabe, antes do inverno vêm outras estações.
O último verão foi extremamente quente, ao contrário do que se previa. Quando o
calor apertava, eu regava o abeto várias vezes ao dia e fiz-lhe até uma
cobertura, unindo vários chapéus de palha. Tinha de ser protegido e era a
melhor maneira que eu encontrava para o resguardar dos fortes raios solares.
Durante o mês de agosto, nunca me afastei muito de casa
para que o abeto não passasse sede. Um dia, estava eu sozinha, saí porque o
calor apertava, queria ver o mar e sentir no rosto a clara frescura da maresia.
Para que a árvore ficasse bem protegida do sol, fui buscar um outro chapéu de
palha, de abas ainda mais largas e coloquei-o mesmo no cocuruto do abeto. O
sol, assim, não lhe tiraria o viço da vida de que todos tanto precisávamos.
Passado pouco tempo, eu estava a chegar à praia que se
estendia ao sol e às marés de viva frescura. Já era quase setembro, mas o calor
continuava a apertar. Fui ficando até ao pôr do sol. Queria captar os inúmeros
tons vermelhos convocados pelo astro-rei que partia, deixando a terra
repousadamente escurecida. A praia ia ficando deserta, sendo visitada apenas
pelas gaivotas que deixavam pequenas marcas triangulares e fugidias na areia.
Quando regressei a casa, pela noitinha, o trânsito estava
interrompido na minha rua. Ainda me exasperei, querendo romper para chegar mais
depressa e ver o que se passava. Os carros dos bombeiros eram muitos e era
impossível avançar. A mata próxima da minha casa tinha ardido, atirando faúlhas
e pedacinhos de fogo em todas as direções. Uma centelha caíra nos chapéus de
palha que eu tinha posto sobre o abeto e logo começaram a arder, propagando-se
à árvore que não resistiu às chamas malditas e devoradoras. Escapou apenas o
tronco chamuscado que só agora mandei cortar, porque me lembrava a pele de um
ser queimado e em sofrimento.
Vou fazer um banco com o tronco do abeto, depois de
limpar os sinais rugosos de agonia, e colocá-lo no mesmo lugar onde viveu
durante tanto tempo.
Porém, este ano, o Natal vai ser menos Natal. Falta-nos o
nosso pinheiro e aquele presente a reluzir nas noites escuras e longas de
dezembro.
Quando olho o meu jardim, lembro-me sempre daquele ser
cuja vida segui de tão perto e cuja morte preparei sem contar.
Ah, é grande a nostalgia, tal como é a vontade de ser
verdadeira. Por isso, quero dizer que arranquei, sim, arranquei o abeto da
Floresta Negra, aproveitando uma distração do Guarda Florestal.
Se pudesse, ia lá ver se voltou para o seu lugar,
renascido das próprias cinzas, e se se encontra a descansar, protegido por um
manto de fina neve, e a comemorar, silenciosamente, o Natal.
Se assim fosse, jamais lhe tocaria. Apenas com as mãos
leves da luz livre do olhar.
Nota: Este conto foi
publicado no livro
Lugares e Palavras de
Natal
Escolhi, para
pseudónimo,
Maria Neves.