quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Quando as joaninhas de plástico deixam de falar




Nas outras ruas também vivem famílias, em cada janela aparecem pessoas. Ouvem-se relatos de futebol e ouvem-se músicas, ouvem-se telenovelas, ouvem-se gritos como os da sua casa, ouvem-se móveis a ranger, ouvem-se pessoas a andar, ouvem-se pessoas a dançar, ouvem-se pessoas a chorar, ouvem-se pessoas a pensar, ouvem-se pessoas a ser famílias, ouvem-se coisas a cair.
M., com a sua idade de criança, passa pelas janelas, ouve os vizinhos e ouve as vidas todas iguais. Com os mesmos barulhos. Mas não se ouve o sofrimento, pois só se ouve o nosso. É uma coisa que nos pertence, só a nós, como o cartão de cidadão, como o umbigo, como as linhas das mãos e o modo como deformamos os sapatos ao andar. O sofrimento é um sapato deformado.
M. lembra-se da altura em que a joaninha de plástico falava. E não era só a joaninha, mas também o urso de pelúcia e as bonecas. Algum crescimento e algumas dores vão fazendo com que os brinquedos deixem de falar, como há muito tempo aconteceu com os animais. M. lembra-se da altura em que, quando adormecia, o seu urso de pelúcia crescia e ficava de um tamanho grotesco, difícil de caber no quarto. Era assim que a defendia enquanto dormia, crescendo até ocupar o espaço todo. A boneca loira sentava-se junto dele e conversavam a noite toda. O urso tinha uma voz fininha e calma, enquanto a boneca loira tinha uma voz grave e nervosa. E um dia deixaram de falar, tal como os animais das histórias.
M. olha para as suas mãos, pequeninas, e lembra-se de quando a mãe lhe disse que o pai iria voltar. Ficou feliz e saltou de um lado para o outro até ficar cansada. A mãe olhou para ela com olhos tristes, mas acabou por se rir, deixando-se contagiar pela
alegria. A sua irmã também estava feliz. Quando M. se cansou de correr e gritar, sentaram-se as três a ver televisão e adormeceram agarradas umas às outras no sofá. O pai chegou no dia seguinte de manhã, na companhia da mãe. Tinha os olhos cansados, mas trazia uns doces e parecia bem-disposto. Agarrou nas filhas, passeou-as pelo ar, abraçou-as e rodou com elas como se dançasse. M., a princípio tímida, riu de alegria. Uma alegria tão profunda, que custou a sair. Mas saiu, ao mesmo tempo que a joaninha de plástico deixava de falar.
As brincadeiras mudaram. Dantes, o pai estava na prisão e não partia objetos em casa, nem dava murros nas paredes, nem batia na mãe. Era no tempo em que os brinquedos falavam. M. tenta corrigir a sua vida, a família. Quando brinca com bonecos, faz com que ninguém bata em ninguém. Amam-se todos. Mas é difícil porque as suas mãos a levam a fazer coisas de que não gosta: o boneco levanta a mão, que é muito pesada, e agride a boneca. M. faz um esforço para corrigir isso, mas as mãos continuam a resistir, é a realidade a contaminar a ficção, a contaminar os sonhos, a contaminar a liberdade.
O pai chega sempre bêbado a casa, mas é meigo com as filhas. O pai esteve preso porque roubou. Antes drogava-se, endividava-se, tinha duas mulheres, duas famílias. A mãe deixou de trabalhar, exigência do marido, para que o pudesse visitar com mais assiduidade. M. ouve isso de outras pessoas sem compreender tudo. Apenas vê chegar um homem, o seu pai, numa altura em que os seus brinquedos deixam de falar. O seu urso já não cresce desmesuradamente para a proteger enquanto dorme. A joaninha de plástico calou-se para sempre. Para sempre.
M. olha para o pai e pensa: Se ele estivesse preso, não batia na mãe, pois não? O pai pega nela ao colo e dá-lhe um beijo na cara, dá-lhe um chocolate. Ela adora chocolates. Uma vez, enquanto esperava no cabeleireiro, com a mãe, leram-lhe a história de um homem que se evadiu da prisão porque queria dar um chocolate ao filho, porque nunca havia dado nada ao filho e não queria morrer sem lhe dar um doce. M. gostou de ouvir a história. Olha para o pai e interroga-se: Será que ele fugiu para me dar um chocolate? Mas os seus pensamentos partem-se contra o chão, juntamente com um prato. Foi o pai que o atirou contra a mãe.
Os dias repetem-se. A mãe leva-a à escola e vai buscá-la. M. vai às compras, à mercearia do Saraiva, leva tudo decorado na cabeça: dois quilos de cenouras, um frasco de maionese, um pacote de batatas fritas, dois maços de tabaco, detergente para a loiça. Pelo caminho, para muitas vezes a ouvir os vizinhos, cujo barulho das suas vidas
é igual ao barulho das outras vidas todas, mas sofrem todos de maneira diferente. M. olha para os sapatos, as solas mais gastas do lado de dentro do que do lado de fora, e, na sua cabeça, repete: dois quilos de cenouras, um frasco de maionese, um pacote de batatas fritas, dois maços de tabaco, detergente para a loiça.
Os dias repetem-se. O pai chega a casa a ondular, as coisas partem-se, os gritos preenchem tudo.
Ouve-se a noite a encher tudo de escuridão, a casa, as ruas, e a cozinha que estava tão iluminada. A música sai do rádio como se fugisse de alguma coisa, mas cansada, popular. Em cima da bancada da cozinha está um prato com chouriço e queijo. Ao lado há um saco com couves e brócolos. O tapete do chão, de riscas azuis e roxas, tapa uma boa parte dos mosaicos brancos. A mãe calça uns sapatos de plástico, com as presilhas debaixo dos calcanhares, como chinelos. Quando ele chega perto da mãe, diz que quer um doce. M. pensa que também gostaria de comer um doce, especialmente de chocolate ou de canela. Mas não há doce nenhum, e é isso que a mãe diz enquanto lava a loiça, de costas para o marido: «Não há.»
Está tudo muito escuro, apesar de a luz fluorescente do teto da cozinha iluminar os azulejos brancos e deixar as caras das pessoas sem expressão, como a carne na montra de um talho. M. começa a chorar, e a mãe diz para ela ir lá para fora brincar com a irmã. A agressão, tal como o amor, é um ato íntimo, que se deve fazer num quarto fechado, longe de toda a gente. Agressor e vítima exigem o mesmo pudor.
As filhas não obedecem e ficam junto da mãe. O pai está com os olhos vermelhos, com o corpo a andar de um lado para o outro, parece um barco.
O pai é meigo com ela e com a irmã e nunca lhes bate. M. sente as pernas a tremer. O pai levanta a mão, que é muito pesada, e dá um estalo na orelha da mãe porque não há doces em casa, nem de chocolate nem de canela. M. também gostaria de comer um doce e começa a chorar. A mãe cai sem sentidos. Cai e, dentro dela, nesse espaço que mais ninguém vê, já caiu muitas vezes sem sentidos. Aquela é apenas mais uma vez.
A sua testa tem a marca de uma agressão com um jarro de vidro, mas é por dentro que os jarros de vidro magoam mais, e os estalos nas orelhas, e os murros, e os pontapés. Dão cabo do interior das pessoas como uma doença. Batem por fora, mas começam a afundar-se e a entranhar-se dentro das veias, nos pensamentos, nos intestinos, nos pulmões, no fígado. Crescem com as unhas e com os cabelos e com os ossos. Uma pessoa fica com metástases das agressões por todo o lado, com a alma
escurecida apesar da luz fluorescente da cozinha, essa luz que nos deixa com cara de doentes. As filhas correm a pedir ajuda e voltam com a irmã do seu pai. A casa torna-se uma grande confusão, e a tia grita, os vizinhos gritam, o pai grita – então levanta a mão, que é muito pesada, e bate na irmã. A mãe acorda, confusa, com o olhar desfocado. Demora uns segundos a conseguir perceber onde está, quem é. Há muita gente à volta, em todo o lado, há gritos e mais gritos, e há a cara das suas filhas debruçadas em cima dela.
Fugir é essencial, é toda a sua vida condensada num momento: fugir. Sair dali. Não é para sempre, nem é por agora. Não há planos, nem futuro, há apenas uma necessidade, como ir à casa de banho, como respirar. Pega nas mãos das filhas. M. está de pijama, e saem a correr, a correr, a correr. Correm pelo meio da noite enquanto, em casa, o pai e a irmã dele se agridem debaixo de uma luz pouco lisonjeira, debaixo de uma vida desordeira.
Refugiam-se em casa de uma vizinha que já as ajudou mais de uma vez. M. olha à sua volta com o estômago embrulhado. A mãe decide ligar para uma linha de apoio, mas dizem-lhe que precisa de apresentar queixa na polícia. Confusa, desliga o telefone, pega nas filhas e vai com elas para casa da sua mãe.
— Para onde vamos? - pergunta M.
— Para casa da avó.
Erram para um lugar demasiado óbvio. O lugar mais previsível de todos. É como se a vida fosse uma fuga para dentro, para o útero, para perto dos pais. Isso corrige tudo, um recomeço, uma maneira de renascer. Voltar para casa dos pais, voltar para dentro da barriga grávida, recomeçar. Mas este movimento é demasiado fácil para os predadores. Eles sabem para onde nos dirigimos, eles sabem onde é esse lugar.
M. não percebe isso. Mas depois de acontecer lembra-se de que, quando os jogadores correm, dirigem-se para a baliza, e toda a gente sabe isso. É por esse motivo que é muito difícil marcar um golo. Os jogadores correm como cavalos, os músculos tensos, a latejar, os corpos suam, correm fazendo fintas impossíveis ao destino, criam adivinhas com os pés, correm como deuses imprevisíveis, correm, mas toda a gente sabe para onde. Talvez a baliza devesse estar em lugares diferentes. Assim facilitava-se a fuga em direção ao objetivo. Na nossa vida, pensamos como num jogo de futebol, em direção à baliza, mas a realidade poderia ser diferente de um jogo, pois na vida é possível inventar balizas no ar, ou nos lados, ou na nossa cabeça. E podemos fugir de maneiras diferentes para lugares insuspeitados, para lugares onde ninguém nos poderá
perseguir. Mas raramente o fazemos, e a realidade acaba sempre com a baliza no mesmo lugar previsivelmente cruel, leva-nos a correr para onde toda a gente espera, leva-nos a ser apanhados, leva-nos a sofrer metodicamente, como se houvesse um plano. M. e a irmã e a mãe fogem para casa da avó.
A porta mantém-se fechada. M. olha para ela e tem medo. Por vezes parece-lhe que a madeira respira e a porta aumenta de tamanho, diminui de tamanho. Lembra-se das outras vezes que a mãe fugiu com ela e com a irmã, refugiando-se em casa da avó. E ele aparecia sempre, dava murros na porta, e a casa estremecia, e todas elas choravam. Uma das vezes arrombou a porta. A madeira caiu morta no chão, e ele entrou e levou-as de novo para casa. É sempre assim que acabam as suas fugas.
M. olha para a porta. A madeira parece respirar. A sua mãe está na cozinha com a avó e com a irmã mais velha. A porta estremece, a porta solta os seus gemidos de dor, que é o barulho de mãos fechadas a bater. O pai está do outro lado, a gritar, furioso e com os nós dos dedos em sangue. Ou talvez seja apenas a imaginação dela. M. não tem a certeza de nada do que se passa, está tudo distorcido, como as caras dos nossos sonhos. M. sente as mãos da mãe a pousarem nos seus ombros. Correm as três para a porta de serviço e fogem pelas traseiras do prédio.
Enquanto correm, há gatos a miar, há músicas que escapam das discotecas, há carros, há certezas mortas. M. olha para um gato em cima de um muro e ouve-o cantar. Não um canto como o nosso, mas uns sons compridos, uma coisa animal que se pendura em lugares estranhos, como fazem os papagaios de papel. M. ouve-o enquanto corre agarrando a mão da sua mãe.
Os prédios sucedem-se, uns atrás dos outros, de paredes de papel — que parece cimento e tijolo —, prontos a serem nada. As construções são cada vez mais próximas da ficção. M. não percebe nada disso, vê apenas prédios a precisar de serem novos, como os velhos que jogam à bisca nos jardins. A noite alonga-se, há demasiadas emoções a tornarem o caminho mais comprido, cheio de pedras e buracos.
É tudo repetido: a agressão, a fuga, o voltar para casa. A mãe perdoa sempre, mas nem Deus é capaz disso: ou não haveria inferno. Enquanto se foge há a certeza de que a fuga será definitiva, mas a vida tem maneiras diferentes de ter certezas. Os dias sucedem-se, repetem-se, nascem, morrem. E as ervas fazem o mesmo: nascem, morrem e tornam a nascer. Se a natureza se porta assim, não há motivo para que os homens se portem de outra maneira.
A mãe pensa: Desta vez é para sempre. E, ao contrário das vezes anteriores, acaba por não dizer isto alto.
Quando chegam a uma casa de refúgio da Santa Casa da Misericórdia, nenhuma delas consegue mostrar o seu sofrimento, porque ele é demasiado grande para lhes caber na boca e sair cá para fora. E porque é uma coisa só nossa, como os sapatos deformados. M. tem vontade de lhes mostrar a joaninha de plástico que já não fala, mas esta ficou em casa, no seu quarto, estendida no chão, muda como o urso de pelúcia e a boneca loira. M. diz que os brinquedos deixaram de falar, e uma senhora abraça-a, uma senhora que ela nunca viu. M. chora, mas não é de tristeza, é porque não consegue explicar o que sente. Diz que as mãos das pessoas têm pesos diferentes, umas são mais pesadas do que as outras e fazem chorar. Devia haver uma balança para pesar as mãos. A senhora abraça-a com mais força, e os brinquedos deixaram de falar, repete M. A senhora diz que as pessoas falam e que não conseguem dizer exatamente a sua dor, mas, mesmo assim, é melhor do que não falar de todo. M. começa a gritar, mas não saem sons, saem lágrimas. Fica tonta, com vertigens, fica com o corpo cheio do barulho que não saiu para fora dela.
Os meses passaram e está tudo melhor. Desta vez não voltaram, pois a mãe, agora, já não perdoa sempre.

Isto não é um conto.
Histórias de violência baseadas na vida de seis mulheres
Afonso Cruz et alli
Lisboa, Associação Link, 2012

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Um espaço feliz e tempo também



"Domingo de Chuva"

"Há um cafezinho escondido nas dunas onde fui muito feliz!
Inicialmente, chovia que Deus a dava e fomos obrigados a “perentardecer”, que é como quem diz “passar a tarde que entardece”, aconchegados a uma pequena mesa redonda, protegidos, ela e nós, no interior daquele pequeno abrigo turístico.
Ali, aquecemos as mãos na porcelana quente das chávenas de café. Aquecemos as mãos, porque a alma, essa, vinha ainda febril dos sonhos visionados a dois e dos projetos desenhados ao sol, no dia anterior.
O homem põe e Deus dispõe!
E os projetos sonhados foram apenas argumento dum filme que não foi naquela tarde, porque o bom tempo faltou às filmagens! Só a chuva, teimosa, compareceu, em insistentes takes, turvando-se na atmosfera.
O dourado das dunas era cinza. Às vezes, verde-musgo.
Nessa tarde, elas não seriam divãs para nós, nem roeríamos maçãs, como diz na canção!
Ficámos pelas quatro paredes e, nos intervalos do café, trincámos uma tosta mista com um fino a acompanhar. E falámos.
Às vezes, por silêncios interrompidos por palavras, breves pausas na emoção que nos cingia! E com elas e sem elas, amámos, já que as mãos se aconchegavam ao calor branco da porcelana e os corpos se encolhiam, retraídos pela presença de estranhos (como nós o éramos para eles)! Ali, todos os biombos eram transparentes, bem mais indiscretos do que os da canção.
E nas palavras despimo-nos e fomos nós. Mais do que tu e eu.
Nós!
E fomos felizes sem as dunas, sem as maçãs, sem os biombos…
Numa câmara lenta na tarde, envidraçada, qual aquário a seco na chuva de domingo".

IA
Porto, 19 de fevereiro 2013

Este texto foi-me enviado pela IA. Gostei muito e perguntei-lhe se o podia "postar".
Aqui fica, então. Possa ser uma nota feliz de final de domingo... de sol! 


sábado, 23 de fevereiro de 2013

Passeio de proximidade



Sábado com "feirinha biológica"