domingo, 21 de junho de 2015

Poetas ligados a Coimbra



Ajuda

Porque o amor é simples,
Vale a pena colhê-lo.
Nasce em qualquer degredo,
Cria-se em qualquer chão.
Anda, não tenhas medo!
Não deixes sem amor o coração!

Miguel Torga, in Diário (1945)


Amor como em Casa

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa. 

Manuel António Pina, in Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo. 
Calma é Apenas um Pouco Tarde




Pérola solta
Sem que eu a esperasse,
Rolou aquela lágrima
No frio e na aridez da minha face.
Rolou devagarinho...,
Até à minha boca abriu caminho.
Sede! o que eu tenho é sede!
Recolhi-a nos lábios e bebi-a.
Como numa parede
Rejuvenesce a flor que a manhã orvalhou,
Na boca me cantou,
Breve como essa lágrima,
Esta breve elegia.
                             José Régio

 


FLORES PARA COIMBRA
Que mil flores desabrochem. Que mil flores
(outras nenhumas) onde amores fenecem
que mil flores floresçam onde só dores
florescem.

Que mil flores desabrochem. Que mil espadas
(outras nenhumas não)
onde mil flores com espadas são cortadas
que mil espadas floresçam em cada mão.

Que mil espadas floresçam
onde só penas são.
Antes que amores feneçam
mil flores desabrochem. E outras nenhumas não.


                                                                    Manuel Alegre



sábado, 20 de junho de 2015

quinta-feira, 18 de junho de 2015

A cor da casa



A casa era grande e toda coberta de azulejos azuis. Não me lembro dos desenhos, mas a cor azul continua na minha memória. 
A casa tinha muitas janelas e um portão muito alto. Se o portão estava aberto, as crianças paravam as correrias para olhar os dentros da moradia. E diziam que lindo chafariz. E imaginavam-se a tomar banho no pequeno lago ou a fugir de uma rã mais atrevida.

Mas isto acontecia poucas vezes, porque a casa estava quase sempre fechada, apesar de também lá morarem crianças.
          A cor azul da casa teve a duração da nossa infância. E também juventude. E de uma grande parte da idade adulta em que há o afastamento natural de muitos lugares que a azáfama diária vai trancando ou prometendo para uma visita mais tarde.
Um dia, a casa deixou de ser azul. Veio um grupo de trabalhadores, ergueram-se andaimes, ouviram-se muitas e longas marteladas de manhã até à noite, durante muitos dias. Depois das obras, o sol começou a bater diretamente na pedra que estava por trás dos azulejos que passaram a  cacos que uma carrinha ia  transportando para tudo ficar limpo e organizado.

E assim o azul dos azulejos desapareceu. Como as crianças que há muitos muitos anos lá brincavam por perto.

Mudando os habitantes da casa, o portão manteve-se fechado a maior parte dos dias e das noites.
 As paredes, outrora azuis, têm agora a pedra a descoberto. Bela, por certo, mas dificilmente a vejo, porque, quando lá passo, a casa mantém-se azul, tal como a via na minha infância.