domingo, 27 de novembro de 2022

Um pouco da história de ontem

 

 Antes de mais, obrigada pelas mensagens amigas e carinhosas - tão boas nas histórias dos nossos dias.

Ontem estava sol e foi bonita a tarde com a apresentação de Uma história do João Ratão. Partilho o texto que escrevemos e lemos.

Em breve, partilharei também o vídeo com um excerto da pecinha de teatro.

 

Boa tarde a todos e muito obrigada por terem vindo. Eu e a Maria Clara Miguel estamos felizes neste dia em que partilhamos um livro que escrevemos com tanto gosto, que a Ana Bessa ilustrou de forma tão colorida e criativa, e que teve o apoio da Editora Lugar da Palavra.

Pessoalmente, também me sinto muito feliz e reconhecida pelo apoio, e carinho da minha família e dos meus e nossos amigos.

Muito obrigada também à Dr.ª Teresa Couceiro, que, em nome da Câmara Municipal de Gondomar, gentilmente nos cedeu e organizou este espaço, onde hoje nos reunimos para celebrar os livros, a literatura, para celebrar o teatro, para celebrar a infância…

E muito obrigada também aos jovens e aos colegas que estiveram tão carinhosamente ao nosso lado e ao lado do João Ratão, cuja vida quisemos recontar à nossa maneira, partindo da história que todos nós já ouvimos ou lemos.

 

Boa tarde a todos e muito obrigada por terem vindo. Continuando o que a minha grande e querida amiga Maria Dolores começou por dizer, prossigo: pegámos na história tradicional da Carochinha, mas inventámos a possível infância do João Ratão, com acontecimentos que se vão ligar a um final diferente da história tradicional.

Daqui a bocadinho, vamos poder ver um trabalho de representação de alguns excertos da peça que escrevemos e que alguns estudantes prepararam para todos nós com a ajuda do Clube de Teatro da Escola Secundária de Gondomar, “As três pancadas”, estudantes esses que passo a elencar com muito carinho e reconhecimento: Celso Antunes, Dinis Cunha, Inês Constante, Joana Pereira e Mariana Barandela.

Muito obrigada à professora Albina Dinis, que lhes lançou este desafio a nosso pedido e que, infelizmente, por motivos de saúde não pode estar hoje connosco. Muito obrigada ao ator residente do Agrupamento de Escolas de Gondomar n.º1, António Portela, que os orientou na dramatização de uma passagem do livro que vê hoje a luz do dia.

A Escola, centro de muitas destas sinergias, simpaticamente, cedeu instalações para os ensaios, o António Portela, presencialmente, e a Albina Dinis, à distância, foram orientando os 4 ensaios e do trabalho de todos foi surgindo mais beleza, que se registou em filme no dia 9 de novembro de 2022. Por tudo isto também, o nosso agradecimento à Direção do agrupamento de que faz parte a ESG e que permitiu que esta encenação filmada fosse possível.

 

 

Estamos muito reconhecidas a todos pela vossa colaboração, pelo vosso talento, pela vossa disponibilidade, e por terem revelado tanto empenho.

E nestas palavras de agradecimentos tão merecidos, deixem-me dizer como foi bom e estimulante este trabalho de parceria com a minha querida amiga de longa data, Isaura Afonseca, ou seja, com a Maria Clara Miguel. Foram numerosos e divertidos os encontros de trabalho à mesa de uma pizzaria da marginal de Gondomar, mais ou menos ano e meio antes da Covid 19 fazer parte das nossas vidas. Só afastávamos o computador quando nos dava fome e saboreávamos umas fatias deliciosas de pizza.

Depois voltávamos ao trabalho de escrita  presencial que cada uma de nós continuava ou repensava em casa para voltarmos a aferir o texto em conjunto.

Em maio de 2019, tínhamos o texto concluído e enviámo-lo ao nosso grande amigo Manuel Maria, também ele escritor, que durante muitos anos, foi o responsável pelo Grupo TESG (o antigo grupo de Teatro da Escola Secundária de Gondomar), que nos deu a sua opinião sobre a nossa pecinha de teatro: teria ela pernas para andar em palco? A resposta foi afirmativa. Muito Obrigada, Manel, por também teres contribuído para o nascimento deste nosso João Ratão!

Através da vida que procurámos dar a esta personagem e a outras, quisemos que houvesse alguma graça, mas também valores humanos cada vez mais importantes, como a amizade, o amor, a solidariedade, o respeito mútuo,  a entreajuda, etc

Como a música é essencial numa peça de teatro, sugerimos algumas canções que podem ser cantadas pelas crianças e das quais muitos professores, pais e avós se lembrarão.

Oxalá as crianças e os adultos gostem deste livro, como nós gostámos de o produzir e possam aproveitá-lo em família ou na escola.

Mais uma vez obrigada pela vossa presença e passo de novo a palavra à Maria Clara Miguel

 

Reitero tudo o que a Dolores, pelas duas, já referiu, mas, se me permitem, queria apenas expressar mais algumas breves palavras.

Agradecer antes de mais à minha família pelo apoio que me tem dado e aos amigos que sempre estiveram comigo quer presencialmente, quer à distância.

Quero agradecer à minha parceira de escrita que correspondeu 100 por cento ao meu desafio: “Dolores, vamos fazer as duas uma peça de teatro?”.

Já não sei muito bem os pormenores deste episódio. Lembro-me de que foi ao telefone na sequência de uma das nossas tantas conversas. Lembro-me de que a Dolores se riu e me perguntou qualquer coisa muito parecido com isto. “E vamos escrever sobre o quê?”. E com esta questão, o desafio foi aceite. Depois foi tudo muito rápido. Sei lá, disse eu, talvez reescrever uma história infantil! “É, pode ser. E que tal a história da Carochinha?, sugeriu ela. E foi a partir daqui que nasceu o nosso Ratãozinho feito peça de teatro.

Foram momentos muito felizes junto ao Douro que se prolongaram em casa. Não sei ao certo o contributo que o rio da nossa aldeia, parafraseando Caeiro, teve na criação da nossa história, mas sei que o teve. Nela também há um rio onde um certo Tonico Burrico costuma pescar e junto ao qual há um moinho onde vive uma Joaninha com a sua mãe. Um rio cruzado por uma ponte que o nosso João Ratão atravessa para ir ao moinho comer um rabinho de sardinha, alimento que na história detém um papel fundamental e que cruza os três atos que a constituem.

Mas não vou entrar em mais pormenores. Vamos ver agora o pequeno filme que temos para vós e lançar-vos um desafio.

E se neste Natal nas vossas casas houvesse uma representação de um momento desta nossa pecinha de teatro. Por que não criar momentos de interação entre família, reunindo miúdos e graúdos numa alegre e nostálgica fantasia? Por que não reavivar essa magia que é o Natal?... Por que não?...

Vamos então a este teatrinho feito filme!

Um outro desafio: Quem colaborou neste documento quer dizer algumas palavras?

Mais uma vez obrigada por estarem aqui.

Um feliz Natal para todos e boas leituras!

 


Dois dos atores do vídeo a falar da sua experiência.

sábado, 19 de novembro de 2022

Convite


 

Escrita antes da pandemia, vamos apresentar Uma história do João Ratão, no próximo sábado, dia 26, pelas 16 h, na Biblioteca Municipal de Gondomar.

Digo 'vamos' porque a história foi adaptada e escrita por Maria Clara Miguel (pseudónimo de Isaura Maria Afonseca) e por mim, em bastantes sessões bem dispostas de trabalho, quase sempre à mesa de uma pizzaria à beira-rio, a que se seguia uma releitura individual em casa, para aferirmos, de novo e mais tarde, em conjunto.

Temos agora, o 'nosso' João Ratão em diferentes situações - umas mais comuns, outras menos conhecidas. Esta pecinha de teatro, onde vivem agora, ajuda a contá-las e a cantá-las. 

As bonitas ilustrações são de Ana Maria Bessa e a publicação é da Editora Lugar da Palavra.

Oxalá gostem do livro e as crianças também.

Obrigada.

 



quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Privilégio?


Cada vez gosto mais de ouvir podcasts. Podem-se ouvir quando e onde quisermos e pudermos. Ajudam, na minha opinião, pelo menos os que gosto de ouvir, a conhecer diferentes visões do mundo, com tempo para dizer e explicar.

Numa manhã de um dia destes, deliciei-me a ouvir dois episódios de ‘A beleza das pequenas coisas’, podcast de Bernardo Mendonça. Sentada no sofá, a fazer crochet, ouvi as duas longas entrevistas com duas mulheres tão diferentes mas com vidas de uma imensidão de coisas para partilhar. 

Gostei particularmente da entrevista a Lídia Jorge pela serenidade profunda que põe nas suas palavras, a propósito dos livros que escreve, do que se passa à sua volta, etc, expondo-se, embora com contenção. 

Fiquei com vontade de ler o livro que escreveu a pedido da mãe, já próxima da morte: Misericórdia. A escritora disse ter tido essencialmente a preocupação de lhe dar voz, um modo também de escutar quem é idoso e está num lar.

O episódio seguinte foi com Maria Filomena Mônica, que falou da sua vida e da sua obra num grau de maior de exposição. O pano de fundo foram quase sempre os livros e a vida pessoal e familiar que está por trás de vários: Bilhete de identidade,  Duas mulheres,   etc

A investigadora padece de cancro há vários anos e faz sessões de quimioterapia, que às vezes são longas. E foi bonito o elogio que fez ao marido, António Barreto, que sempre fez questão de a acompanhar.

Ora, a propósito destas sessões, disse que muitas mulheres, no hospital, só falam de doenças e referiu o privilégio que é gostar de ler e de escrever. Partilho deste sentimento. A vida teria bem menos beleza sem a leitura  e sem a escrita. Mesmo destas pequenas coisas.



terça-feira, 8 de novembro de 2022

Do parque infantil à reforma aos 56 anos


Não chovia, ao contrário dos últimos dias e, depois da escola, ainda deu tempo para irmos um bocadinho ao parque:

- Avó, podemos ir ao parque? Os meus amigas vão e eu gosta.

- Está bem, vamos então um bocadinho.

Muitos meninos ficam lá a brincar quando está sol  ou, pelo menos, não chove. Há país e mães que vão conversando, enquanto os veem e esperam. Um pai que eu já conhecia sentou-se próximo e começámos a falar. Como as brincadeiras no baloiço, escorrega, etc iam durando, íamos conversando. Eu não entendia tudo, ele sabia-o e falava de forma clara e pausada (eu estava contente comigo própria porque achava que não conseguia ter uma conversa prolongada em inglês e, afinal, conseguia). Falámos do Brexit, da imigração que muitos não aceitam mas que a ninguém rouba o emprego,  do trabalho que o satisfaz, da família, etc

Como o meu interlocutor era uma pessoa comunicativa, surpreendeu-me o que disse sobre o pai: tinha 56 anos quando se reformou e, nos anos que se seguiram, não tinha quaisquer interesses, para além de estar em casa a ver a televisão. Perguntei-lhe se ele convivia com alguns amigos. Não, só a família. Estranhei pela idade ainda jovem e pelo país cheio de possibilidades.

A tarde ia ficando cinzenta e voltámos para casa, de mão dada porque a rua era populosa. Quantas histórias nela caberiam?



domingo, 6 de novembro de 2022

Um vestido para a boneca

 



Fiz hoje um vestido...

                                                    

                                                  Fiz hoje um vestido

                                           para uma boneca da menina

                                             que também é uma boneca

Ela nela pegou
mostrando como gostou 
e foi assim que o disse:
- Que bonita a vestido
Eu gosta muito, avó
Eu então respondi:
- Não fiz ainda os sapatos
É difícil, meu amor
E a menina
que também é uma boneca
 logo logo acrescentou:
- Tu sabe, avó
Tu faz um de cada cor?

E agora terminei
mas o dia ainda não
Uma boneca tem o vestido 
e da outra boneca
quando regressar de uma festinha 
Quero ver a reação

sábado, 5 de novembro de 2022

Sábado de tarde

 

Na sala, a mãe ajuda a filha a fazer o trabalho de casa. Ouve-se o estímulo por palavras. De paciência e alento. Hoje é sábado, há mais tempo, vê-se a chuva que pinga por todo o lado e as folhas em queda pelo vento de outono amontoam-se no chão molhado.

Pela janela, olha-se o amarelo avermelhado das árvores que vão desprendendo as folhas que se tornaram supérfluas.

À tarde vai-se recolhendo, fria e fechando-se à luz do dia.

Nas casas à volta não se vê ninguém e um carro de vez em quadro reduz o silêncio mas só por instantes. No quarto ao lado, ouve-se uma música suave que não distrai  o silêncio da tarde.

Em horas quietas assim, sossegam as inquietudes, ruídos e pressas de tantos dias. 

Para muitas pessoas, esta serenidade é um luxo, por desábito (não sei se a palavra existe) ou impossibilidade.  

Deixem acreditar que não é luxo falar da beleza destes momentos.

Bom fim de semana para todos.

A beleza de um podcast. Ou da chuva. Ou da música.

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Chão com chuva

 




segunda-feira, 31 de outubro de 2022

‘Jair (e não voltar)...’


 ‘Jair (e não voltar) Bolsonaro’ foi o título escolhido para o Expresso curto de hoje. Um bom título, na minha opinião. Em cinco palavras, diz muito do que aconteceu ontem no Brasil. O candidato-presidente perdeu as eleições, e muita gente deseja que não volte a governar o país. 

Não é habitual que um candidato em funções não ganhe nas urnas, mas aconteceu desta vez, felizmente, ainda que a diferença entre ambos tenha sido pequena: dois milhões de votos. 

Esta vitória foi um bom sinal de que o mundo precisava.

Não conheço o Brasil e não gosto particularmente de Lula pelas histórias a que está ligado, embora deva ter tido bastantes armadilhas. Compreendo que às vezes se tenha de escolher entre o menos bom e o péssimo, quando está em jogo o respeito pelas liberdades humanas ou o retrocesso de um país, a vários níveis.

Oxalá o candidato vencido não reaja em modo Trump, dividindo mais um país que todos dizem ser maravilhoso.

Oxalá o candidato vencedor saiba reduzir as fraturas entre as pessoas, provocadas por estas eleições em que tantos ódios andaram à solta.

Oxalá que, daqui a alguns anos, os candidatos ou candidatas tenham uma postura mais exemplar para governar um país desta dimensão e desta complexidade.

Que bom seria que o mundo começasse, desde já, a respirar melhor.


Contrastes

 



domingo, 30 de outubro de 2022

Em véspera de Halloween

 Em véspera de Halloween, o metro ia cheio. Quase ninguém de máscara, ainda que muitos rostos (e não só) tivessem artifícios da época.

Alguns muito bem desenhados.

Uma rapariga tinha uma teia de aranha junto a um olho. Um rapaz exibia uma mancha de sangue numa das faces. Outro mostrava uma cicatriz ainda com sangue no pescoço, vestígios de sugadela de vampiro.

Noutra rapariga, do cabelo comprido e forte e bem escovado, saiam dois corninhos vermelhos. Um rapaz, de mochila e laço amarelo no pescoço, olhava no vazio e sorria também no vago. Um jovem, bêbado, abraçava-se à companheira para não cair...

A um canto do metro, uma rapariga, de blusa apertada e de grande decote, chorava discretamente, limpando os olhos com o lenço que segurava na mão. Alguns passageiros olhavam-na em modo rápido.

Não havia tempo nem vontade para mais nada. Era véspera de Halloween, hora de regresso a casa para muitos ou de ida para festas para outros. 

Tudo mais ou menos desenhado. 

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Será que se pode aprender?

 

Tenho, de certeza, idade para já ter aprendido, mas, apesar de algumas tentativas, acho que não o consegui.

Quando falo de alguma coisa que ainda vai acontecer, digo muitas vezes: se Deus quiser, conto, está previsto... Deve ser pessimismo ou não confiança no futuro e na previsibilidade das coisas. Ou o problema está em mim e já vem de muito longe?

E isto traz algum receio, alguma incapacidade de ser feliz (ainda que sem angústias) e de abrir bem as portas à novidade de cada momento, ao gosto que é viver e poder concretizar o que se pensou. Por exemplo, se ando de avião, penso em possível trovoada ou turbulência. Só quando estou prestes a chegar ao destino é que volto a acreditar que o tempo que se aproxima pode algumas alegrias esperadas.

Para além disto, que é um minúsculo grão de areia em areal imenso que é o mundo, conhecer um pouco do que se passa quanto à fome, guerra, violência, solidão, corrupção, etc em todos os continentes, retira qualquer ilusão de se ser feliz, a não ser que não se olhe para o lado. E os nossos olhos não foram criados para olhar numa única direção.

Longe de mim pensar que tudo é mau, que tudo está mal, mas dava jeito conseguir ser feliz, e de forma sustentada (não me refiro a quem diz viver num céu de infinita felicidade, que é um estado no qual não confio).

Será que se pode aprender? Ainda?


quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Nada de especial

 

Hoje, a chuva vai caindo, miúda e insistente. Logo que pude, abri o computador. Queria escrever sobre o momento, embora sem nada de especial para dizer. Esta necessidade é em mim recorrente.

Na cozinha, ferve, devagar, a sopa de legumes variados. Oiço apenas o exaustor e os carros a passar na rua, um som de rodas rápidas sobre o piso molhado.

Estou longe da janela da rua, por isso não vejo ninguém a passar e também não deve haver ninguém porque não oiço vozes.

Perto de mim, o soninho dele é silencioso, macio e quente. Olho-o de vez em quando para confirmar que está bem.

O quarto está mais ou menos em ordem. Nunca está completamente em ordem. Nunca consegui que a casa estivesse sempre em ordem e também não devo vir a conseguir. Outras coisas me importam mais.

Há pouco, vendo noticias online, soube que Celso José da Costa, brasileiro, foi o vencedor, este ano, do prémio Leya. Ele desejou que, no próximo domingo, Bolsonaro não ganhasse as eleições, como prova de vitória da educação. 

Oxalá.

E dou comigo a pensar na importância efetiva da educação, para que haja mais harmonia e justiça no mundo, e também no hobby feliz e catártico que é a escrita para tantas pessoas e uma profissão, ou ocupação a tempo inteiro, como se queira, para algumas. E o grupo de autores premiados é ainda menor. A alegria que estes sentem pelo reconhecimento do seu talento e trabalho deve ser imensa, para além do dinheiro que recebem, é claro, e que é também uma boa recompensa.

Mas nós, os que escrevem por gostosa necessidade, muitas vezes quase diária, e que nunca receberão um prémio, também sentimos a alegria boa de poder usar as palavras e comunicá-las nos meios que, democraticamente, temos ao nosso dispor, dizendo um olá ou partilhando um sorriso, mesmo silencioso. Estamos cá e não estamos sós.

E os momentos, ainda que banais, tornam-se melhores ainda que simples.

Como neste dia sossegado em que a chuva cai, miúda, insistente e fecunda.


segunda-feira, 24 de outubro de 2022

A melhor cidade do mundo

 

No dia seguinte, fomos ao British Museum.

Quando saímos, disse-me com voz de encantamento:

- Gostei tanto, Saturnino, das exposições. Que bom estarmos os dois aqui e agora, sentindo tanto amor um pelo outro. Dizem que Paris é a cidade do amor. Para mim, é Londres.

Fiquei extasiado, abracei-a e o British Museum passou a ser o melhor museu do mundo.

No penúltimo dia em Londres, tomámos o english breakfast no hotel e começámos a programar o sábado. Como gostava muito de falar inglês, ela optou por dizer saturday, começou a rir-se  e disse com desvanecida ironia:

- Como não gostas de Saturnino, posso chamar-te Saturday!, pronunciando o tê como se fosse dê.

Não achei piada à graçola e disse-lhe que bastava de picardias. E que ela não gostava de ninguém para além de si própria. 

Continuou no mesmo registo de zombaria, dizendo que a ela lhe poderia chamar Sunday, porque era bem mais luminosa do que eu e que, felizmente, como os pais sempre a tinham amado, não lhe tinham posto um nome que tolhesse a sua alegria à nascença. Isto tudo enquanto engolíamos o resto do café azedo e já morno e terminávamos um sumo deslavado de laranja.

De repente, disse-me com voz risonha de menina a pedir colo depois de birra insuportável:

- Desculpa, Saturnino, estava a brincar.

E logo me recordou que tínhamos combinado andar na Roda Gigante, para vermos Londres bem do alto. Fomos a pé, ela deu-me a mão e, com encantamento, ia partilhando comigo o que ia vendo.

Quando entrámos na cabina, abraçou-me, dizendo:

- Adoro-te, Saturnino.

Eu abracei-a, mas como pressentiu alguma desconfiança da minha parte (eu começava a ter consciência da efemeridade dos seus gestos e das palavras corrosivas em tantos e repetidos momentos), afastou-se um pouco, criticando a minha insegurança, a não entrega ao momento, o facto de parecer que estava sempre à espera do pior e de não desfrutar consistentemente do que de bom a vida nos oferece a cada instante.

Agarrei-a pela cintura, abracei-a e pedi-lhe que vivêssemos, então, aquele momento bem juntos, como se fosse o último.

-  I love you, Saturnino, disse ela.

Ao almoço, fomos a um pub comer fish and ships com cerveja local.

O tempo estava fresco, o céu com muitas nuvens, mas, mesmo assim, preferimos ficar no exterior, saboreando os petiscos que nos iam pondo na mesa de madeira, de forma efusiva.

Aconchegou a si o casaco e achei que o rosto dela ficava ainda mais bonito com o rosado que a aragem fria lhe punha na pele. O cabelo esvoaçava e ela deixava-o em liberdade.

Eu disse-lhe que ela era linda. Retribuiu-me, pondo a mão dela sobre a minha e dizendo:

-  És o homem da minha vida, Saturnino.

Pela primeira vez não lhe respondi, o que estranhou, mas vivemos as restantes horas do dia sem discussões nem azedume.

À noite, continuava deslumbrante, alegre e meiga. Depois do jantar, ela quis  ir beber um copo a um pub que tinha visto numa Time Out, no hotel. A distância era significativa. Disse-lhe que estávamos cansados, que tínhamos de nos levantar muito cedo no dia seguinte e que o melhor seria passarmos o serão mais perto, já que não faltavam bares e pubs acolhedores nas imediações.

Lançou-me um olhar feroz, acusando-me de não saber ultrapassar os meus constrangimentos e sobretudo os meus traumas que me impediam de apreciar a vida em todo o seu esplendor. E que, de facto, a escolha do meu nome tinha sido premonitória. Fomos para o quarto, ouvindo-se apenas os nossos passos no corredor do hotel.

Quando acordei, ela surpreendeu-me com um desnudado abraço largo e lânguido:

-  Amo-te tanto, Saturnino.

 Estendida na cama, com volúpia, começou a rir-se dos próprios caprichos, de ser tantas vezes infantil e imprevisível, chamando-me, com os braços estendidos, espreguiçadamente, Sa-tur-ni-no. Como a um gato que não se quer ver fugir pela janela.

Foi quando ela me ouviu dizer, atónita e descrente da minha convicção:

-  Quando chegarmos a Portugal, o melhor para ambos é tratarmos da nossa separação.

Com mais segurança do que habitualmente, fechei a pequena mala.

E Londres passou a ser, de facto e para mim, a melhor cidade do mundo. Cinzenta, perplexa, mas liberta.