sábado, 12 de julho de 2025

O filme que já era e uma crónica que chegou

 

Para o meu leitor (ou leitora, não sei) que, com alguma razão, me apontou preguiça por não publicar há alguns dias!


Há muito que não ia ao cinema. Um grupo de amigas convidou-me e logo disse que sim. E acrescentei: desta vez não vou dar nega.

O filme escolhido foi uma comédia divertida francesa. Como pede o verão e o tempo (com coisas tão sinistras) que vivemos. E também havia, felizmente, coisas boas para festejar, para além da amizade.

O filme era às 13,30. Chegámos um pouco apressadas à bilheteira do Alameda. Pois, mas o filme já não estava em exibição! Não teve saída - disse o jovem funcionário do outro lado do balcão. Ai o preconceito dos filmes franceses - dissemos nós.

Olhámos o painel dos filmes - ou não nos interessavam ou o horário não nos convinha. E se fôssemos à Arcádia tomar alguma coisa e pôr a conversa em dia?! Foi o que fizemos e que bem que soube! 

E da conversa, que é como as cerejas, resultou também o envio, no dia seguinte, desta crónica de Elena Ferrante (obrigada, Idalina!) de que gostei muito e que agora também partilho. Oxalá gostem também.


«Medos                                                                                     27 de Janeiro de 2018

 

Não sou corajosa. Tenho medo sobretudo de qualquer coisa que rasteje, e acima de tudo de cobras. Tenho medo das aranhas, dos carunchos, das melgas e até das moscas. Tenho medo das alturas e, portanto, dos elevadores, dos teleféricos, dos aviões. Tenho medo da própria terra onde assentamos os pés quando imagino que poderia escancarar-se ou, devido a uma avaria imprevista no mecanismo universal, como na lengalenga que recitávamos em pequenas enquanto fazíamos uma roda (a roda a girar, o mundo a tombar, tomba tomba o chão, todos para o chão – como me aterrorizavam estas palavras). Tenho medo de todos os seres humanos quando se tornam violentos: tenho-lhes medo se berram, se insultam, se ostentam desprezo, cacetes, correntes, armas brancas ou de fogo, bombas atómicas. E contudo em rapariga, em todas as ocasiões em eu era preciso ser-se destemida, eu obrigava-me a ser destemida. Depressa me habituei a temer menos os perigos reais ou imaginários e mais, muito mais, o momento em que os outros ou as outras reagiam como eu, paralisada, não conseguia reagir. Assim, as minhas amigas gritavam por causa de uma aranha? Pois bem, eu vencia a minha repulsa e matava-a. O homem que eu amava propunha-me férias na montanha com os seus inevitáveis voos de teleférico? Eu ficava a escorrer suor, mas lá ia. Uma vez, com uma pá e uma vassoura, aos gritos, pus fora uma cobra que o gato me trouxera para debaixo da cama. E, se alguém ameaça as minhas filhas, a mim, qualquer ser humano, qualquer animal não agressivo, venço a vontade de fugir. A opinião corrente é que quem age como eu tenazmente me treinei a reagir tem verdadeira coragem, a coragem que consiste precisamente em vencer o medo. Mas não estou de acordo. Nós, as pessoas timoratas-combativas, pomos acima de todos os nossos medos o medo de perdermos a estima por nós próprias. Atribuímo-nos imodestamente um valor muito grande e, para não termos de nos confrontar com uma imagem degradada de nós próprias, somos capazes seja do que for. Em suma, repelimos os medos não por altruísmo, mas por egoísmo. E, por isso, devo reconhecê-lo, tenho medo de mim. Sei desde já há algum tempo que posso exceder-me e portanto estou a tentar atenuar as reacções agressivas a que me forcei desde pequena. Estou a aprender a aceitar o medo, e até mesmo a mostrá-lo com autoironia. Comecei a fazê-lo quando compreendi que as minhas filhas se assustavam se me viam defendê-las com exagerado ardor de perigos pequenos, grandes, imaginários. Talvez devamos ter acima de tudo medo da fúria das pessoas aterradas.»

                                               Ferrante, Elena, A Invenção Ocasional, 2019, Relógio D´Água, pp. 13-14.


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