sexta-feira, 5 de julho de 2024

Quando regressava a casa, é que era um sarilho

 

O dr Esticadinho chegou a casa e logo se estendeu na cama, ou melhor, deitou-se depois de ter tirado o fato, que pendurou, meticulosamente, no cabide que era só dele e aí de quem o tirasse daquele lugar. Se tal acontecesse, os berros tremendos até faziam tremer cá fora.

Deitado por cima da cama, em cima da coberta macia e bem esticada, como sempre exigia, o seu corpo estreito e magro lembrava um quase esqueleto com alguns tufos de pelos escuros a sair da pele seca e branca. Perguntou o que era o jantar. Sardinhas fritas com arroz de feijão, respondeu Nilda, já a fazer o estrugido. 

- Os fritos fazem-me azia. Até o cheiro me incomoda.

E foi resmungando que já não bastava o barulho das crianças, a gritaria da rua, o falatório das vizinhas, a loiça esbotenada, não ter mimos como precisava… 

Se Nilda reagia, ele exaltava-se; se ela se calava, ele exaltava-se na mesma.

Nilda sabia onde ele passava quase todas as tardes, depois que veio para casa por invalidez. Nesse dia, ele até rejubilou. Ia ganhar muito pouco, é certo, mas não tinha de aturar o patrão nem os colegas, nem tinha de se levantar tão cedo, nem andar nos transportes públicos em horas de ponta. O dinheiro ia esticando, porque as vizinhas davam roupa para os filhos, ele tinha dois fatos que duravam muito porque tratava muito bem deles. Sobre a roupa de Nilda não sabia nem muito nem pouco, porque não tinha tempo nem vontade para reparar, mas devia estar mais ou menos. Nas poucas saídas a dois, as pessoas olhavam-na de alto a baixo, o que o incomodava e levava a esticar-se ainda mais, porque gostava de ser ele o centro das atenções. 

Para a comida, o dinheiro também ia dar, porque em casa só entrava comida barata. O que valia era o sr Salomão, da família da Rosarinha, que vivia sozinha na casa alta e de pedra. Ele tinha um barco de pesca e, quando a faina corria bem, trazia peixe e distribuía-o pela aldeia. As mulheres vinham com as suas baciinhas e levavam-nas cheias para casa. Tinham peixe para várias refeições. Era pena era ter de ficar dentro do mosqueiro porque o frigorífico era luxo dos ricos. Também os lavradores eram generosos e davam hortaliças dos seus campos, em tempo de fartura.

Mesmo assim, às vezes, andava desconsolado e um dia comprou um bom bife só para ele, sem dizer nada em casa. Levou-o para a Casa do Sol e pediu que o fritassem com batatas e ovo a cavalo. Consolou-se com a companhia e com o pitéu. O pior foi a nódoa de gordura que lhe caiu na camisa, apesar de ter posto um guardanapo bem preso ao pescoço. Raisparta!

O prazer fica sempre aquém do desejado, lamentou, já sozinho à mesa.


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