domingo, 7 de julho de 2024

O que é que o Nequita me quererá dizer?


Quando o dr Esticadinho saiu da camioneta, deu logo de caras com o Nequita,  bem visível ao longe, com os botões da camisa apertados até ao pescoço, cabelo  com brilhantina e risca vincada, calças pretas, uma grande cruz ao peito e um missal preso na mão que fechava para dentro junto ao coração. 

- Então, Nequita, o que se passa?

- Preciso de falar consigo, mas sem ninguém à nossa volta.

- Isso aqui é mais complicado, mas diz lá, rapaz.

Nequita, olhando-lhe a nódoa da camisa, perguntou:

- O que lhe aconteceu? Foi comer alguma francesinha e descuidou-se? 

- Nada disso, mas diz lá o que precisas porque tenho mais que fazer.

- E se fôssemos caminhar um pouco para conversarmos mais à vontade?

- Caminhar? A esta hora e com a camisa neste estado?

- Vamo-nos sentar então aqui no muro e assim ninguém nos ouve.

- Mas é segredo? 

- Tem a ver com coisas do céu, mas também da terra!

- Diz lá, então, enquanto tenho paciência. 

- Hoje ouvi o Sr padre falar de um livro e de famílias desavindas.

- Ó Nequita, deixa-te de palavras difíceis e  de histórias e vai aos finalmentes. 

- Tenho visto que a Sra Nilda anda desanimada e você nunca está em casa e, se está, está a dormir.

- E o que tens com isso? Ando cansado, rapaz, e a dormir também não faço despesa. Mas, vamos lá ver, Nequita, e se tu te metesses na tua vida a ler os teus missais e a passear a tua cruz?

- Você também tem a sua, que eu sei.

- Mas não ando a carregar com ela ao pescoço pra toda a gente ver.

Nequita  parou uns instantes, olhou o chão, voltou a olhar  para o dr Esticadinho e disse:

- Tem de falar mais com a Sra Nilda, dar-lhe mais atenção e também aos seus filhos. 

- O que é que queres dizer  com isso? Só não te chamo nomes nem te deixo a falar sozinho, porque tenho grande consideração pela tua madrinha,  a Rosarinha.

- E que me tem ajudado muito e, por isso, vou seguindo este caminho que me vai iluminando e que sei que é o que ela quer para mim.

- Tiveste sorte. Muito mais sorte do que eu na vida. Pronto, era este o teu sermão? Então, adeus e amanhã continuamos.

- Sei que não lhe vou pôr a vista em cima, a não ser que eu vá ao Porto, à Casa do Sol.

- Ó Nequita, estás muito bem informado. 

- Tudo se sabe e para a Sra Nilda é um desgosto.

- A minha mulher não é para aqui chamada. Se me fizeres outra espera como a de hoje para sermão e missa cantada, pensa bem no que te vou dizer, até o missal vai rebolar pelo chão.

- Vá, vá, então, mudar de camisa e lavar as suas máculas. Seja você a lavá-las porque a sujidade vem de si. E pense no que eu lhe disse.

Nisto, a Rosarinha saiu da mercearia, a que toda a gente chamava venda, e ficou a olhar para eles.


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