quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Porque hoje é dia 1 de novembro

 

Desde pequena que oiço: 'estas flores são boas para enfeitar'.

Aqui, o verbo 'enfeitar'  dispensa acompanhamentos quando se sabe que se trata de pôr flores no cemitério. Conheço pessoas que o fazem todas as semanas e ainda passam por lá de vez em quando para acrescentar água se o tempo é de calor. Atualmente, já se recorre muito aos catos e suculentas que duram muito mais do que as flores frescas. Também se veem as frias e hirtas flores de plástico ou as que vão tombando de velhice e secura, porque nem sempre há disponibilidade de tempo nem de dinheiro para comprar flores acabadas de colher. 

A primeira vez que vi um cemitério fora de Portugal -  estava eu com a minha irmã - foi  o cemitério do Père Lachaise, em Paris. Poucas campas lá vi com flores frescas (a não ser nas sepulturas de ídolos com muitos fãs que os visitavam e não os esqueciam); muitas tinham vasos com plantas e em muitas outras jaziam artísticas pedras esculpidas e antigas. Para mim, com os olhos rurais de ver sempre tratar de flores para o cemitério, a ausência delas parecia uma prova de abandono a quem a vida também abandonou.

Agora, é claro que já não penso assim, embora continue a seguir alguns hábitos da minha mãe e das minhas tias. Uma delas dizia que havia mais de cinquenta anos enfeitava todas as semanas o jazigo da família. 

E, quase sempre, com as flores que ela própria cultivava.

Hoje, logo cedo, fui ao cemitério, porque cá este feriado é de celebração dos defuntos. Não havia ainda quase ninguém, crisântemos de muitas tonalidades  reluziam com abundância e o silêncio permanecia. Algumas pessoas chegavam com arranjos de flores ou soltas para serem colocadas nas jarras.  

Por moda, por hábito, por saudade, por homenagem, etc., o cemitério estava mais  bonito. Quem lá está merece-o, com certeza. Muitos dos que o visitam far-se-ão ouvir de muitos modos, onde também cabem as vozes e os sorrisos. É bom quando assim também se festeja a vida. Mesmo tendo na lembrança que o que aconteceu a quem lá fica também um dia acontecerá a 'todos, todos, todos.'


6 comentários:

  1. Bom dia
    Todas as semanas ponho flores no cemitério mas neste dia, capricho um pouco mais.
    Se estou certo ou errado , eis a questão .
    Faço-o e sinto-me bem e pouco me importo que me critiquem .
    Tenho noção que esta ação não vai alterar em nada no mundo do além, mas também sei que me sinto mais feliz por saber que alguém que já partiu adorava flores .

    JR

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  2. É um dia para lembrar os mortos, ainda que a alguns a gente traga sempre connosco e façam parte do eu interior, acompanham-nos a vida. Por exemplo, não sabemos bem em que medida somos nós a afirmar ou negar isto ou aquilo. Porque nunca somos apenas nós. São também eles que negamos ou afirmamos; é também o acaso da sorte ou da má sorte que influencia, é a circunstância em que estamos mergulhados e de que não podemos nem sabemos alhear-nos. E é isto a livre determinação do homem.
    Mas é O Dia dos Mortos, dia de Todos os Santos. Ainda que, "Todos os Santos" estejam tanto entre os vivos como nos mortos. Acredito neles, há e houve gente que se distingue por essa capacidade de ser bom. Gente que não fica para a história mas se distingue (alguns ficarão na história, sim). Comete erros e vive como os mais, mas é bastante melhor que eles. Esses, são os Santos. Quero pois crer que o dia de Todos os Santos é mesmo de todos: vivos e mortos. Os que são apenas na memória que deixaram pelos seus actos e boa influência nos outros, distinguem-se por terem completado a etapa que lhes calhou e escolheram. Mas acredito na santidade dos vivos. Essa é a minha esperança na salvação do mundo - espero nos anónimos e na sua bondade e compaixão.
    Quanto aos crisântemos, sei, são as flores dos mortos, tenho alguns no quintal. Desta vez coloquei-os quase todos em campas rasas e anónimas, esquecidas de mão humana; ou, quem sabe, a quem já não resta família. Chovia se Deus a dava e nem olhei a nomes ou foto. Mas há aquele verso de Brel "De chrysanthèmes en chrysanthèmes" da canção J'arrive e que é tão bonita como triste e real. Para ele e todos nós, como afirma a Maria Dolores.
    Não me assustam os mortos e passo no cemitério quando me lembro ou tenho tempo. Como já disse, os meus mortos andam comigo e são eu, creio que dispensava o cemitério se não fora o amor que lhes consagro e o facto de ter ali o que deles resta e respeito. Tudo o mais é vão.

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  3. Bom dia, Bea
    Obrigada por este seu texto. Bela e humana reflexão. É difícil até responder à letra.
    Realço apenas algumas ideias.
    Como gostei da santidade de seres humanos anónimos que não são perfeitos, sabendo e assumindo que não o são, embora tenham consciência do que se passa à sua volta.
    Também não me assustam os cemitérios e, visitados em horas de mais silêncio e sossego, até nos ajudam a pensar na vida e não só na morte.
    E pôr flores do seu quintal em campas de pessoas esquecidas, meu Deus, que gesto sublime. Devo ser bem mais egoísta, porque nunca o fiz. Pode ser que o venha a fazer.
    E peço desculpa por ter dado algum destaque - não tanto como o texto merecia - ao seu comentário. Acho que referir e elogiar coisas boas - ainda que pareçam simples - é cada vez mais necessário para todos nós, porque falamos tanto do que está mal - e muitas vezes está - e tão pouco de atitudes mais positivas.
    Um abraço, Bea, e bom fim de semana.


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  4. Obrigada, Maria Dolores. Mas não fui expressamente pôr flores em quem por este ou outro motivo não é lembrado. Na verdade levei-as para os meus, mas achei desnecessário, já os tinha florido no dia anterior. Por isso escolhi outros lugares e ali as deixei. Não sou a altruísta que julga :).

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  5. Foi altruísta, sim. E, sabe que fiquei com vontade de pôr uma flor numa campa térrea, por onde passo quando vou ao cemitério, e onde nunca deixei nenhuma, mesmo que me sobrem.
    Um dia com flores bonitas e alegres, Bea.

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