sexta-feira, 9 de julho de 2021

'Aniversário'


'No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,

E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

De ser inteligente para entre a família,

E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,

O que fui de coração e parentesco,

O que fui de serões de meia-província,

O que fui de amarem-me e eu ser menino.

O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...

A que distância!...

(Nem o acho...)

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,

Pondo grelado nas paredes...

O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),

O que eu sou hoje é terem vendido a casa.

É terem morrido todos,

É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!

Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,

Por uma viagem metafísica e carnal,

Com uma dualidade de eu para mim...

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...

A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,

O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado —,

As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!

Não penses! Deixa o pensar na cabeça!

Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!

Hoje já não faço anos.

Duro.

Somam-se-me dias.

Serei velho quando o for.

Mais nada.

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...'

 

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).


 

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Diz o autor: 'Uma quarentena é...'

  

Obrigada, Idalina, pela partilha de textos que lês. Este excerto,como os demais que envias, é maravilhoso. E tão atual e convoca temas tão diversos. Nem sequer falta a lavagem das mãos  ou o amor. Tanta coisa no fio destas palavras. Belas e bem ditas.

 

“Uma quarentena é uma prisão com pessoas de quem não nos podemos aproximar, é um bailado a dobrar, o ballet do demasiado perto. A distância agora é tempo. E paciência. A paciência é o tempo com pessoas dentro. Uma epidemia é o oposto do amor, essa infeção a dois, essa alegria contagiosa que não mata. O amor é o contrário da multiplicação lenta de uma doença absoluta, oferecida em silêncio a uma multidão de distraídos.

Tento uma reflexão profunda sobre o amor. Reduzo-a a uma palavra apenas, e essa palavra não é amor. A falta de sinónimos atormenta-me, decido parar. Pensar com uma palavra só não é pensar.

É o fim do mundo, mas um fim do mundo a acontecer tão lentamente que dou comigo a dizer «é o fim do mundo, é o fim do mundo», várias vezes, as palavras saem-me da boca sem necessidade de eco. Ao contrário, a boca de Mariana abre e fecha várias vezes, como uma porta, e eu imagino o coração a sair-lhe pela boca, mas não, em vez de lhe subir à boca, o coração desce-lhe aos pés e Mariana pisa o coração contra a madeira castanha do chão.

Pela primeira vez, lavo as mãos rigorosamente. Sinto-me um procurador romano na Palestina, obcecado com a lavagem das mãos. Não é uma sensação boa.

Lembro-me da nossa chegada a Chartres, à catedral. Os pilares e os arcos subiam em esqueleto à altura de doze andares, o número exato dos apóstolos. O lugar parecia uma nave medieval preparada para nos elevar às maravilhas de um paraíso espacial. Nos vitrais viam-se camponeses e imensos artesãos. Carregadores de água, padeiros. O povo erguia-se como um e a cores para esse paraíso alto, com uma felicidade de comércio. O silêncio, uma bênção; as janelas, joias; a cor dos vitrais, um sinal vindo até nós da porta de entrada do paraíso.”

José Gardeazabal, Quarentena, Uma História de Amor, Companhia das Letras, 2021 

 

 (José Gardeazabal nasceu em Lisboa, onde vive, em 1966)

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Foi como se

 

Foi como se entrasse de novo naquela casa. De paredes velhas mas retocadas com paciência durante longuíssimos anos. De telhado com ninhos vigiados, para que não deteriorassem as telhas nem entupissem os canos.

Foi como se parasse no telheiro da casa e revisse os molhos de redondas cebolas penduradas e prateleiras cheias de batatas e alfaias antigas no chão térreo. Ah! E como se olhasse a coluna de granito, como um esteio, com vasos viçosos à sua volta, a segurar os barrotes grossos mas fragilizados do palheiro.

Foi como se encontrasse as habitantes da casa a regar as plantas pela fresca das manhãs, a descansar nas tardes de estio, em recolhimento dos dias invernosos.

Foi como se visse perto a cadela da casa que, a correr, amedrontava. Ou pressentisse o agitado pato brincalhão a querer roubar-me o pão, quando eu era criança. Ou os fofos coelhos. Ou as ninhadas amarelinhas de pintos seguindo a segura mãe galinha...

Foi como se sentisse de novo o cheiro dos vegetais acabados de colher e logo saboreasse alguns, mesmo crus.

Foi como se cada coisa daquela casa me trouxesse as mesmas emoções e sensações boas e diferentes.

Foi como se aquele sonho fosse uma visita feliz àquela casa. Ainda que breve.

 

domingo, 4 de julho de 2021

Leitura quente

 

Ultimamente tenho lido alguns livros e é um prazer para mim poder fazê-lo. Assim como lê-los do princípio ao fim. Às vezes, deixava-os a meio, mas agora tento não o fazer. Assim, fica mais completa a história que é contada, e também o modo como está escrito, o que também considero muito importante.



Pois bem, acabei de ler O processo Violeta de Inês Pedrosa. Não posso dizer que o romance me encantou, mas gostei de muitas das suas 230 páginas. Nelas, é contada a história de Ildo e Violeta, um par amoroso, mas não convencional. Paralelamente, cruzam-se diferentes realidades: vícios frequentes no jornalismo, mães solteiras que vivem para os filhos, relação pais-filhos, desamor no casamento, bulying, racismo, amor entre pessoas com idades muito diferentes, etc.

Talvez a autora/narradora tenha tido o desejo de concentrar e explicar muitos factos atuais, o que nem sempre se integra no texto da forma mais natural, embora acrescente informação face à história narrada e que decorre nos anos oitenta do século XX.

 

Deixo um pequeno excerto de uma das páginas finais do livro.  Ildo fora criado com a mãe. O pai, um toureiro famoso de quem herdou a mesma paixão, abandonara-o para viver a sua vida de prazer e glória. No excerto, Ildo já atingiu a maioridade e o diálogo com o pai era mais frequente.

 


Boas leituras e bom domingo!

sexta-feira, 2 de julho de 2021

Na cidade com mar ao fundo

 

Fui à cidade com mar ao fundo

Onde se ouvem pregões:

'Sardinha do nosso mari',

grita-se a plenos pulmões.


E a voz da peixeira

apregoava o seu cabaz;

eu invejava aquela força

de que gostava  ser capaz!


Estava eu a pensar nisto

e então que vejo eu?

No carro, havia uma multa

e um furo no pneu.


Eu ouvia a apregoar

a frescura do belo pescado,

mas, como ia eu mudar

aquele pneu furado?

 

Uma cidade em obras

que gosta bem de multar!

Podiam compreender

como é difícil estacionar.

 

Mas se pago o seguro

que dele tire vantagem.

Por isso pedi ajuda

à assistência em viagem.

 

Logo hoje que queria 

ir ao fundo ver o mar,

tive de estar à espera

que o pneu viessem mudar.

 

E enquanto esperava,

eu ia pra mim pensando:

a gente pensa uma coisa

mas faz outra mais urgente

porque assim é o nosso mundo;

o que vale é que o mar,

mesmo sem apregoar,

continua lá ao fundo!

 

quarta-feira, 30 de junho de 2021

Com elas, também se aprende a voar.

 

Postais e texto enviados pelo Clube das Histórias

 

'As bibliotecas são como aeroportos. São lugares de viagem. Entramos numa biblioteca como quem está a ponto de partir. E nada é pequeno quando tem uma biblioteca. O mundo inteiro pode ser convocado à força dos seus livros.

Todas as coisas do mundo podem ser chamadas a comparecer à força das palavras, para existirem diante de nós como matéria da imaginação.

As bibliotecas são do tamanho do infinito e sabem toda a maravilha.”

 

Valter Hugo Mãe





terça-feira, 29 de junho de 2021

A peça no exaustor

 

Com a casa fechada, o exaustor tinha estado parado durante longos meses. Ela premiu o botão para ver se funcionava e logo ouviu um forte ruído. Parecia que havia uma peça solta. O melhor era chamar alguém que entendesse da matéria, não sem antes experimentar outra vez. O mesmo ruído forte de peça solta. Tinha quase pavor a eletrodomésticos sem uso e com barulhos esquisitos. Ligou para o número que tinha.

Veio o técnico. Olhou, observou, desmontou uma parte mas o ruído continuava. Tem que ter paciência. O exaustor está bom. É falta de uso.

No dia seguinte, ela ligou de novo o exaustor. Outra vez a mesma peça aparentemente solta e o forte ruído. Tem de haver uma razão. O melhor é chamar outro técnico que saiba mais do assunto.

E veio. Desmontou, desaparafusou, levantou, espreitou... Não é peça solta do exaustor, não. É isto. E mostrou o esqueleto ressequido de um pássaro.

Mais valia que fosse uma peça solta, disse ela horrorizada.

Ele sorriu, com a indiferença da habituação.

 

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Fotos

 

Conheço várias pessoas que não gostam de ver fotografias antigas. Ou por saudade de outros tempos, ou por aversão a dias vividos, ou por questões que só cada um conhece...

Quando vejo álbuns antigos, habitualmente acho que as pessoas que conheço eram mais bonitas. E mais magras. E mais ágeis. E mais risonhas. E mais felizes. E mais saudáveis.

Porém, quando vejo as fotos daqueles que amo com ar triste, não consigo demorar nelas o olhar e é grande a vontade de rasgar aquele papel grosso e, quase sempre brilhante, que gravou o momento, sem dó nem piedade, retirando-lhe o brilho da alegria.

Como se fosse possível rasgar pedaços menos felizes do passado e esquecê-los, pondo-os no contentor.

Pensando que é possível fazer a reciclagem do tempo e de muito que ele traz.  Ou já trouxe.

 

domingo, 27 de junho de 2021

Gostava de os entender. E a elas também.

 

Quando os oiço logo de manhã cedo, ou em fins de tarde perfumados, cansados e mornos, fico a ouvi-los. São tantos os pássaros. Vejo uns, oiço outros, alguns escondem-se entre a folhagem irrequieta das árvores.

Se comunicam, o que dirão eles? Exprimirão alegria. Ou tristeza. Ou nem uma coisa nem outra. Ou discutem. Ou zangam-se. Ou rejubilam. Ou namoram. Ou cantam somente porque gostam e têm voz para cantar. Ou por qualquer razão que escapa à vista e ao ouvido dos humanos.

Saltam, voam, brincam... Sempre a emitir sons. A chilrear. A gorjear. A piar. A pipilar. A trilar. A trinar.

Gostava de os entender.

Mas como será possível, se até entender as pessoas é tão difícil?!

 

 

sábado, 26 de junho de 2021

Com mar ao fundo

 

Chegou  à pequena cidade com mar ao fundo. Levaram-na lá  limpezas de antes das férias de verão. Na cidade, havia obras e as casas eram invadidas pelo pó. Tal como pelo sal nos dias invernosos com vento norte. Começaria pela varanda. Pôs água e detergente no balde. Abriu a persiana. E ainda mais um pouco para poder entrar e sair à vontade e deixar passar mais luz. As cortinas estavam num montinho para lavar e, se calhar, guardar. Até as janelas preferia libertas.

Antes de começar a limpeza, olhou para o mar, cintilante, lá ao fundo. Voltou a olhar e saiu. Como estava sozinha, não tinha que dar explicações. Desceu a rua, devagar, até ao fundo, onde se estende o mar. Quase tinha a certeza que a chamara. Só não viu se lhe acenava. Não gostava de exagerar.