sábado, 25 de fevereiro de 2023

Sábado à tarde

 

Comprei há dias uns vasinhos com amores-perfeitos e pu-los num canteiro, sem os transplantar. O tempo era pouco e o desejo que a chuva voltasse era muito. Ela chegou, benfazeja, ontem à noite, foi ficando e não se despediu até hoje. Há pouco vi que os amores-perfeitos ainda estavam mais perfeitos nas suas pétalas vivas de veludo amarelo. Também graças à chuva, ainda que leve.

Abri a janela que dá para a casa vizinha. E que, por isso, raramente abro de par em par. Mas há uma laranjeira entre a minha casa e a outra casa que também tem janelas e quem lá mora, tal como eu, gostará que haja uma laranjeira alta de permeio. Diante mim, está o computador e, de vez em quando, volto-me para ver a luz da tarde e vejo-a semeada de laranjas. 

À minha esquerda, tenho um rádio ligado na antena 2. Lídia Jorge está a ser entrevistada. A voz do jornalista não me é familiar,  mas agrada-me o modo como conduz o diálogo em que a escritora fala de muita coisa e da mãe e do livro que lhe pediu antes de morrer. Retenho frases como 'A literatura é sempre uma carta de amor por alguma coisa, mesmo sendo cartas de raiva'. E também episódios da vida da mãe em que, no lar de idosos, em vez da reza repetida do terço, preferia ouvir histórias bíblicas. Ou de conversas em que perguntava à filha por que não preferia fins felizes para os seus livros.

O meu neto vem ter comigo com o seu linguajar variado e monossilábico. Sento-o ao meu colo. Põe os dedinhos nas teclas do computador e começam a aparecer letras e mais letras em filinha. Volta para a sala onde estava com o pai e o silêncio volta também à luz aberta do quarto que tem a janela, donde se veem as laranjas da casa vizinha. 

Talvez amanhã  transplante os amores-perfeitos. Talvez amanhã tenha outros momentos simples e perfeitos como estes. Oxalá. Ainda que com a consciência de que o mundo, esse, não.        


3 comentários:

  1. Parece-me bem que o seu texto é uma lição que faz falta, Maria Dolores. A de aproveitar a vida como ela se nos oferece. Com amores perfeitos que se aperfeiçoam na chuva que não cai na minha terra sedenta, mas faz a graça de cair noutros lugares (eu ando de regador na mão a tentar salvar algumas plantas, mas as moléstias que a seca traz, já levaram algumas). Com um neto que gesticula e é por certo e sempre motivo de alegria; com o que se avista da janela e podem ser laranjas; e, ainda que o não sejam, há-de ser alguma coisa e também ela reluz.
    O seu contar é uma lição de ser feliz.

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  2. Ora muito bem!! Obrigada pelo texto!:)
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    É preciso fazer a natureza especial ...
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    Beijo, e um excelente fim de semana.

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  3. Bom dia
    Momentos maravilhosos que dão vida à gente.

    JR

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