domingo, 24 de abril de 2022

Aurora

 
Há dias veio visitar a D. Rosinha. Quando chegou, disseram-lhe que ela estava a descansar. Não se conformou - não gostava de se conformar - com um grande ramo de flores na mão.
Sorridente e empática, justificou a vinda sem aviso.
Somos amigas há muitos anos. Estou cá de passagem e queria vê-la. Daqui a dois dias, volto para França.
Mas eu não conheço a senhora.
Diga-lhe que é a Aurora.
Voltando-se para o neto:
Anda-me buscar daqui a duas horas. Já não falo com a D Rosinha há anos.
Daí a pouco, estavam na sala a falar, já com as flores na jarra e um tabuleiro com chávenas de chá quentinho.
Que contente estava por estar ali. Não sabia o que lhe parecia já não visitar as manas Felgas. E como lhe custava saber da velha casa agora vazia. Que tristeza. E até a Lurdinhas morreu - dizia com mais pausas nas palavras. Sempre a ajudar as irmãs para que nada lhes faltasse.
Como estava a família em França? Estava bem, mas mais pequena, infelizmente. Sabia, com certeza, das perdas que tivera. Foi como lhe se lhe tivessem cortado o coração aos bocados. O primeiro foi o neto: um homem feito. E bonito. E tão carinhoso. Sempre bem disposto. Depois os dois filhos, os únicos rapazes que tinha. Ficaram as quatro raparigas.
O último foi o seu Zé, a amada companhia  de tantos anos. Ainda nem acreditava que já não tinha a presença próxima dele.
Não, não vivia com nenhuma filha. Elas tinham o seu trabalho e a vida delas e nunca gostou de ser pesada aos filhos. E viviam todos perto.
Claro que sabia que os 91 anos, que tinha feito no dia anterior, não eram brincadeira, mas sentia-se bem sozinha e, graças a Deus, tinha autonomia e ânimo todos os dias ao levantar e assim continuava pelo dia fora.
Também não precisava de muita coisa. Cozinhava, arrumava o que tinha de arrumar, ia ao cemitério todos os dias, ia tomar um cafezinho de vez em quando, falava com as madames vizinhas, os filhos telefonavam e visitavam-na amiúde ou ia a casa deles. Ah, e gostava muito de ver a televisão à noite.
Ai, D. Rosinha, como me podia esquecer do dia em que emigrei para França para ir ter com o meu Zé. Eu ainda não tinha feito 30 anos e levei os 5 filhos comigo, uns ao colo, outros pela mão. Como íamos a salto, até riachos tivemos de atravessar pelo nosso próprio pé. E como eles eram muito pequenos, não percebiam por que nunca mais parávamos de andar. Tínhamos passadores à nossa espera mas deixavam-nos ficar em sítios que  ficavam mais longe do que o inferno e ermos que nem lembrava ao demónio. Quando vimos o meu Zé à nossa espera, chorámos  todos como madalenas. E eu, que nem sou muito de lavar a cara com lágrimas, agarrei-me ao meu homem e fiquei abraçada a ele toda a noite. Os meninos adormeceram que nem anjos cansados mas felizes.
Se vou estar aqui muito tempo? Volto amanhã para França. Vim visitar a minha filha que vive em Portugal e ela quis festejar o meu aniversário.
O meu neto já me deu um toque. Valha-me Deus, o tempo passou tão depressa e já passaram duas horas. 
Fiquei tão feliz por termos falado. Já não nos víamos há tanto tempo, D. Rosinha. Só tenho pena é de não ver as suas irmãs. Éramos tão amigas. E o meu Zé fazia-as rir e depois dizia-me que era para elas não perderem o hábito. E a Lurdinhas era a que se ria mais e dizia que a casa delas era o Vaticano, porque só se rezava. Era tão engraçada. 
Nem sabe como estou contente por ter falado este bocadinho consigo. Sabe que, apesar de tudo o que já me aconteceu e de todas as dificuldades que vivi, tenho muitas alegrias todos os dias.
Se eu quero voltar para cá um dia?
Não, D. Rosinha, tenho lá os meus. Já parece a nossa terra. Só espero é que não nos mandem embora e se esqueçam dos nossos mortos que também lá deixaram o seu trabalho. Já lá vivi mais anos do que em Portugal. E, quando morrer, quero ficar ao lado do meu Zé. Ele deve estar farto de estar sozinho, mas quero que espere ainda algum tempo. Não tenho pressa.
Claro, D. Rosinha, a gente tem de se rir. E penso no que ele me dizia muitas vezes, que eu era a luz dos seus dias.
A luz da aurora.
Aí que essa teve graça, D. Rosinha. Por acaso gosto muito da luz da manhã, para não dizer de todas as horas. Deus queira que a luz continue.

 

6 comentários:

  1. Bom dia
    Ai dona Aurora que nunca mais te vais embora, deve ter dito a Rosinha .

    JR

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  2. Teve graça, Joaquim. As visitas demoradas nem sempre são bem-vinhas, isso é verdade, mas, desta vez, julgo que não, porque a Rosinha (a minha mãe) contou-me tudo e estava feliz pela visita.
    Um dia também feliz para si

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  3. Um conversa tão bonita entre duas amigas de muito ano. Mas, desculpe, Maria, parece inverosímil que uma pessoa de 91 anos ande nessa vida de avião para cá e para lá, toda despachada. Se é verdade, os meus parabéns à senhora. Se não...a ficção enfeita a realidade como quer:).
    Um beijinho

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    1. Bom dia, Bea. Sim, eu sei que não parece verdade, mas tudo se passou como na conversa da semana passada. Neste momento a (senhora) Aurora já está em França. Julgo que mora na região de Lyon. Não sei se viajou sozinha de avião, mas acredito que sim, porque, ao longo destes anos, veio cá bastantes vezes com a família e é muito prática e quando não sabe pergunta, na língua que foi aprendendo por ela para viver melhor. Também inverosímil sempre me pareceu a ida dela para França, a salto, com cinco filhos pequenos. Nessa altura, morava perto de nós, chegou a trabalhar em nossa casa e era um exemplo de alegria e de coragem.
      Tive pena de não lhe ter dado um abraço.
      Um abraço para si, Bea

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