domingo, 20 de fevereiro de 2022

Pedido

 

Mundo, ao longo de tantos meses, tive tantas saudades tuas. Quero voltar a ti e abraçar-te como quando reencontramos alguém que amamos e de quem tivemos de nos afastar por circunstâncias cruéis e exteriores a nós. Sempre pensei que nada nem ninguém nos podia separar. E muito menos uns seres invisíveis ao comum dos mortais e que os cientistas dizem ser redondos e cheios de olhos invasores. Também de crueldade variável e que se abeiram das nossas bocas não para nos beijarem, mas para cansarem a nossa respiração e suspenderem a nossa vida.  

Mundo, vejo-te como um enorme ser vivo muito amado, mas do qual todos tivemos de nos esconder durante demasiado tempo, para fugirmos a contágios prováveis e muitas vezes letais. Porém, mesmo em confinamento, continuei a amar-te e a rever-te em algumas das tuas cidades, sem recorrer a fotografias ou desembrulhar souvenirs. Bastava a memória para, magicamente, de olhos abertos ou fechados, logo percorrer, por exemplo, a rua das Flores com cheiro a livros antigos, a vinho do Porto das mercearias, a chocolate quente da pequena mas cosmopolita esplanada; com a graça dos graffiti e frases à moda do Porto... Também me vi a passear devagar junto ao Sena, a subir à Torre Eiffel em tarde fria e de vento, a vaguear num  nostálgico boulevard literário com cafés abertos a encontros e desencontros; a entrar num quente pub londrino de vozearia alegre e vinho tinto ou cerveja a jorrar para copos altos, vendo pela janela autocarros vermelhos e táxis de todas as publicidades...

  Mundo, deixa-me convocar, mas sobretudo revisitar estas e outras cidades, que são marcos felizes que não quero apagar do mapa amoroso da minha vida. Como as amo e como as sentia tristes e sós durante a pandemia, sem ninguém para lhes olhar ou mimar as formas redondas ou lisas de bela e humana arquitetura, o movimento agitado das ruas, a pressa ou lentidão dos carros, os sem-abrigo de olhar parado porque ninguém para para os olhar, os velhos nas passadeiras com medo da rapidez dos mais novos, os turistas que pousam as mochilas enquanto fotografam e delas se esquecem quando validam o momento no facebook, as vendedeiras que apregoam peixe miúdo ou meias para homem, senhora e criança, e que têm de ter sete olhos porque pode aparecer a polícia, as mulheres de saltos altos seduzidas pelas roupas que vão experimentar mil vezes, os homens de camisas abertas aos olhares que desejam, as mulheres tristes e cansadas que seguram sacos pesados nas mãos grossas e vermelhas, os homens e mulheres de negócios com andar de sucesso seguro, os adolescentes a comer sandes e batatas fritas que saem dos sacos gordurosos de papel pardo, os apaixonados que se beijam e se abraçam no prazer imediato que é quase o único que conhecem, os artistas que criam nas mesas solitárias dos cafés, os mercados de todas as vozes e de todos os cheiros e de todas as cores...

Mundo, preciso de te reencontrar nestes e noutros espaços que amo. Em pessoas que amo. Em obras de arte que preciso de olhar para conhecer, amar e compreender melhor a vida que tanto amo. Mundo, escuta com atenção o meu pedido: não voltes a deixar-nos cair em pandémica solidão.

 

 

10 comentários:

  1. Esta carta ao mundo está um must.
    Talvez eu não me tenha isolado mais que o normal, talvez nem queira fazer tantas visitas, talvez deseje apenas que, se me apetecer ir aqui ou ali possa fazê-lo sem que uma entidade me regule os passos. Mas é um facto, basta a proibição para saltarmos o muro do hábito e nos sentirmos peados.
    Portanto, mundo, vê lá o que é que fazes.

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    1. Olá, Bea
      Já tinha este texto escrito há uns tempos e ontem lembrei-me dele.
      Quanto a viajar, se puder ir a Londres de vez em quando e andar cá por dentro, já fico contente.
      Ah, e ir ao Porto (aqui tão perto!) mais vezes.
      Gostei da recomendação final - certeira, mas com algum bom humor.
      Um dia bom.

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  2. Boa tarde
    Mais um texto com todo o sentido de oportunidade actual e como me sinto feliz por poder seguir quem assim escreve.

    JR

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  3. Bom dia! Obrigada. Que bom ouvir boas palavras logo de manhã!
    As restrições anti-covid estão a ser levantadas. Que bom seria se não voltassem!
    Um dia feliz, Joaquim.

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  4. Temos sido prisioneiros do COVID... oxalá isto acabe de uma vez por todas, mas desconfio que vamos ter a sua espada sobre as nossas cabeças mais 2 ou 3 invernos.
    Gostei do seu texto, é excelente.
    Boa semana, amiga Maria Dolores.
    Beijo.

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    1. A espada tem estado mesmo sobre as nossas cabeças e a máscara tem sido longa companhia. Oxalá todos façamos tudo para o bicho se cansar e nós podermos continuar a sentir alívio.
      Um abraço, amigo Jaime

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  5. Belo texto. As saudades de um abraço forte e sentido são de fato muitas. Mas temos que acr3editar que as coisas vão mudar para melhor
    .
    Cumprimentos poéticos
    .
    Pensamentos e Devaneios Poéticos
    .

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  6. Obrigada, Ricardo. Sim,às vezes também o sinto, mas, olhos nos olhos também podem abraçar e partilhar alegrias.
    Um abraço

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  7. Mais do que uma simples carta porque lhe vejo um pedido, menos que um manifesto porque não lhe vejo a exigência. Chamar-lhe-ia petição cara Maria Dolores e diga-me onde posso assinar.

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  8. Bem explicadas as razões do tipo de texto, Joaquim. Obrigada.
    As suas palavras já são uma forma de assinar.
    Uma noite bem descansada de quase fim de semana.

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