terça-feira, 4 de setembro de 2018

ELE e ELA no Centro Comercial

Ontem fui a um centro comercial e, como era hora do almoço, dirigi-me às habituais Vitaminas. 
Com o tabuleirinho verde nas mãos, vi uma mesa livre e sentei-me. 
Ao meu lado, estava um casal de meia idade, um em frente ao outro.  
Ela de carnes fartas, ele bem mais seco. Ela muito faladora e ele mais ouvinte. 
Ela contava muitas peripécias e ele oferecia-lhe sorrisos. 
Por duas vezes, pediu, carinhosamente, para que ela repetisse o que estava a dizer.
Eram namorados pela certa.
Enquanto almoçava, eu ia imaginando os prováveis pensamentos.
Ou improváveis?


ELA
Ele ouve-me com atenção. E nem olha para o lado enquanto falo. O sorriso é bonito e meigo. Só é pena faltarem-lhe alguns dentes. Como é diferente do meu ex-marido. Ele nem teria tempo nem paciência para me ouvir. Estaria sempre a olhar para o lado, ou para a televisão ou a comentar o que via sem me prestar atenção.
Posso falar do meu filho, de coisas engraçadas, de coisas que me preocupam. Ele está atento e ri-se para mim, ainda que pouco fale. Sempre a fixar-me como se só eu lhe interessasse. Já nem me lembrava destas atenções. Talvez as tivesse tido em tempos antigos de namoro, mas já foi há tanto tempo que quase as esqueci.
Agora posso tê-las de novo. Não me importava que ele fosse um bocadinho mais cheiinho. Quando me levantar e me puser ao seu lado, parece que comi tudo sem deixar nada para ele. Também escusava de ter comido tanta batata frita, mas sinto-me infeliz quando ando desconsolada.
Para onde gostaria ele de ir comigo a seguir? Vou perguntar-lhe se quer ir tomar chá a minha casa. Fiz-lhe o bolo habitual. Ele disse-me uma vez que gostava e quero que seja feliz.
Enquanto estivermos os dois, não fecharei a persiana, como às vezes faço. Quero abrir-me à luz deste outono. Só quero é que ele não adormeça como aconteceu uma vez.


ELE
Ela é bonita e tem sempre tantas coisas para contar. Sempre gostei de pessoas alegres e com assunto. Faz-me esquecer tristezas e abandonos que já vivi. Sei que não sou jovem mas nunca se é velho para amar e, apesar da minha magreza, sou saudável e as análises estão bem.
É pena ela ter carnes tão abundantes. E balofas. É gulosa e diz que gosta de caminhar mas no Centro Comercial.
Os braços até mexem quando se ri. Gosto de a ouvir falar. Pela expressão dela, deve ser engraçado o que está a contar, mas pouco compreendo por causa da minha surdez e aqui há muito ruído. Como ela fala muito, nem repara. É melhor assim. Estou à espera da consulta no otorrino há imenso tempo.
Não quero estar sempre a interromper o que diz, senão pode ficar chateada. Faz-me bem ter à minha frente uma mulher divertida e com vontade de falar comigo.
Deve convidar-me para ir a casa dela tomar chá com bolo. Uma vez, disse-lhe que gostei de um e agora faz sempre o mesmo. Quando quis agradar-lhe, nunca pensei que teria de o comer tantas vezes.
Se for como o de ontem, o fim de tarde vai estar bonito.
Em casa dela, com a persiana fechada, quero sentir bem próximo o macio das dunas soltas neste outono.
Só espero é que não se lembre de repente que tem de pôr uma máquina de roupa a lavar. Ainda adormeço com este calor.

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