domingo, 6 de junho de 2021

Como se tivessem dez anos


Maria dos Anjos e Adélia encontram-se por acaso, mais de quarenta anos após a escola primária. Reconhecem-se. Num primeiro instante,  tendem ambas a fingir que não se veem, mas não o fazem. Param e dizem algumas coisas que sempre ficaram por dizer. Foram mais sinceras do que quando tinham dez anos.

 

- Maria dos Anjos! Há tantos anos que não nos víamos.

- Sim, desde que partiste para França, Adélia.

- Mandei-te um postal, mas não me respondeste.

- Não me lembro. Ou melhor, quis esquecer para aquele anjo rechonchudo não ocupar demasiado espaço da minha memória.

- Mas agora estás bem mais magra, Maria.

- Sempre me chamaste Maria dos Anjos. Até gozavas com o meu nome.

- Já passaram muitos anos e as asas de todos nós foram voando de vários modos.

- Às vezes, voos rasantes, outros mais altos, uns mais tresloucados...

- Vamo-nos sentar naquele banco à sombra. Tens tempo?

- Sim, as nossas pernas já não têm a mesma resistência de quando íamos na procissão.

- Eu nunca fui na procissão, Maria.

- Ficavas a ver para depois criticar.

- Nem imaginas como gostava de ter ido também, de ter tido uma mãe que me obrigasse a isso.

- Não vejo porquê. Eu detestava.

- Se me obrigasse, era porque achava que eu era capaz.

- Mas parecia que dominavas tudo, que vendias confiança.

- Como uma galinha meio engalinhada. Eu era tão insegura, Maria.

- Nunca pensei, Adélia, nem que voltássemos a falar.

- Éramos crianças, Maria.

- Tu ferias mais do que muitos adultos.

- Eu sei e já o sabia na altura.

- Então, por que persistias?

- Porque havia coisas que se passavam comigo que também me feriam muito.

- Exorcizavas os teus demónios, atacando, criticando, amesquinhando?

- Havia um muro, Maria, que me punha revoltada e infeliz.

- Não entendo, Adélia. Como não entendia alguns dos teus comportamentos. Lembro-me que, num dia frio de inverno, a minha mãe me obrigou a levar dois vestidos para ir mais agasalhada. Deitaste-te no chão do recreio para te certificares que eram mesmo dois vestidos e ridicularizaste-me tanto que não parei de chorar. Quanto mais eu chorava, mais tu te divertias a rastejar e a apontar para mim. Parecias um réptil.

- Maria, apesar de tudo, estamos aqui sentadas neste banco onde chegámos por acaso. Devem ter sido os anjos que nos trouxeram.

- Espero que sim, porque quero afastar cada vez mais os demónios.

- Vejo que ainda estás ressentida comigo e com razão.

- Já que os anjos nos trouxeram até aqui, diz-me: tens filhos?

-Tenho dois filhos e dois netos. Ultimamente, ando muito preocupada com um dos meninos.

- Então, está doente?

- Não é pequena doença. Tem sido vítima de bullying na escola. É o mais pequeno da turma e agora nem quer vir ao recreio com medo do que lhe dizem e do que lhe fazem.

- ...

- Não dizes nada?  Tens netos com o mesmo problema?

- O meu filho não tem filhos. Perdeu a mulher com a idade que eu tinha quando me separei. Quanto ao teu neto, compreendo muito bem a tua dor, Adélia, mas não fiques calada, nem tenhas medo, nem sintas vergonha.  Ouve-o sempre com atenção.

- É o que eu tenho feito e também me tenho ouvido a mim própria, o que me tem ajudado a transpor o muro que não esqueço.

- Já falaste duas vezes de um muro, Adélia. O que queres dizer?

- Continuas com tempo para me ouvires?

- Continuo.

- É que acontece tão poucas vezes haver quem nos oiça e seja franco connosco. Sinto este peso a atormentar-me desde muito pequena. É uma doença que não tem cura.

- Sim, esse é também um muro que nos tolhe muitos dos nossos passos, mas voltemos ao muro da tua infância.

- A minha casa dava para a casa da minha avó. Eu ia pra lá quando chegava da escola e era lá que eu era feliz. Podia correr, saltar, apanhar flores, fazer os deveres no coberto, ouvir os pássaros, brincar com os animais...

- Então, mais uma razão para viveres bem contigo e com os outros.

- Um dia, quando cheguei da escola, estavam a erguer um muro entre a nossa casa e a casa da minha avó. Eu nem queria acreditar. Estavam a arrancar-me do meu paraíso. Nunca me explicaram a razão do muro da separação. Eu bem perguntava, mas ninguém me respondia. Acho que nem ouviam ou faziam de conta que não ouviam. Eu era um ser invisível mas, mesmo assim, incapaz de saltar o muro.

- Foi quando viraste fera enraivecida.

- E a minha raiva não dava para bater mas para escarnecer. Assim, eu era ouvida, eu era temida e ninguém ficava indiferente ao que eu dizia.

- Voltando ao teu neto, o problema de bullying está a ser resolvido?

- Lembraste-te do bullying, porque era bullying o que eu fazia, sobretudo contigo. Eu sei.

- Não lhe dávamos era esse nome. Foi por causa do tal muro que os teus pais emigraram?

- Foi. Não aguentaram e as zangas entre eles dispararam. Era um inferno. Culpavam-se um ao outro a toda a hora. Quase fugimos para França. Quando regressámos, muitos anos depois, o tempo já tinha deitado abaixo uma boa parte do muro e a casa da minha avó estava em ruínas.

- Um muro e as suas ruínas.

- Continuas a gostar de palavras bonitas.

- Sim, cada vez mais. São um modo de eu ir derrubando os meus muros, porque os tenho, tal como toda a gente.

- Maria, posso pedir-te desculpa e dar-te um abraço?

- Sim, Adélia, mas não como se tivéssemos dez anos.

 

sábado, 5 de junho de 2021

Maria dos Anjos

 (Rente a uma decisão)

Passado algum tempo, o Manuel chamava-me apenas 'meu anjo', com bastante ternura, o que me agradava. Depois, passou a ser um hábito que deu lugar a alguma ironia, sobretudo quando discordávamos ou nos zangávamos. A inquietação começava a assolar-me, trazendo o medo de escura solidão. Num fim de tarde ruidoso de chuva e trovoada, desentendemo-nos seriamente e Manuel ameaçou-me, nunca deixando de dizer meu anjo... meu anjo... Eu, angelicamente, atribuí a ameaça ao cansaço e à tempestade, porque Manuel pediu-me logo desculpa, repetindo 'meu anjo', agora em tom de bonança. Porém, umas semanas mais tarde, numa noite calma de lua cheia, perante novo desacordo, repetiu e aumentou as ameaças, sem nunca deixar de me chamar meu anjo... meu anjo... agora com frio sarcasmo.

        Com mil demónios, pensei. 

        Foi quando eu, Maria dos Anjos, decidi despir a roupa de anjo, perder o medo e  sair dessa procissão. 

        

 

        Nota 1 - Este pequeno conto foi publicado na coletânea Anjos da Prosa e da Poesia, da Editora Lugar da palavra, 2021, p. 46/48.

  

Nota 2 - Obrigada por me terem acompanhado na história. Um palpite da Bea, num comentário, deu-me uma ideia. Assim, talvez a Adélia e a Maria dos Anjos se encontrem em breve. Por que não? Estas coisas não acontecem só na vida real.


Um bom dia para todos e que os anjos também ajudem!

  

 

  

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Maria dos Anjos

(Entre o antes e o depois)

Naquela altura, eu era bastante solitária, porque os adultos à minha volta não tinham tempo para ouvir ou falar pausadamente. Éramos cinco irmãos e a família andava sempre atarefada. Eu era a segunda filha mais velha e tinha também de olhar pelos meus irmãos mais pequenos. Não havia tempo para perguntas e respostas, para dúvidas e esclarecimentos, para afetos ou ternuras. Talvez por isso não partilhei a minha tristeza causada por esta graçola de Adélia. Não disse a ninguém nem à minha irmã do meio, com quem me entendia muito bem, porque ela estava a ajudar a minha tia. Lembrei-me de ir ter com elas, mas acabei por não ir, porque as imaginei tão ocupadas a bordar que ouviria com certeza pela voz da minha tia: - 'Deixa-nos, porque tenho prazo de entrega e gosto de cumprir'.

Foi mais um momento em que me senti um ser invisível. Como se falasse mas ninguém me visse nem ouvisse e rasguei o desenho, porque não haveria, por certo, ninguém disponível para me ajudar, a não ser para me dizer: 'Deixa lá isso, não ligues, isso passa!'

       E eu, Maria dos Anjos, fui crescendo e, vejo agora, era até uma jovem bonita. Foi quando o Manuel começou a sorrir-me e a aproximar-se de mim. Um dia, convidou-me para um baile de garagem, com muito calor e muitos slows. Quando veio o casamento, eu tinha dobrado os vinte anos há pouco. Ganhara uma companhia. O Manuel chamava-me Maria dos Anjos com todas as letras. Era amor. A minha solidão foi-se esbatendo. Tinha com quem falar. Tinha quem me ouvisse. Manuel começou então a chamar-me 'meu anjo da guarda', mas a expressão não me agradava, porque  aprisionava, lembrava-me o distante domingo da procissão em que me vesti de anjo, obrigada pela minha mãe, com receio do olhar trocista de Adélia. Aquele tempo havia ficado de tal modo inculcado na minha memória que qualquer estímulo me fazia revivê-lo. Comecei  a mostrar desagrado por ouvir tantas vezes 'meu anjo da guarda'.

 

 (Por mim, gostava de contar um pouco mais).

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Maria dos Anjos

 

(No princípio foi a procissão)

Deixei de gostar do meu nome quando comecei a dar conta de mim e, sobretudo, quando entrei na procissão da festa anual da paróquia, vestida de anjo. Quando ouvi: 'Maria dos Anjos, vais de anjo na procissão', disse logo que não queria porque as asas deviam ser muito pesadas, faziam-me calor e sentir ridícula. Desatei a chorar, mas a minha mãe retorquiu que tinha feito uma promessa e que eu iria de anjo, mesmo contra a vontade. Ora, eu tinha crescido, engordado e sabia que ia ouvir as graçolas da Adélia. Ela estaria na procissão, mas, mesmo que não estivesse, sabia tudo e tudo aproveitava para fazer troça no recreio da escola: se os  sapatos eram grandes ou pequenos, se o vestido era curto ou comprido, se o cabelo era crespo ou fininho, se éramos magrizelas, se saltávamos mal à corda...

A Adélia era um réptil que se aproxima em surdina e fica a morder de mansinho, rindo às gargalhadas com a língua de fora. E logo tinha eu de me chamar Maria dos Anjos e ir vestida de anjo na procissão. De certeza que a Adélia me perguntaria muito alto para as outras meninas ouvirem: 'Ó anjo, sabes da Maria? Ó anjo, onde estão os outros?'  Eu tinha até decidido que, mais tarde, nunca falaria com ela, nem que fôssemos vizinhas, nem que tivéssemos filhos na mesma turma.

Nesse tempo, eu pensava nisto porque ficava muitas vezes em silêncio, sem saber o que dizer ou fazer no recreio, com medo do riso e das críticas dela. Eu detestava-a mais do que as trovoadas pantanosas de inverno ou sufocantes de verão, que sempre me atormentavam.

Um dia, os pais de Adélia emigraram e levaram-na com eles. Foi uma felicidade para mim. Via-me livre dela. Meses mais tarde, no verão, chegou o meu aniversário. O tempo era de mais severidade do que de festejos, mas recebi uma carta que me surpreendeu e suspendeu a minha respiração. Vinha de França e era de Adélia. Contava que a nova escola era maravilhosa, que tinha muitas amigas e que gostava cada vez mais de desenhar. Enquanto ia lendo, eu ia pensando que lhe tinha feito bem a mudança, mas também mudei de ideias quando vi um desenho. Era de um anjo grande, gorducho e com umas asas felpudas e pesadas que o puxavam para trás. Trazia uma legenda em letras desenhadas: 'Ainda continuas um anjo rechonchudo?' 

(Por mim, a história continua). 

 

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Postais enviados pelo Clube das Histórias

 


' (...) 
Se foste criança diz-me a cor do teu país
Eu te digo que o meu era da cor do bibe
e tinha o tamanho de um pau de giz
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez
Ainda hoje trago os cheiros no nariz
Senhor que a minha vida seja permitir a infância
embora eu nunca mais saiba como ela se diz'

  Ruy Belo, in ‘Homem de Palavra[s]’

'Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade'.

Manoel de Barros


'Vejo as letras e os algarismos
nos vossos cadernos escolares,
arrumadinhos sobre a linha
ou aconchegados na quadrícula
que é uma pequena janela
aberta para as contas
poderem respirar e ver o sol.
Cada letra aprendida
cada algarismo sabido
é mais um saltinho em frente
para aprenderem a vida.
No fundo, temos a altura
daquilo que sabemos.
E ainda há tanto para aprender!'

José Jorge Letria



'No último andar é mais bonito:
do último andar se vê o mar.
É lá que eu quero morar.

O último andar é muito longe:
custa-se muito a chegar.
Mas é lá que eu quero morar.

Todo o céu fica a noite inteira
sobre o último andar
É lá que eu quero morar.

Quando faz lua no terraço
fica todo o luar.
É lá que eu quero morar.

Os passarinhos lá se escondem
para ninguém os maltratar:
no último andar.

De lá se avista o mundo inteiro:
tudo parece perto, no ar.
É lá que eu quero morar:

no último andar'.

Cecília Meireles