quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Feliz

 

 

O apelido era Feliz, mas, se bem me lembro, raramente a vi feliz. Tinha muitos filhos - pelas minhas contas, eram sete - e as infelicidades caíam-lhes em cima com frequência. Pelas mãos ossudas e magras da mãe. 

O que valia era a rua onde passavam muito tempo e podiam correr o arco, jogar ao pião, lançar papagaios de papel, saltar à corda, etc. Aí, sim, eram felizes e ninguém lhes batia. Também que ninguém se atrevesse, a menos que quisesse ser retribuído da mesma ou pior forma.

Quando chegavam a casa é que era pior. Vinham sujos e esfomeados da brincadeira e a mãe enfurecia-se porque tinha esfregado o chão, de joelhos e com mais esmero do que sabão amarelo, e eles vinham estragar tudo. E o apelido lá se ia pela água abaixo.

Não é que não gostasse dos filhos e que não zelasse pela saúde deles, mas que sujassem a casa e tirassem as coisas do lugar enervava-a e trazia-lhe à cabeça o caos que vinha da sua infância. E tenho eu a alcunha de Feliz, raisparta - dizia para si própria!

A casa está agora em ruínas. Amontoadas, tal qual foram caindo, pedras, bocados de cimento ou cacos variados contam bocados das histórias por lá vividas. Restos da casa em que cada um gostaria de ter sido mais feliz e não apenas de nome. 

 

2 comentários:

  1. Uma história de vida, como tantas outras, infelizmente. Se as pedras dos escombros falassem, talvez fosse desse tormento de gente "Feliz", com lágrimas.
    Muito bem escreve a Mª Dolores. As suas histórias são uma delícia, porque nos fazem ver as imagens passar na frente dos olhos, como de um filme.
    A escolha do vídeo está em simbiose perfeita.
    Tudo muito certinho, muito no sítio.
    Um beijo e parabéns.
    Janita
    PS- Peço desculpa pelo anonimato, mas agora já não dá para entrar com a minha conta. :(

    ResponderEliminar
  2. Obrigada, querida Janita, é caso para dizer: olha quem fala!
    As pessoas que entraram neste pequeno texto fazem parte da minha memória.
    E, já que estamos a trocar galhardetes, não sabe como aprecio - chego a ter inveja, acredite - a sua coragem, verdade, criatividade e poder de comunicação.
    Continuemos, portanto, cada um à sua maneira, a criar estes laços tão bons e tão necessários.
    Um bom fim de semana, amiga Janita, e um xi-coração

    ResponderEliminar